Se você falar os nomes Harley Earl, Bill Mitchell e Raymond Loewy para um americano, ele certamente saberá que se trata de designers da pesada. Gente responsável por carros como Buick Y Job, Chevrolet Corvette Stingray e Studebaker Avanti. No Brasil, nomes como Anísio Campos, Luiz Alberto Veiga, Ari da Rocha, Raul Pires Jr. e os irmãos José Carlos e Marco Antonio Pavone são conhecidos de poucos, mesmo entre gente que curte automóveis.
Todos estes designers têm ou amizade ou admiração por Marcio Lima Piancastelli. Se você não o conhecia, perdeu a chance de encontrá-lo vivo. Piancastelli morreu ontem (18). Por isso, decidimos escrever este post em sua homenagem, contando um pouco de seu legado. Ou melhor: os detalhes desse legado, pois você provavelmente já andou em uma de suas criações
Ao lado de Rudolf Leiding, Piancastelli foi responsável pela criação do centro de design da Volkswagen do Brasil. O designer também é pai do SP2, do Brasilia e do Gol, como gente que trabalhou com ele, como os designers Gerson Barone e João Marcos Ramos, hoje na Ford, acham justo nomeá-lo. Foram Piancastelli e Leiding os responsáveis por mudar os rumos da indústria automobilística brasileira. Sem exagero.
Mineiro de Belo Horizonte, Piancastelli nasceu em 7 de setembro de 1936, e sempre gostou de carros e de desenhos. Em 1962, com 26 anos, ele ficou com a menção honrosa no Prêmio Lúcio Meira, com o projeto abaixo, o Itapuan.
Ainda que tenha sido um segundo lugar, o desenho impressionou Luigi Segre, do estúdio Ghia, que convidou Piancastelli para um estágio na Itália em 1964. Depois de voltar, o brasileiro foi trabalhar na Willys-Overland do Brasil, mais especificamente no Projeto M, que daria origem ao Corcel depois da compra da Willys pela Ford, em 1967. Naquele ano, Piancastelli foi trabalhar na Volkswagen.
Na época, todos os projetos da marca alemã vinham de fora. Havia uma proibição interna para qualquer iniciativa deste tipo e quem desobedecesse era demitido. O primeiro trabalho de Piancastelli na Volkswagen foi o TL, modelo já com alguma autonomia, visto que tinha a dianteira e a traseira diferentes do modelo alemão. Foi este projeto que o aproximou de Leiding, que havia assumido a presidência da VW em julho de 1968. E já havia enfrentado uma situação que mexeu com seus brios.
Durante a edição do Salão do Automóvel, o presidente da Puma na época, Luis Roberto Alves da Costa, deu uma menosprezada nas atrações da Volkswagen, dizendo que a empresa só tinha carros comuns para exibir. Leiding não gostou muito da observação, mas ela foi decisiva para a criação do centro de estilo na Volkswagen.
Depois de ver o trabalho de Piancastelli, segundo o livro “Brasilia”, da série “Clássicos do Brasil”, da excelente editora Alaúde, Leiding teria pedido a ele para pensar em dois novos carros: um esportivo e um novo hatch, pequeno por fora, grande por dentro e com grande área envidraçada. Dizem que Leiding desenhou o perfil de um Fusca e, sobre ele, fez o esboço do que queria. Questionado sobre a proibição de desenvolvimento de desenhos no Brasil, Leiding teria dito: “Eu sou presidente, não o porteiro”. E mandou tocar os projetos até que tudo estivesse acertado com a Alemanha, de modo secreto.
Piancastelli e o designer José Vicente Novita Martins, o Jota, trabalhavam camuflados na ferramentaria. Foi assim até eles ganharem uma sala própria e a ajuda de George Yamashita Oba e de uma equipe de modeladores — o que aconteceu semanas depois do episódio entre Leiding e Costa.
Enquanto isso, o presidente da Volks foi à Alemanha defender seu centro brasileiro de design e mostrar à matriz que, por falta de diversificação da linha, a Volkswagen estava perdendo mercado e importância. Sua defesa deve ter sido tão boa que ele conseguiu não só a autorização para o centro de estilo, mas também foi eleito presidente mundial da Volks. Leiding voltou à Alemanha em 1971.
Para garantir proteção aos designers, quem assinou os projetos foi o próprio Leiding e o chefe de engenharia da época. O primeiro projeto a sair do papel foi a dupla SP1/SP2. Antes de seu lançamento, o SP2 foi exibido em uma feira alemã em Frankfurt em março de 1971. Foi o suficiente para a revista alemã Hobby chamá-lo de “o Volkswagen mais bonito do mundo”. Satisfeito, Leiding, já presidente mundial, deu luz verde para a produção. Apresentada em julho de 1972, a dupla contou com a presença do executivo para sua apresentação no Brasil. Um exemplar do carro foi levado para a Alemanha. Seria o carro de uso de Helga Leiding, esposa do executivo, para quem ele dedicou o projeto, mas o carro chamava atenção demais e eles acabaram comprando um Golf para o dia a dia. O SP1/SP2 era construído sobre a plataforma da Variant. Para quem nunca ouviu falar do SP1, vale conferir a propaganda da época.
SP1 e SP2 seriam versões de um mesmo carro. Enquanto o SP1 tinha motor 1.6, de 65 cv a 4.600 rpm, pelo padrão SAE, o SP2 tinha um 1.7 de 75 cv a 5.000 rpm, pelo mesmo método de medição, como se pode ver no site VWSP2 Clássico. O carro tinha 4,22 m de comprimento, 2,40 m de entre-eixos, 1,61 m de largura e 1,19 m de altura. Pesava apenas 890 kg, com qualquer um dos motores. Enquanto o SP2 teve 10.205 unidades produzidas, das quais 670 foram exportadas, o SP1 teve apenas 88, igualmente divididas entre 1972 e 1973. O SP2 aguentou em linha até fevereiro de 1976.
A segunda obra de Piancastelli foi o Brasilia, em junho de 1973. Enquanto era segredo, o carro foi protagonista, ao lado do fotógrafo Cláudio Larangeira, de um dos episódios mais famosos da área de segredos jornalísticos. Ainda freelancer da revista Quatro Rodas, ele recebeu a missão de perseguir e fotografar o novo carro. Quando começou a tarefa, os seguranças da Volkswagen mandaram que ele parasse. Larangeira nem deu ouvidos até ouvir o barulho dos tiros, que perfuraram a carroceria de seu carro. As fotos, porém, foram feitas e saíram na capa da edição 154 da revista, de maio de 1973.
Diferentemente do SP2, o Brasilia usava o chassi do Zé do Caixão, o que talvez ajude a explicar a rara versão de quatro portas que ele teve, em 1978, já como modelo 1979.
Falamos “o” Brasilia porque, ao contrário do que pode parecer, ele nasceu para ser um hatch, não uma perua. A semelhança com a Variant estava só no formato da carroceria, já que o porta-malas era significativamente menor. Aliás, o Brasilia era menor até do que o Fusca em 17 cm. Tinha apenas 4,01 m de comprimento, com o mesmo entre-eixos do restante da linha (2,40 m), 1,61 m de largura, 1,44 m de altura e 906 kg.
Com motor 1.6 de 60 cv a 4.600 rpm, o mesmo boxer usado no Karmann-Ghia, mais baixo que o do Fusca, o Brasilia foi fabricado de 1973 a 1982. Teve 931.204 unidades vendidas no Brasil ao longo destes 9 anos. Se forem somadas às 133.212 unidades exportadas para as Filipinas e países da América Latina, o carro chega à impressionante marca de 1.064.416 Brasilia vendidos.
O Brasilia também é considerado o primeiro “carro mundial” projetado no Brasil. Isso porque ele também foi fabricado no México, e vendido também nos EUA, e na Nigéria, de onde era exportado para Portugal e outros países europeus.
Como se fosse pouco, Piancastelli foi incumbido, em 1976, de começar a pensar no sucessor do Fusca, já que o Brasilia, apesar de bem sucedido, não havia tirado do Besouro a popularidade. Foi nessa época que ele elaborou o projeto abaixo.
Familiar, não é? Na época, Giorgetto Giugiaro prestava serviços à Volkswagen e a empresa reprovou o projeto, mandando Piancastelli e Jota ir a Ingolstadt para trabalhar em um novo projeto, o que acabou aprovado e fabricado por aqui. Em janeiro de 1983, a Fiat apresentava o Uno, projeto da Italdesign e de Giugiaro. Será que o italiano teria tido contato com o desenho de Piancastelli? Será que teria se inspirado nele? Só ele sabe. E, se houve alguma influência, talvez ele a leve para o túmulo.
Leiding, depois da satisfação de ajudar a criar Brasilia e SP1/SP2, pegou um rabo de foguete daqueles na matriz. Saindo de um país onde ele havia aumentado a produção em 50%, ele encarava uma empresa cujas vendas estavam em queda. Ela precisava desesperadamente de um substituto para o Fusca. O candidato era o EA226, um projeto no qual um certo Ferdinand Piëch trabalhava.
O novo presidente da VW suspendeu o projeto, assumiu o desenvolvimento de produtos e viu a VW enfrentar seu pior desempenho histórico, com um prejuízo de 800 milhões de marcos em 1974. No mesmo ano ele lançaria o Golf e implantaria as bases do “Baukastensystem”, ou montagem modular, que permitiria amplos ganhos de escala. O resto, como você deve saber, é história.
O executivo deixou a Volks em 1975 e faleceu em 2003, um dia antes de completar 89 anos. Piancastelli foi embora bem antes, com 78 anos, devido a um câncer. Os dois devem ter se encontrado em algum lugar e se cumprimentado por tudo que fizeram. Mas é uma pena que Piancastelli seja conhecido de tão poucos.