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Mercado e Indústria

Tabela, anúncios e mundo real: o preço dos carros usados já está caindo?

“Quanto custa um Punto T-Jet?” Foi o que eu me perguntei enquanto fazia o guia de compra da dupla de hatches turbinados da Fiat há alguns dias. Eu já havia revirado todos os anúncios possíveis na internet, tabelas de referências de preços, mas não consegui chegar a valores médios plausíveis para o modelo. Os extremos estavam distantes demais e a média estava muito alta quando comparada aos rivais diretos e indiretos. Há uma clara distorção no mercado — e não só em relação ao Punto T-Jet.

O cenário é compreensível: passamos por dois anos de instabilidade econômica, interrupção completa da cadeia produtiva e de distribuição, dinheiro aos montes injetados pelos governos nas economias locais e isso tudo produziu inflação generalizada em todo o mundo. E, como se não bastasse, há duas disputas geopolíticas interferindo nos preços de coisas novas até agora — uma na Ucrânia e outra em Taiwan. Os carros não ficariam imunes a toda essa instabilidade.

Fiat Punto T-Jet e Bravo T-Jet: Guia de Compra

Isso explica, em parte, a impossibilidade de se encontrar uma média fidedigna dos preços praticados no mercado. Mas há muito mais entre o céu e a terra quando se fala em preços de carros usados.

 

As tabelas

A primeira coisa que você deve ter pensado (eu pensei) foi na tabela de preços médios da Fipe, que é a referência de preços mais comum do mercado brasileiro — ao menos para pessoa física. Ela, afinal, é a referência de preços para seguradoras e para o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores, o famigerado IPVA. Ela é uma média fidedigna, não?

Nesse caso, neste momento, não é. E isso se deve justamente à instabilidade do mercado. Entre os dados coletados para chegar aos valores médios de sua tabela a Fipe usa valores de anúncios públicos, além de pesquisas feitas com lojistas e revendas de veículos. Isso significa, na prática, que ao mesmo tempo em que orienta o mercado, a tabela Fipe também é influenciada por ele.

Se há um movimento de alta generalizada, a Fipe acabará considerando esta alta. Evidentemente há mecanismos estatísticos para evitar que uma ação coordenada por grupos de pressão influenciem os preços. Sabe aquela turma que combina de aumentar o preço do clubinho no grupo do Whatsapp? A confirmação de dados contorna isso.

Em períodos mais estáveis, a Fipe acaba sendo um retrato fiel do mercado, uma foto do que aconteceu nos meses anteriores — há uma média de preços, se o seu carro estiver nas condições que o mercado considera “na média”, ele vale mais ou menos o valor da Fipe. Se ele estiver acima da média, vale mais. Se estiver abaixo, vale menos. É simples.

Mas não estamos em um período estável. O mercado não pára de se mexer, então a foto feita pela Fipe sai tremida. Lembra quando a Fipe disparou em meados de 2021? Primeiro veio a inflação que elevou os preços dos carros novos. Isso puxou para cima o preço dos carros usados “semi-novos” (aqueles de até três anos, com baixa quilometragem etc). A Fipe captou essa alta e atualizou sua tabela.

Depois, tivemos as paralisações devido à crise na cadeia de suprimentos. A demanda, mesmo reduzida, se tornou maior que a oferta. Filas de espera se formaram. Quem precisava de um carro novo logo foi para o plano B: os semi-novos. E aí os preços subiram a ponto de ficar mais caros que o dos novos — afinal, a urgência tem seu preço. E a Fipe captou isso.

E ali chegamos à parte em que a Fipe começa a influenciar o mercado, depois de ser influenciada por ele: se a Fipe está subindo, meu carro vale mais. Só que há um detalhe: lembra que a Fipe não se baseia apenas em valores anunciados? Pois à medida em que há a verificação de valores reais, a tabela foi se reajustando para ficar mais próxima da realidade. Esse processo, contudo, leva tempo para acontecer, porque a atualização da tabela é mensal, então o que ela mostra hoje aconteceu no mercado há 30 dias ou mais.

Ou seja: se os carros estão encalhados pelos preços anunciados, ela só vai captar isso depois de meses. E é por isso que há tanta variação de preços: alguns vendedores adequaram os valores à demanda real, outros chegaram agora ainda guiados pela tabela baseada nos dados de 30, 45, 50 dias atrás.

Para trazer ainda mais distorções, o menor volume de anúncios e transações realizadas traz imprecisão para o resultado. Ou seja: se há carros anunciados por valores que ninguém paga, não há transações reais para ajustar o valor médio, então ocorre a diferença entre o valor da tabela e o valor praticado no mundo real nas poucas transações que ocorrem.

Por que os preços dos carros usados não caíram se as vendas diminuíram?

É por isso que grandes revendedores de carros — sejam eles redes, concessionárias ou lojas independentes— usam em tabelas alternativas, baseadas em valores praticados nas lojas (os valores de venda, não de anúncio). Estas tendem a ser mais precisas como referência de preços para os lojistas, mas, novamente, carros de nicho, com menor volume de transações podem ter seus valores reais diferentes dos apontados na tabela de referência.

Hoje, as duas tabelas de preços de referência mais usadas pelo mercado como alternativa à tabela da Fipe são as tabelas da Kelley Blue Book Brasil (KBB) e a tabela Molicar. Ambas levam em consideração fatores que não são incluídos na metodologia da Fipe, como a quilometragem do veículo, pacotes de equipamentos e estado geral de conservação. Apesar de trazer referências mais precisas para o mercado, elas também podem ter algumas distorções nas referências devido ao eventual volume reduzido de transações.

 

Então… quais são os preços dos carros no mundo real?

Com o método básico das tabelas de referência explicado, acho que fica claro o que está acontecendo com o mercado. O vendedor anuncia o carro X por R$ 50.000, porque o novo custa R$ 100.000. A Fipe indica que o valor médio é R$ 38.000, mas o novo custa R$ 100.000, então nem faz sentido vender por tão pouco.

Um segundo vendedor vê que estão anunciando um carro igual ao seu por R$ 50.000, porém com quilometragem mais alta, então ele anuncia o seu por R$ 55.000. Então vem um terceiro vendedor, com mais urgência, encontra um anúncio por R$ 50.000, outro por R$ 55.000 e decide vender por R$ 47.000. E esse comportamento vai sendo repetido a cada novo anúncio.

Acontece que, apesar de ser um bem, o automóvel é um passivo financeiro: ele gera despesas. Se você não vendê-lo em um prazo razoável, terá de fazer uma manutenção preventiva para vender, ou oferecer desconto por não tê-la feito. Em certa altura, será mais vantajoso financeiramente vender o carro com desconto, do que desembolsar dinheiro em licenciamento, manutenção e imposto. Todo lojista, por exemplo, sabe que estoque parado é dinheiro perdido.

Em algum momento um ou mais vendedores começarão a adequar o preço à baixa demanda. Se o carro não vende por R$ 50.000, talvez seja uma boa anunciar por R$ 47.000. Passaram-se três semanas e nada de ofertas? Bem, é uma evidência de que talvez ele não valha tudo isso no mundo real.

Foi esse tipo de inconsistência que me levou a publicar o guia de compra sem uma referência de preços. E também foi o que me levou a questionar quais são os preços praticados no mundo real — “quão distantes os preços praticados estão das tabelas de referência mais populares?”

Ao longo dos últimos cinco dias eu conversei com mais de 60 proprietários de veículos que venderam ou compraram (ou as duas coisas) para descobrir como foram as negociações. Fiz duas perguntas básicas: a primeira questionava se o valor do anúncio estava na média, abaixo ou acima dos valores médios da tabela Fipe. A segunda questionava se o valor final da transação foi o mesmo anunciado ou se houve desconto.

Analisando todos os casos, cheguei ao seguinte cenário:

  • A maioria dos carros é anunciada pelos valores de referência da Fipe, alguns, contudo, por apresentarem baixa quilometragem ou um pacote de equipamentos mais desejável, são anunciados acima do valor da tabela;
  • Carros 2019, 2020, 2021 e 2022 (os chamados semi-novos) são negociados por valores iguais ou muito próximos aos da tabela Fipe;
  • Carros de 2018 ou mais antigos, contudo, são negociados abaixo do valor de referência da Fipe — quanto mais antigos, maiores os descontos;
  • Utilitários são anunciados por valores acima da tabela Fipe.

O primeiro ponto, o anúncio por valores da tabela Fipe, é algo esperado. A tabela Fipe é a mais conhecida e a mais acessível ao grande público. Além disso, é a referência para as seguradoras, então é natural que o público se guie por ela em um primeiro momento. Também é natural e esperado que carros acima da média sejam anunciados por valores acima da média.

Quanto aos valores reais, ficou evidente que os carros que foram comprados novos já muito próximos da crise da pandemia foram os que mais retiveram valores. A maioria destes semi-novos teve uma pequena desvalorização real, porque a alta dos preços minimizou a perda para a inflação, outros, contudo, chegaram a custar mais do que quando novos, mesmo considerando a inflação no período.

Veja variação real dos preços dos carros usados

A alta dos preços dos carros novos e também a produção inferior à demanda, que causou filas de espera, fez com que as pessoa procurassem estes semi-novos e esta demanda segurou os preços mais próximos dos valores de referência, como já mencionei mais acima.

Já os carros mais antigos, por não serem semi-novos, têm menos demanda. Eles também tinham preços de referência anteriores à “inflação pandêmica” então em um primeiro momento os vendedores tentaram fazer os preços acompanharem a alta, mas com a baixa demanda pelos preços anunciados, os valores começaram a cair.

Os utilitários e blindados estão realmente valorizados: o preço dos blindados novos subiu exponencialmente porque ele é composto pelo preço do carro novo mais o preço da blindagem, e ambos subiram. Então os usados blindados tiveram um aumento na demanda e, por isso, estão realmente valorizados.

Os utilitários seguem a mesma lógica dos novos, porém com menos opções de picapes compactas, o preço das usadas disparou. A Ford Courier, que não é fabricada desde 2012, é vendida acima dos R$ 25.000 e pode chegar perto dos R$ 45.000 dependendo do ano e estado de conservação.

Por outro lado, os SUV a diesel, devido à queda no preço da gasolina e do etanol, estão com menor demanda e, por isso, estão sendo vendidos por entre 10% e 15% abaixo da tabela.

Outro fator que impactou os preços reais destes carros: a taxa de juros para financiamento de usados está alta. Some isso às incertezas sobre o cenário econômico nacional e global e o resultado é que uma parte considerável dos consumidores está guardando dinheiro para comprar a vista em vez de se endividar para comprar um carro inflacionado. Os pagamentos a vista, neste cenário, permitem propostas de desconto mais agressivas, resultando em vendas entre 5% e 15% abaixo do valor anunciado.

Essa regra, contudo, tem sua exceção: os carros mais antigos (2018 ou anteriores) são vendidos por preços mais próximos da tabela de referência caso sejam modelos especiais, modelos de nicho ou modelos com algum pacote de equipamentos diferenciado, além, claro, da baixa quilometragem e estado de conservação acima da média.

Considerando todos estes fatores, concluo o seguinte: nossa frota envelheceu devido à crise que se iniciou em 2014 e mostrava sinais de recuperação em 2019 e, claro, aos efeitos da pandemia. Um carro de três anos, que é a idade máxima em que eles são considerado semi-novos, é um carro lançado em 2019 — em breve, serão os carros novos da época da pandemia. Como esta é a faixa mais procurada, eles são mais valorizados.

Os carros anteriores têm menos demanda, e não vão acompanhar a inflação, porque são carros usados e carros usados envelhecem e se desvalorizam e essa é a ordem natural do mercado. Não dá para fingir que eles ainda estão valorizados por causa da inflação do carro novo, enquanto aqueles carros novos inflacionados de outrora já estão no mercado de usados e a oferta de carros novos está, aos poucos, se normalizando.

Por isso, é muito provável que o preço médio dos carros usados continue caindo e o “buraco” que se formou na faixa de preços reais entre os modelos “pré-pandêmicos” e os “pós-pandêmicos” acabe se equilibrando naturalmente de forma gradual.