O Falcon GT-HO Phase III corria solto. O V8 Cleveland rugia no limite, o ponteiro do velocímetro encostava no fim da escala e a agulha tremia em 145 mph. Mel Nichols, jornalista da Wheels, mantinha o carro firme, enquanto o fotógrafo Uwe Kuessner, acomodado no banco de trás, registrava a cena que incendiaria a imaginação dos entusiastas e faria tremer os políticos. Era 1972, e a Austrália ainda vivia a era das rodovias sem limite de velocidade, onde qualquer motorista podia se tornar senhor do asfalto — desde que tivesse coragem e o carro certo.

Aquela imagem não era apenas uma fotografia. Era um manifesto: mostrava ao público que os supercarros australianos — sedãs familiares com desempenho de esportivos — eram reais e acessíveis — mas também potencialmente perigosos.
Para compreender o peso daquele momento é preciso olhar para Bathurst. Desde 1960, o circuito de Mount Panorama era a arena que ditava quais carros os australianos comprariam na semana seguinte. O traçado de 6.213 metros subia e descia o monte em curvas desafiadoras, terminando na longa reta Conrod — o que exigia dos carros um equilíbrio entre acerto dinâmico e velocidade final.
Como o regulamento da principal categoria exigia que os carros fossem próximos do que era vendido para os consumidores, os fabricantes lançavam versões de rua com as especificações que precisavam para as pistas — eram, na prática, especiais de homologação. Essas versões vinham com motores mais potentes, suspensão recalibrada e tanque de combustível maior.
Imagine você: eram carros dos anos 1970, capazes de viajar a mais de 200 km/h nas rodovias sem limites que a Austrália tinha na época. E eles não eram caros como Ferrari e Porsche, mas versões de alto desempenho dos carros mais comuns do país. Eram carros relativamente acessíveis a qualquer motorista.
Mas não foram apenas os carros os responsáveis pela guerra contra a velocidade. A famosa foto, feita a bordo de um Ford Falcon GT-HO Phase III a 145 mph (233 km/h) na rodovia Hume — que só tinha limites perto de áreas urbanas — deu origem à guerra contra a velocidade. Não que a foto fosse necessária para inspirar a turma. A própria matéria de apresentação do Falcon GT-HO Phase III era um estímulo ao hooning — um termo que, não por acaso, nasceu na Austrália para designar esse comportamento, digamos, mais “liberal” ao volante. A Ford havia acabado de fazer o primeiro lote do Phase III e separou uma unidade para a revista Wheels em sua sede, em Broadmeadows, próximo a Melbourne. Nichols e Kuessner estavam em Sidney a 880 km de distância, e tinham até o fim do expediente para buscar o carro.
Por sorte eles estavam avaliando um Bolwell Nagari, um esportivo de fibra de vidro com motor Ford de cinco litros, e conseguiram chegar a tempo. Depois disso, a dupla partiu de volta para Melbourne, o repórter com o Falcon e o fotógrafo com o Nagari. Durante a viagem o desempenho do GT-HO Phase III surpreendeu a dupla — mesmo sendo 600 kg mais pesado o Falcon deixava o Bolwell para trás com facilidade e ao mesmo tempo conseguia ser dócil no tráfego de Melbourne.
Na manhã seguinte eles pegaram os dois carros foram a uma estrada vazia para fazer os testes de desempenho. O Phase III não surpreendeu apenas nas retas, o controle de carroceria, direção e frenagem também superou as expectativas. Em curvas feitas a 180 km/h o carro mantinha o comportamento neutro apesar de ter um pouco rolagem da carroceria.
Após as tomadas de tempo começou a chover, a dupla aproveitou para devolver o Bolwell Nagari e foi passar a noite em Albury, cidade que fica a 320 km da fábrica da Ford. Os jornalistas se divertiram com o carro nas estradas desertas e molhadas a caminho de Albury durante a noite e chegaram tarde.
Nichols e Kuessner acordaram às 6:30 tinham até as 9:00 para entregar o carro na Ford e pegar uma carona para Sidney com um funcionário. Eles foram para um posto, encheram o tanque de 164 litros, calibraram os pneus, limparam os vidros e partiram para Broadmeadows. A velocidade de cruzeiro na rodovia Hume era de 200 km/h, que o carro mantinha com facilidade e solidez, sendo comparado pelos jornalistas a uma locomotiva.
Em uma parte da viagem o fotógrafo foi para o banco traseiro fazer a foto do velocímetro no final da escala. Depois de conseguir a foto Nichols baixou a velocidade para 225 km/h e manteve por um tempo. Os jornalistas conseguiram chegar na Ford com alguns minutos de antecedência, atravessando a Hume em tempo recorde. O que eles não gostaram no carro? A falta do lampejador de farol alto, o fading dos freios e a média de consumo de 2,8 km/l durante a viagem.
A foto do velocímetro do Falcon no final da escala não foi bem vista pelo editor da revista, e acabou trocada por outra feita a 104 mph (167 km/h, velocidade máxima da terceira marcha) na publicação. A foto original, contudo, vazou e virou estampa de camisetas e pôsteres de entusiastas que eram contra as leis que impunham limites de velocidade nas rodovias australianas.
A ascensão do Falcon GT-HO
O Falcon GT fez sucesso em Bathurst desde que foi lançado em 1967, com uma vitória muito disputada de dois Falcons sobre três Alfa Romeos, consolidando uma boa imagem de campeão para o carro. O GT-HO (Gran Turismo Handling Option) nasceu como versão de homologação do Falcon com motor 351 Windsor de 304 cv em 1969, ele saía de fábrica quase pronto para correr, com carburador de corpo quádruplo, molas e amortecedores mais firmes, barra estabilizadora de maior diâmetro e tanque de combustível de 164 litros.
Por causa do desgaste acentuado dos pneus o Falcon não foi campeão da Bathurst de 69, conseguindo apenas a segunda posição, atrás de um Holden Monaro 350. O GT-HO Phase II de 1970 trazia o motor 351 Cleveland com carburador e taxa de compressão maiores, a potência era divulgada como 304 cv também. Ele conseguiu as duas primeiras posições na Bathurst de 1970, com Allan Moffat dominando a corrida de ponta a ponta e correndo as seis horas e 33 minutos sozinho, sem parar para trocar piloto – era muito comum dois pilotos dividir um carro na Bathurst para evitar a fadiga.
O Falcon GT-HO Phase III de 1971 foi o carro de homologação mais extremo já feito até então na Austrália. O V8 Cleveland recebeu taxa de compressão e carburadores maiores, comando mais bravo, escape menos restrito, splitter dianteiro e spoiler traseiro funcionais, suspensão mais firme, barra estabilizadora traseira, discos de freio maiores na dianteira, rodas de liga leve de 15 polegadas e diferencial de deslizamento limitado. Essas melhorias faziam o 351 produzir por volta de 390 cv (o número oficial continuava 304 cv).
Essas melhorias faziam o Falcon gastar apenas 6,4 segundos para atingir 100 km/h partindo da imobilidade. O quarto de milha era feito em 14,2 segundos e a velocidade máxima era de 225 km/h com o limitador original a 6.150 rpm, nas versões de corrida esse limitador era removido e o carro girava até 7 mil rpm com segurança e beirava os 250 km/h na Conrod. Foi o sedan mais rápido do mundo até o lançamento do Lotus Omega. O Phase III ficou com as três primeiras colocações da Bathurst de 71, com Allan Moffat liderando mais uma vez, terminando a corrida com 1 volta de vantagem e quase 30 minutos mais rápido que no ano anterior, completando as 500 milhas em 6 horas e 9 minutos.
Em 1972 foi lançada a nova geração do Falcon, todo projetado na Austrália e com estilo mais moderno e aerodinâmico. Junto dele viria o GT-HO Phase IV, com ainda mais potência no 351 Cleveland, por volta de 410 cv, amortecedores Koni e velocidade máxima superior a 250 km/h. O Phase IV teve destino parecido com o do Torana V8, mas quatro unidades saíram da linha de montagem, três preparados para corrida e um de rua. Um dos Phase IV foi destruído em 1980 numa competição de rally, as remanescentes pertencem a colecionadores e sempre marcam presenças nos principais encontros de carros antigos da Asutrália.
Para não ficar sem participar da Bathurst a Ford fez mais 200 unidades do Phase III necessárias para a homologação. Allan Moffat largou na pole, mas a chuva atrapalhou o desempenho do Falcon e favoreceu o Torana. Um GT-HO terminou em segundo e Allan Moffat ficou longe do pódio na nona colocação.
A resposta da Chrysler…
Enquanto isso, Chrysler apostava no Valiant, um primo do nosso Dodge Dart que começou a ser fabricado na Austrália em 1962. No final dos anos 1960 a Chrysler australiana finalizou o projeto de um seis-em-linha abandonado pela matriz americana. Esse motor tinha câmaras de combustão hemisféricas, opções de 215 pol³ (3,5 litros) e 265 pol³ (4,3 litros), e foi lançado em 1970 do Valiant VG — ainda derivado do modelo americano. No ano seguinte foi apresentada a geração VH do Valiant, a primeira projetada exclusivamente para a Austrália.
O projeto local deu origem a uma variação de entre-eixos encurtado e carroceria cupê-fastback: o Valiant Charger R/T. O sobrenome deixava claro: era um carro de rua feito para as pistas — R/T: road and track —, que substituiria o Valiant Pacer. O motor dos carros de corrida eram sempre o seis-cilindros Hemi 265 com três carburadores Weber DCOE, que produzia 284 cv.
Para 1972 a Chrysler estudava o uso do V8 340 (5,6 litros) importado dos EUA, com potência e torque superiores aos do seis cilindros, mas o peso extra na dianteira prejudicava o comportamento dinâmico e fazia do Charger 340 mais lento que o 265 nas pistas. Com uma grande quantidade desse V8 já importadas, a Chrysler acabou oferecendo-o como opção para o Charger 770 SE, versão de luxo do coupé, equipada apenas com câmbio automático.
Para a temporada de 1972, o Charger R/T recebeu um novo pacote que incluía câmbio manual de quatro marchas, tanque de combustível de 160 litros e melhorias no motor 265 que elevaram a potência para 306 cv. As mudanças fizeram do Charger R/T E49 o carro mais rápido da Austrália e o seis-cilindros mais potente do mundo, precisando de apenas 6,2 segundos para atingir 100 km/h e 14,1 s para o quarto-de-milha, sendo superado apenas em 1976 pelo Porsche 930.
… e da Holden
No começo dessa história, quem acelerava nas pistas pela Holden era o Monaro GTS, um cupê médio com motor V8 da Chevrolet americana. Para 1970 ela fez a ousada decisão de usar o compacto Torana como carro de corrida na Bathurst. O Torana era um carro de tração traseira com medidas próximas às do Chevette, que podia vir com motor quatro cilindros Vauxhall de 1,2 a 1,6 litros ou com um seis-em-linha de 2,2 a 3 litros projetados pela Holden.
A versão de pista do Torana foi desenvolvida pela Holden em conjunto com Harry Firth, da equipe Holden Dealer Team. O motor escolhido foi o maior disponível — claro —, que recebia três carburaores Zenith-Stromberg CD-150, cabeçote com fluxo retrabalhado, comando de maior graduação, câmbio de quatro marchas, rodas e pneus mais largos e spoiler “ducktail”.
O carro foi batizado Torana GTR XU-1 e produzia 162 cv na versão básica e 182 cv com o pacote Bathurst. Não eram números expressivos — especialmente perto dos rivais, que já chegavam aos 300 cv. Mas, sendo compacto e mais leve, a principal vantagem do Torana era a boa relação peso/potência, que o tornava muito mais ágil. Na sua primeira participação da Bathurst o GTR XU-1 ficou em terceiro, atrás de dois Falcon, e, no ano seguinte, em quarto lugar, também atrás dos Falcon, mas superando os Chrysler.
Para 1972 a HDT colocou o V8 308 da Holden no Torana, com potência na casa dos 300 cv. O protótipo correu em algumas corridas da Sports Sedan, chegando a atingir 272 km/h na reta Conrod de Mt. Panorama. De acordo com Harry Firth o Torana V8 tinha comportamento superior ao do seis-cilindros e podia ser vendido como carro de rua. O problema é que ele era o carro certo na hora errada.
“Em breve, os super carros de 260 km/h”
A foto do velocímetro no fim da escala já circulava entre os entusiastas. Mas em 25 de junho de 1972, o jornal Sun-Herald estampou em sua capa: “Em breve, os supercarros de 260 km/h”, referente a um artigo de Evan Green, jornalista e ex-piloto, que antecipava o lançamento das versões de homologação da Ford, Holden e Chrysler — essencialmente, sedãs familiares capazes de passar dos 250 km/h. A notícia deveria causar uma grande expectativa no público, mas acabou atraindo a atenção do ministro dos transportes do território de New South Wales (NSW), Milton Morris, apelidado como “sr. Segurança Rodoviária”.

Devido ao tamanho do país, a maior parte das estradas australianas cortava regiões inabitadas e não tinham limite de velocidade — havia um limite de 110 km/h somente próximo às áreas urbanas. Em NSW não era diferente e, além de reforçar a fiscalização, e iniciar uma campanha pela imposição de limites rurais, o ministro Morris também começou uma campanha de banimento desses carros. O ministro dos transportes do território de Queensland, Kevin W. Hooper, juntou-se ao coro do banimento dos “esportivos de marcas populares que excediam 210 km/h”.
Na quinta-Feira, dia 29 de junho, a Confederação de Automobilismo Australiana anunciou o fim das categorias de carros produzidos em série, substituindo elas por categorias onde haviam mais liberdade para modificação dos carros de pista e não precisavam de unidades de homologação. Esse dia ficou marcado como a morte dos supercarros australianos. Os fabricantes pararam o desenvolvimento de seus supercarros com receio de perder as vendas para frotas do governo.

No dia 30 a imprensa entrou em contato com os fabricantes, a assessoria da Holden alegou ter abandonado o projeto do Torana V8 “por causa da preocupação expressa pelos líderes do governo”, a Ford disse que “estava considerando a situação” e a Chrysler apenas falou que “o Charger R/T não é um supercarro”. No dia seguinte a Ford anunciou que não iria continuar a produção do GT-HO e seguiria orientações do governo para a produção de carros esportivos. A Ford e a Holden continuaram investindo em suas equipes de competição, enquanto a Chrysler desistia dos esportivos e passou a focar em carros de luxo, algumas equipes ainda se aventuravam com o Charger R/T E49, mas sem apoio da fábrica.
Em 1º de julho, a Ford anunciou oficialmente: o GT-HO Phase IV não veria a luz do dia. Apenas quatro unidades foram produzidas — três de corrida e uma de rua. Hoje, relíquias incalculáveis. O Torana V8 teve seus protótipos destruídos. A Chrysler desistiu de insistir. Em menos de uma semana, a “guerra dos supercarros” estava morta.

O impacto foi imediato. A Bathurst de 1972 viu a vitória de Peter Brock no Torana GTR XU-1 de seis cilindros, mas o tempo dos sedãs de rua com desempenho de supercarros já havia acabado, não por falta de engenheiros, mas pela mão pesada da política.
O Falcon seguiu vivo até 2016, o Commodore até 2017, mas jamais tão extremos quanto os Phase III ou o Torana V8 que nunca competiu. A Holden desapareceu, a Ford abandonou a produção local e a Chrysler já havia fechado as portas nos anos 1980. Tudo o que restou, é a história — uma grande história — de uma época em que a indústria era tão ousada que as pessoas se questionaram se eles não tinham exagerado na dose. Talvez sim. Talvez fosse mesmo velocidade demais para aquele tipo de carro, naquele tipo de estrada. Mas ao menos havia a possibilidade de se projetar um carro como aqueles, sem as balizas legais que hoje nos impedem até mesmo de sonhar com algo parecido.
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