Pessoal, eu sei que este é mais um post sobre games de corrida, mas vocês não vão se incomodar, vão? Até porque não vamos falar dos games em si, mas sim de um dos aspectos mais duradouros e marcantes desses games: a trilha sonora.
Músicas licenciadas são bacanas – quando você joga um game de corrida que traz músicas de outros artistas, você acaba vislumbrando um pouco da época. Em Gran Turismo 2, por exemplo, há uma boa seleção de artistas de rock e música eletrônica da virada dos anos 2000, como Garbage, Stone Temple Pilots, Foo Fighters, Fear Factory e Crystal Method. O icônico Need for Speed Underground e sua sequência, lançados anos depois, trazem Snoop Dogg, Ludacris, Ministry e Queens of the Stone Age. NFS Heat, o mais recente título da série, foi lançado há poucas semanas e pode ser uma boa forma de ficar por dentro da música que a juventude anda escutando, como Post Malone e Cardi B, Lil Baby, Kendrick Lamar e Diplo. (Tudo bem se você não souber quem são esses).
Mas sabe o que é legal mesmo? Trilhas sonoras originais – algo que era default nos games até a chegada da quinta geração de consoles, representada principalmente pelo PlayStation e pelo Nintendo 64, que tinham hardware mais poderoso e podiam reproduzir músicas pré-gravadas, sem precisar de soundfonts (que, explicando de forma simples, são como os “instrumentos virtuais” usados nos jogos antigos). Com as limitações de processamento dos computadores e PCs de antigamente, uma boa trilha sonora feita sob medida dependia de um bom compositor e da habilidade dos programadores.
Ouvir as OSTs (original soundtracks, para quem está por fora do jargão) de games de corrida clássicos, das eras 8-bits e 16-bits, é um deleite – muitos temas compostos naquela época viraram músicas icônicas, ainda mais hoje em dia, com a nostalgia em alta. Um bom exemplo, ao menos para mim, é o tema de Mach Rider, lançado para o NES em 1985. É um tema bem dissonante, quase cacofônico, mas a melodia é extremamente pegajosa e ainda me enche de saudade do meu Dynavision, Nintendinho genérico fabricado no Brasil que foi meu primeiro console de videogame.
A era 16-bits trouxe outras dezenas de trilhas clássicas. Top Gear, com as belas composições de Barry Leitch, inspirou o bem-sucedido Horizon Chase, desenvolvido por brasileiros – eles, aliás, conseguiram chamar o compositor para trabalhar no game.
OutRun, que fez sucesso no Master System, no Mega Drive e nos arcades, é tão influente que o gênero Synthwave de música eletrônica também é chamado de OutRun Electro. Isto só para ficar nos mais conhecidos e óbvios.
A partir da década de 1990, porém, as coisas começaram a ficar mais diversificadas – especialmente graças ao áudio “de verdade” que os novos consoles e computadores passaram a ser capazes de reproduzir. E foi nesta época que, enfim, chegamos ao assunto deste post: o jazz fusion como trilha sonora de games de corrida. É uma combinação que vai muito bem, mas por que ela existe?
Não é difícil entender por que o jazz fusion tem este nome. Nascido no final da década de 1960, trata-se de uma fusão entre jazz e rock, misturando a improvisação e os tempos irregulares do jazz com a distorção e a natureza mais acessível do rock – pense nele como o rock progressivo com menos rock e mais jazz e totalmente desprovido de vocais.
O jazz fusion, por natureza, é uma boa porta de entrada para o jazz, com melodias pegajosas e menos jeito de “música para músicos” – ao menos em algumas faixas. E, para muita gente (eu incluso), a introdulção ao jazz/jazz fusion veio justamente com os games de corrrida. Sim, novamente tenho de citar Gran Turismo.
Podemos traçar o início desta conexão a uma pessoa – o compositor, produtor musical e guitarrista Masahiro Andoh. Para os mais nerds, este nome é instantaneamente reconhecível como o do compositor de “Moon Over the Castle”, o tema principal da série Gran Turismo desde 1997.
Antes de ser contratado para fazer música de videogame, porém, Andoh já era um músico consagrado no Japão. Por lá, o jazz fusion era um gênero extremamente popular no fim dos anos 1970 e início dos anos 1980. Andoh sempre tocou guitarra como seu principal instrumento – ele o faz há quase quatro décadas e é um dos maiores representantes do gênero. E ele foi um dos fundadores do T-Square, um dos maiores grupos de jazz fusion do planeta.
O T-Square foi fundado em 1978 – no auge da popularidade do jazz fusion japonês – e Andoh era o líder da banda, que já teve dezenas de músicos em sua formação. O primeiro álbum, Lucky Summer Lady, logo de cara mostra a identidade de Andoh, que ficaria evidente em algumas das faixas mais famosas de Gran Turismo 2, como a trilha sonora da garagem, que lembra bastante a faixa-título. Compare ambas abaixo:
A melodia não é tão parecida, mas a pegada é praticamente a mesma.
Mas não o T-Square não foi a única banda de jazz fusion a influenciar o trabalho de Masahiro Andoh. Outro nome importantíssimo do gênero no Japão é o Casiopea, que eu conheci através do primeiro álbum, auto-intitulado, de 1979. Com mais pianos e sintetizadores que o T-Square, o som do Casiopea tem mais finesse, e a primeira faixa do álbum, “Midnight Rendezvous”, não faria feio ao lado dos temas das cidades de Gran Turismo 2.
Metropolis Street Racer, game da Sega lançado em 2000 exclusivamente para o Dreamcast, foi outro título que empregou a influências do jazz fusion em sua trilha sonora – por exemplo, na deliciosa “Think About It”:
Para ninguém me acusar de saudosista ou anti-Nintendo, deixo aqui também “Mario Circuit”, uma das canções de Mario Kart 8, um dos títulos mais recentes da consagrada franquia, lançado em 2014 para o Wii U:
Mas o aspecto mais interessante do jazz fusion japonês, especialmente para quem curte carros mas não é muito ligado em games, é como toda a estética das capas de álbuns é surpreendentemente entusiasta. Você deve ter reparado, por exemplo, nos protótipos Can-Am na capa do álbum do Casiopea. E há outra boa razão para isto: com a popularidade do jazz fusion no Japão, não levou muito tempo para que as bandas e artistas do gênero aparecessem na trilha sonora das transmissões oficiais da Fórmula 1 do país. Entre 1989 e 2000, o tema oficial da Fórmula 1 no Japão era a música “Truth”, faixa título do álbum de 1987.
Um detalhe interessante tem a ver com Ayrton Senna, que no auge de sua carreira na McLaren era extremamente cultuado no Japão, em parte por sua proximidade com a Honda. Tanto que o próprio T-Square lançou, em 1994, o álbum Solitude – Dedicated to Senna, pouco depois da morte do tricampeão.
O vídeo infelizmente não pode ser incorporado aqui, mas você pode ouvi-lo neste link do Youtube. Vale a pena.