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Car Culture História

Toyota TS010: o carro que quebrou as costelas de Andy Wallace – e não foi um acidente!

Costuma-se dizer que o automobilismo moderno não tem graça porque ficou “seguro demais”. Que antigamente era muito mais emocionante, porque o risco de sofrer um acidente fatal era muito maior – os carros eram mais ariscos, sem assistências eletrônicas para nada, os equipamentos de segurança não eram tão avançados, e a própria preocupação com o bem-estar dos pilotos era menor.

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É um debate complexo, que já acontece há muito tempo e não deve acabar tão cedo. Há quem diga que é impossível chegar a um equilíbrio perfeito. No fim do dia, não adianta: por natureza, o automobilismo é perigoso. E nunca vai deixar de ser.

Voltando à questão: antigamente, quando o risco era maior, o automobilismo era melhor? A resposta depende de a quem você pergunta. Mas é indiscutível que, antigamente, o automobilismo era mais perigoso. Um carro de corrida podia quebrar suas costelas mesmo se você não sofresse um acidente com ele.

Como? Pergunte a Andy Wallace. Eram dele as costelas que o Toyota TS010 quebrou. Duas.

O Toyota TS010, para quem não lembra, foi um dos primeiros representantes da linhagem que, hoje, está com o Toyota GR010 Hybrid – o carro da Toyota na categoria Le Mans Hypercars (LMH), que vai competir nas 24 Horas de Le Mans de 2021. Estamos bem empolgados com ele, em boa parte, por causa do GR Super Sport, sua versão legalizada para as ruas – algo desnecessário, porque o regulamento deixou de exigir um especial de homologação. Mas a Toyota decidiu fazê-lo mesmo assim, e ficamos contentes com isso.

Tendo estreado em 1992, o Toyota TS010 tende a ficar meio esquecido entre outros carros do Grupo C, como o Porsche 962, o Jaguar XJR-8 ou mesmo o conterrâneo Mazda 787B. Criado para correr nas 24 Horas de Le Mans e no Campeonato Japonês de Protótipos (All Japan Sports Prototype Championship), ele teve como melhor resultado fora do Japão um segundo lugar nas 24 Horas de Le Mans de 1992, atrás do Peugeot 905 da Talbot Sport, mas nada além disso. Em compensação,  fez muito sucesso em casa, conquistando três títulos pela Toyota Team Tom’s, que atuava como equipe de fábrica da Toyota naquela época.

Mas uma coisa podemos falar: como todos os carros do Grupo C, ele era muito bonito. A aerodinâmica dos carros de corrida da década de 1990 não era avançada como hoje – assim, os protótipos certamente não cortavam o ar com a mesma eficácia de hoje, mas eram bem mais elegantes, com linhas limpas e bastante espaço para a identidade própria de cada um. Dois faróis enormes com parábola dupla, saídas de ar no topo dos para-lamas, uma linha contínua até a traseira e caixas de roda cobertas. It’s the 90s, baby!

Mas o belo TS010 também era brutal. Ele não foi o segundo colocado em Le Mans à toa (tudo bem que seis voltas atrás do Peugeot, mas… você entendeu). O motor era um V10 aspirado de 3,5 litros que podia entregar entre 600 cv e 700 cv, dependendo da competição (o regulamento em Le Mans exigia uma potência menor) – e que, mais importante, podia girar a mais de 12.000 rpm. Os cabeçotes com quatro válvulas por cilindro foram usados como laboratório para a tecnologia multiválvulas que a Toyota usa hoje em dia. E sim, ele tinha esse ronco f*da que você está imaginando, mesmo.

Mais um, porque sim:

E o TS010 era um monstro. Um perigo. Um quebrador de costelas.

Andy Wallace, que completou 60 anos em fevereiro último e hoje é o piloto de testes principal da Bugatti, já não era nenhum novato em 1992. Já em 1988, seu primeiro ano em Le Mans, Wallace venceu a corrida com o Jaguar XJR-9 da Tom Walkinshaw Racing. Permanecendo com a Jaguar até 1991, ele ainda foi o segundo colocado na edição de 1990, com o XJR-12.

Quando Wallace foi para a Toyota, em 1992, a FIA havia acabado de mudar o regulamento do Grupo C para limitar o deslocamento dos motores a 3,5 litros – o que praticamente exigiu a adoção de um V10 girador como o que o TS010 usava. Os carros tinham peso mínimo de apenas 750 kg, e o resultado era explosivo.

O causo das costelas quebradas aconteceu em fevereiro de 1992, quando a equipe da Toyota fazia testes com o carro no circuito australiano de Eastern Creek Raceway. Era a pré-temporada, e como a Austrália não ficava tão longe, a equipe acampou no circuito por nove dias.

Eastern Creek hoje se chama Sydney Motorsports Park, e está em condições bem melhores. O circuito de 3,93 km tem uma longa reta dos boxes, e a primeira curva é uma virada bem rápida à esquerda – com o carro certo, é possível contorná-la de pé cravado a mais de 300 km/h. E Wallace estava com o carro certo.

Só que havia um problema: uma elevação no piso bem no meio da curva – uma das grandes. E, por dias e dias, Wallace e seu colega, Hitoshi Ogawa e Kenny Acheson, fizeram o mesmo percurso. O traçado de Eastern Creek era ideal para testar a a resistência. Mas foi cruel com os pilotos.

No último dia, o esforço cobrou seu preço. Ninguém melhor que o próprio Andy Wallace para contar como foi.

“Fizemos testes no sábado, no domingo, a semana inteira e no fim de semana seguinte. E o último dia foi 29 de fevereiro de 1992. Tínhamos dois carros em teste. Um deles estava testando o motor, e o outro realizava testes de resistência. Eu fui primeiro, depois Hitoshi Ogawa e Kenny Acheson.

Nós três ficamos na pista das nove da manhã às seis da tarde por nove dias, e o tempo todo revezávamos para entrar na pista. 

Primeiro: o carro é fantástico. Segundo: a pista é sensacional. Mas eu fiquei dia após dia após dia após dia passando por cima daquela elevação. Finalmente, na manhã do último dia, fiz minha primeira bateria. Faltando três voltas para acabar, passei pela curva e senti minhas costelas racharem. Pensei ‘Caralho! Essa doeu!’ Mas o problema era que nós três estávamos nessa juntos, por muito tempo. Então se eu desistisse antes do fim e colocasse alguém no meu lugar, seria muito rude da minha parte. Todo mundo tinha feito a mesma coisa que eu.”

Resultado: Wallace seguiu em frente, com dor e tudo. “Eu tinha que chegar até o fim, então não desisti. Não estava muito confortável. Enchi o tanque de novo, tentei me ajeitar melhor no banco e fui para a pista de novo. Eu até tentei chegar ao fim da minha segunda sessão, mas estava doendo demais. Então eu entrei nos boxes e o outro piloto entrou no meu lugar”, contou o piloto na entrevista.

E Wallace estava certo em ter reservas a respeito de passar a vez antes da hora. Isso porque o outro piloto, Ogawa, também sentiu a mesma dor, no mesmo local e na mesma altura da pista, minutos depois. Algo errado… não estava certo.

Wallace e Ogawa fizeram exames e descobriram que ambos tinham quebrado as mesmas costelas. Mas o carro era bom. “Então ficamos só com um cara, Kenny Acheson, e os japoneses – uns 50 engenheiros – ficaram tipo ‘Ah, carro muito rápido, carro mais forte que piloto!'”, diverte-se Wallace ao lembrar a história quase trinta anos depois. “Eles estavam felizes demais porque o carro era rápido.”

A reação tipicamente japonesa se justificou: 20 dias depois, nas 12 Horas de Sebring, Andy Wallace e Juan Manuel Fangio II – sim, o filho de Fangio – foram os vencedores pela All American Racers de Dan Gurney, ao volante do Eagle MkIII. Wallace estava todo dolorido, não aguentava nem espirrar, mas se esforçou e venceu a corrida. Ele mais tarde que, quando o carro estava indo rápido, a adrenalina e o downforce se juntavam para deixá-lo mais apertado no banco. Não havia espaço para as fraturas se mexerem, e por isso a dor era mínima. “Atrás do safety car, por outro lado, era terrível.”

Apesar de tudo, Wallace – que já dirigiu dezenas e dezenas de outros carros – sempre foi categórico em dizer que seu favorito foi o… Toyota TS010. Uma maravilha da engenharia, em sua opinião.

As razões para as fraturas dos dois pilotos nunca foram investigadas a fundo, mas o pessoal do site Top Speed observa que há alguns fatores que podem ter contribuído.

O primeiro é o próprio corpo dos pilotos. Como o próprio Wallace disse, foram nove dias de testes intensivos, o dia todo, passando pelo mesmo calombo no asfalto. Quando um atleta se submente a esforços contínuos, os ossos sofrem – e, dependendo da intensidade do esforço, pode ocorrer a chamada fadiga óssea. Colocando de forma simples, a fadiga óssea é um desgaste na estrutura do osso, que resulta em fragilidade e, em última instância, na fratura. São fraturas pequenas, que saram sozinhas e deixam até uma área mais resistente onde o osso se recuperou. Mas a dor é real. E bem dolorida.

No caso, o stress contínuo a que as costelas de Andy Wallace e Hitoshi Ogawa se submetaram foi provavelmente causado pela downforce gigantesca produzida pelo TS010. No modo de baixo arrasto, para atingir maior velocidade, ele produz até 2.100 kg de downforce a 290 km/h. A 322 km/h, sua velocidade máxima, o número chega a 2.600 kg. Mas no modo high downforce, feito para pregar o carro no chão nas curvas, o picopode chegar nos 3.300 kg a 305 km/h.

Imagine-se no lugar dos pilotos da Toyota naquele fevereiro de 1992. Imagine que você passou nove dias no carro, passando a 300 km/h sobre o mesmo ressalto no asfalto várias vezes por dia. Segundo os cálculos da Toyota, o TS010 é capaz de gerar força-G de até 5G a 6G. Ao passar pela elevação, a força-G que atuava sobre o corpo dos pilotos aparecia toda de uma vez – e isso pode ter sido o principal catalisador das fraturas.

Wallace, apesar dos ferimentos, achava isso ótimo – ele diz que a sensação de guiar o TS010 era parecida com a de um carro de Fórmula 1 da época, apesar das diferenças de projeto. E, bem, para o próprio dizer que o TS010 foi seu carro favorito, certamente as qualidades compensavam a tendência a quebrar costelas.

Hoje em dia, dificilmente o GR010 quebraria as costelas de seus pilotos – os carros estão muito mais avançados, isolando muito mais os pilotos das intempéries externas. O automobilismo, como um todo, ficou mais sem graça por isso? É arriscado dizer, mas certamente histórias como essa não acontecerão de novo.