FlatOut!
Image default
Car Culture

Tommykaira ZZ II – a lenda do maior carro que nunca existiu

Por mais de sete décadas a indústria automobilística do Japão foi uma mera copiadora e minaturizadora de produtos ocidentais. Seus carros e motos, quando não eram apenas cópias adaptadas às condições locais, eram versões compactas de projetos americanos e europeus. Isso começou a mudar nos anos 1970, quando a engenharia japonesa começou a desenvolver suas próprias soluções para os novos problemas que surgiram naquele horizonte — em especial a crise do petróleo.

Eu costumo dizer que o Japão “foi inventado” nessa época: seus carros compactos e médios começaram a conquistar o público ocidental com uma combinação de eficiência e confiabilidade jamais vista até então — e que mudaria para sempre o mercado de automóveis.

Além disso, nos anos 1980 o Japão chegou ao auge de um período de prosperidade que ficou conhecido como o “milagre econômico japonês”. Foi quando o mercado local atingiu sua maturidade, deixando de lado a “inspiração” nos carros ocidentais e criando sua própria identidade e até mesmo nichos de mercado – como os esportivos “kei” e as marcas de alto padrão exclusivas do mercado interno.

Era o período dos “JDM Legends”. O Skyline GT-R R32 esmagava europeus em Nürburgring com tração integral e um computador no porta-malas. A Mazda conquistou Le Mans e reinventou o Wankel com o RX-7. O NSX fazia a Ferrari parecer antiquada. Mas havia também um submundo fervilhante, onde pequenas empresas de tuning se comportavam como casas de alta-costura automotiva.

Entre elas estava uma empresa chamada Tommykaira. Escondida entre Kyioto e Osaka, ela foi inaugurada em 1986 e se especializou na modificação e preparação dos esportivos locais da época, como os Nissan Skyline e Silvia. Seu nome vinha da fusão dos sobrenomes de seus fundadores, Yoshikazu Tomita e Kikuo Kaira — o primeiro, um empresário discreto; o segundo, um engenheiro genial que havia trabalhado na Nissan na Yamaha. Desde o início, a filosofia de ambos era simples: melhorar tudo o que os fabricantes colocavam de melhor nas ruas.

O primeiro sucesso da dupla veio em 1987 na forma de um Mercedes-Benz 190E 2.0 preparado para produzir 153 cv e com suspensão e freios recalibrados, batizado Tommykaira M19. Depois,em 1988, veio o Tommykaira M30, um Skyline R317 com motor RB30E de 240 cv e um refinamento dinâmico que envergonhava a própria Nissan. A cada ano a empresa criava novos projetos e ampliava seu portfólio. Até que, em 1995, eles deram um salto mais ousado: além de refinar as criações alheias, eles também queriam criar suas próprias máquinas. Foi assim que nasceu…

 

… o Tommykaira ZZ.

Lançado em 1996, ele usava um chassi de alumínio extrudado, que pesava menos de 80 kg. O motor era um Nissan SR20DE 2.0 de 178 cv, conectado a um câmbio de cinco marchas ligado ao eixo traseiro. Era um roadster com jeito de protótipo de Le Mans aberto — leve, responsivo e sem firulas. Tinha só 670 kg – o mesmo que um Lotus Seven —, e acelerava de zero a 100 km/h em 4,8 segundos. Não era exatamente um carro de rua no sentido moderno, pois além de não ter teto, ele não tinha assistência alguma. Era essencialmente um kart com porta-malas. Exatamente o que a Tommykaira pretendia oferecer: um carro que tivesse conexão quase telepática com o piloto.

O governo japonês, no entanto, não estava tão empolgado. Por causa das leis de segurança cada vez mais rígidas, a homologação do ZZ para uso no Japão se tornou inviável. Sem airbags, zonas de deformação e reforços estruturais, o carro simplesmente não poderia rodar nas ruas japonesas. A saída? Produzir o carro no único país do mundo que homologa até mesmo um sofá motorizado sobre rodas: o Reino Unido.

Lá, o ZZ ganhou o nome de “Tommykaira ZZ by Autobacs” e foi vendido como carro de track day ou como kit-car. Foram feitas pouquíssimas unidades — algo entre 200 e 250 exemplares. No fundo, o ZZ era só o começo. Um ensaio para um salto ainda maior. Em meados de 1999, Tomita e Kaira já estavam trabalhando no que seria a evolução natural do ZZ. Um carro que combinasse leveza, potência e tração integral. Um carro que batesse de frente com a McLaren, com a Porsche, com a Ferrari. Um supercarro. E ele já tinha até nome: Tommykaira ZZ II.

O plano era simples e insano ao mesmo tempo: fazer o supercarro japonês definitivo, que não devia nada aos maiores nomes das ruas e pistas. Só que para isso, eles teriam que ir além dos limites da lógica — e do capital.

 

Next Stage – ZZ II

O nome ZZ II sugeria uma continuação, mas os dois carros eram exatos opostos: onde o ZZ era minimalista, o ZZ II seria elaborado. Enquanto o ZZ evitava peso, o ZZ II usaria força bruta. Enquanto o ZZ confiava em tração traseira e pneus finos, o ZZ II seria um animal de tração integral. Ele teria motor turbo, carroceria aerodinâmica de alumínio e fibra de carbono, e desempenho para enfrentar qualquer supercarro da virada do milênio. Não por acaso, ele foi pensado para andar lado a lado com 911 Turbo, F355, NSX Type-R e até o McLaren F1 — mesmo que fosse mais acessível, mais funcional, mais… japonês.

A alma do ZZ II estava sob o capô traseiro, ou melhor, entre os dois eixos — o motor escolhido foi o lendário RB26DETT da Nissan. Um seis-em-linha de 2,6 litros, duplo comando no cabeçote, dois turbos e 550 cv. Esse era o coração do Skyline GT-R, o “Godzilla”, e agora seria transplantado para um chassi ultraleve com proporções de carro-conceito. O sistema de tração integral ATTESA E-TS da Nissan, também foi levado para o ZZ II. Era o mesmo sistema usado no R34 GT-R, com vetorização de torque, diferencial central ativo e distribuição de tração variável em tempo real.

A carroceria era uma aula de engenharia: monocoque de alumínio, reforçado com fibra de carbono nos pontos de maior esforço, suspensão de braços triangulares sobrepostos nos quatro cantos, amortecedores ajustáveis e geometria pensada para uso em pista e rua. O design da carroceria, com frente baixa e longilínea, curvas fluidas e tomadas de ar funcionais, remetia a um híbrido entre os supercarros europeus e o universo do Gran Turismo.

Não era coincidência: o ZZ II foi projetado com a aerodinâmica em mente, com coeficiente de arrasto baixo (0,33), mas também com downforce gerada pela carroceria, difusores traseiros e um assoalho plano. O carro pesava pouco mais de 1.000 kg, o que, aliado aos 550 cv do motor RB26, proporcionava uma relação peso-potência comparável à de um Ferrari 360 Challenge Stradale.

A aceleração de 0 a 100 km/h era estimada em 3,2 segundos. A velocidade máxima ultrapassava os 320 km/h. Mas o mais impressionante era o equilíbrio dinâmico e a sutileza na entrega de potência. Segundo relatos dos poucos que dirigiram os protótipos, ele fazia curvas como um Elise e acelerava como um GT-R — uma combinação que parecia impossível no papel, mas real ao volante do ZZ II.

Ou não tão real assim, uma vez que a realidade é implacável. Apesar de pronto, testado, elogiado e desejado, o ZZ II nunca entrou em produção. A Tommykaira, já pressionada por custos e sem uma rede de distribuição global, enfrentava uma barreira intransponível, formada por problemas de homologação, falta de capital e incapacidade de produzir em escala industrial. A complexidade do projeto exigia um investimento que só grandes fabricantes poderiam bancar.  O único exemplar completo, um protótipo funcional, apareceu em salões e foi dirigido por jornalistas seletos.

 

A eternidade digital

Se o Tommykaira ZZII tivesse sido lançado, talvez hoje falássemos dele com o mesmo entusiasmo com o qual falamos do Pagani Zonda, o Koenigsegg CC8S ou o Bugatti EB110. Mas a história que ele escreveu foi silenciosa, quase invisível — uma obra-prima esquecida antes de ser pendurada na parede do mundo real.

O carro estava pronto. O protótipo funcional existia, circulava em eventos, fazia testes. A imprensa japonesa especializada havia tido acesso a ele, inclusive em track days. Os números eram reais. Os elogios, também. Mas a falta de escala industrial matou o sonho do ZZ II. A Tommykaira, naquele ponto, era mais uma casa de preparação do que uma fabricante.

A tentativa de produção em parceria com a Autobacs Seven Co. Ltd., gigante do mercado de peças e acessórios, chegou a avançar, mas os custos para tornar o ZZ II um produto homologado, com produção em série, documentação e atendimento aos regulamentos de segurança internacionais, eram gigantescos. A conta simplesmente não fechava.

A Autobacs comprou os direitos do projeto e o protótipo, e ali a história material chegou ao fim. O carro foi trancado em um showroom privado da empresa, em Tóquio, onde ainda repousa — limpo, intacto, reluzente — mas mudo. Um fantasma engaiolado em vidro, longe das curvas que ele nasceu para devorar. O ZZ II, no mundo físico, teve um destino trágico. Mas o mundo digital ofereceu outra estrada.

Em 2001, enquanto a Tommykaira encerrava suas atividades como fabricante, um estúdio japonês chamado Polyphony Digital se preparava para lançar o que seria um dos maiores fenômenos culturais da história do automobilismo: Gran Turismo 3: A-Spec. E ali, discretamente, no meio dos ícones como o Dodge Viper GTS, o Mitsubishi Lancer Evo VI e o Porsche RUF CTR2, estava ele: Tommykaira ZZ II, com 550 cv, tração integral e um ronco que parecia ter saído de um caça F-14 de um liquidificador com o copo aberto. Afinal, é Gran Turismo…

Naquele momento, para toda uma geração de entusiastas que começava a se formar diante de tubos CRT e controles DualShock, o ZZ II se tornava uma lenda. Milhões de jogadores descobriram esse carro que não existia nas ruas, mas que podia vencer Le Mans, derrotar o Skyline R34 na Trial Mountain e carregar a bandeira do Japão em qualquer pista do mundo. Ele não precisava mais ser fabricado — ele já era eterno.

O detalhe mais curioso é que o modelo usado no jogo era incrivelmente fiel ao protótipo real. A Polyphony teve acesso ao carro, aos dados de performance, ao projeto de suspensão e até ao som real do motor. Em tempos pré-digitalização em massa, isso era raríssimo. O ZZ II se tornava, então, o primeiro supercarro da história a ser imortalizado antes mesmo de ser produzido. Era o oposto de tudo que o mercado automobilístico conhecia: um carro que existia mais plenamente no mundo virtual do que no mundo real.

E mesmo assim, tornou-se referência. Foi incluído em diversas sequências da franquia Gran Turismo, sempre desejado, sempre temido. E quando a Tommykaira desapareceu do mapa, o carro continuou. No GT4, o ZZ II foi rebatizado como “Autobacs ZZ II”, por questões de direitos de marca. Mas todo mundo sabia: aquele era o filho de Tomita e Kaira.

Hoje, mais de 20 anos depois, o ZZII continua não-existindo. Nunca entrou em produção. Nunca teve chassi número 001. Nunca teve um emplacamento. Mas, de certa forma, sobreviveu a todos os outros. Enquanto muitos supercarros reais foram esquecidos, o ZZ II é recriado, modificado, admirado e pilotado todos os dias por jogadores e pilotos virtuais. Ele vive em mods para Assetto Corsa, em servidores de Forza Horizon, em vídeos do YouTube com milhares de visualizações, em fanarts que reimaginam versões modernas dele — sempre com o mesmo perfil: largo, baixo, potente, insano.

A Tommykaira acabou. Mas o ZZ II nunca precisou de fábrica. Ele foi salvo por outra coisa: a paixão dos entusiastas.