Olá, leitores! Esse artigo têm como objetivo principal fornecer informações técnicas de qualidade, o que hoje em dia na internet é algo bem díficil. Assim como vocês, sou um aficionado por motores e já participei de diversos fóruns, mas a qualidade de informação técnica encontrada sempre me decepcionou.
Hoje tenho a sorte de trabalhar com motores, mas especificamente com o Desenvolvimento de Sistemas de Combustão na empresa Austríaca AVL e também atuar como membro da Comissão Técnica de Motores Otto da SAE (Society of Automotive Engineering).
Como hoje a maioria dos carros usa motores flexíveis em combustível, é neles que vamos nos concentrar, mas os princípios básicos valem para os carros a álcool também. Mas antes de tudo, precisamos conhecer melhor o combustível que chamamos de álcool.
O etanol
O nosso álcool, vendido como E100 na verdade é um combustível considerado como E95 pois o nosso querido país vende etanol hidatrado nas bombas, o qual contêm aproximadamente 5% de água em sua composição.
Calma, isso não significa que o governo permite que alguém coloque 5 ml de água a cada 95 ml de etanol. A água misturada resulta da destilação azeotrópica do etanol, que, nesse processo, chega à sua concentração máxima de 95,63% e 4,37% de água. Além disso há a questão do custo exponencial para a remoção desta água.
Por outro lado, há um ponto positivo nesse percentual de água no etanol: ela ajuda em altas cargas (com o motor cheio), pois é necessário enriquecer menos a mistura (ou seja, usa-se menos combustível) para manter a temperatura de escape dentro dos limites dos componentes (geralmente 900ºC na válvula de escape e 950ºC a 1.000ºC no catalisador).
Abaixo temos uma tabela que compara alguns combustíveis que podem ser encontrados no mundo com o nosso Etanol E95 (nesse caso o E100BR).
Características dos combustíveis
Essa tabela nos mosta dados importantes sobre os combustiveis e gostaria de falar um pouco mais sobre essas características.
RON: sem entrar em detalhes de como é determinado, podemos considerar o RON como um indicativo da capacidade do combustível de resistir a auto inflamação, ou seja, quanto maior o RON mais alta a taxa de compressão pode ser, o que está relacionado ao quão eficiente o motor pode ser. Em um futuro artigo podemos entrar em detalhes sobre a taxa de compressão e os fenômenos resultantes dessa variável (que são muitos).
Já vi na Internet vídeos ensinando a retirar o álcool da gasolina para rodar com gasolina pura (sério, podem procurar no YouTube) alegando que o consumo de combustível será menor. Bom, quanto ao consumo ele realmente tende a melhorar, entretanto a nossa gasolina tupiniquim hoje têm 27% de álcool em sua composição e têm o RON de 95, já a gasolina E10 de fora também têm os mesmos 95 de RON. Ora, se adicionamos 27% de etanol (o que eleva o RON ) e chegamos a um RON 95, isso indica que a nossa gasolina base é muito ruim, o RON dela é bem baixo. Retirando o etanol, o que restará é uma gasolina pura, mas muito ruim. Realmente não recomendo esse tipo de procedimento.
Relação Estequiométrica (Stoich A/F)
O motor, quando em condições normais de funcionamento, tende a ter a mistura ar-combustível estequiométrica. Essa relação depende do combustível que está sendo utilizado e têm impacto direto no consumo. Para uma combustão (caros leitores, por favor sempre usem esse termo. A combustão é uma queima controlada com frente de chama definida e progressiva, a explosão, bom, é uma explosão… e nada explode dentro do motor, ou assim esperamos) com etanol deve-se ter em torno de 8,4 partes de ar para uma parte de combustível e para a gasolina devemos ter cerca de 13 partes de ar para uma parte de gasolina.
Isso indica que precisamos de menos gasolina para reagir com o oxigênio, logo consumimos menos combustível ao longo do deslocamento de ar do motor.
Nos motores modernos, com gerenciamento eletrônico, o motor calcula essa mistura pela famosa sonda lambda. Ela mede os níveis de oxigênio nos gases de escape e, com base nos valores medidos aumenta ou diminui o tempo de injeção de combustível. Quando o valor da lambda está inferior a 1, significa que há uma mistura rica, ou seja, há mais combustível do que oxigênio com o qual ele conseguie reagir. Essa mistura rica reduz a temperatura no escapamento (protegendo coletor de escape, catalisador, turbina etc), gera um pouco mais de torque e pode evitar/diminuir fenômenos de combustão anormal (pré-ignição ou detonação, que é mais conhecido como knock ou “batida de pino”).
A imagem abaixo mostra que o ponto ótimo para a geração de torque está por volta de 0,86~0,88, mas isso pode depender entre os motores, vamos toma-lá apenas como base. Notem que a curva de efficiência cai de uma forma mais abrupta quando o lambda fica maior do que 1, ou seja, mistura pobre, com execesso de ar.
Não entrarei em detalhes sobre emissões, mas o motor deve trabalhar em lambda 1 em parte para permitir a correta conversão catalítica dentro do catalisador. Misturas com lambda menor do que 1 levam a maiores emissões de HC e CO e misturas pobres geram mais NOx. O NOx é um grande problema para o sistema de pós tratamento dos gases, pois o catalisador consegue “segurar” apenas uma quantidade de oxigênio em seu interior (o nome dessa característica é OSC, Oxygen Storage Capacity) após esse limite, a quantidade de NOx que passa pelo catalisador (e vai efetivamente para o ambiente) aumenta muito. A figura abaixo mostra a capacidade de armazenar oxigênio de três catalisadores diferentes, a linha vermelha é um catalisador novo, a linha azul é o catalisador envelhecido com 850°C e a linha preta um catalisador envelhecido com temperatura de operação de 1.050°C.
Aqui vale uma dica: uma prática relativamente comum para “ganhar” potência é a remoção do catalisador, mas é preciso resistir a tentação de ganhar potência gastando pouco. A redução de emissões através dele é brutal e seu veículo irá poluir muito mais sem esse componente. Todos nós podemos fazer a nossa parte para um mundo melhor, e pensar nos outros e no nosso futuro é uma ação muito importante. Por isso, por favor, não retirem o catalisador do carro.
Poder Calorífico Inferior (Low Heating Value – LHV)
De forma geral, essa característica mostra a quantidade de energia que o combustível contêm. O etanol produz muito menos trabalho para uma mesma quantidade de gasolina. Entretanto (principalmente para motores aspirados) a potência com etanol é sempre maior, o que leva algumas pessoas a pensarem que a “potência” do etanol é maior, o que não é verdade.
O ganho de potência do etanol vem principalmente do melhor “combustion phasing”, ou seja, por ter RON mais elevado, é possível esperar até o momento ótimo para gerar a centelha e assim iniciar a combustão. Mas afinal, qual é esse ponto ótimo? Em geral, para o máximo torque do motor ser gerado, 50% da sua massa de ar+combustível deve ser consumida em torno de 7º a 8° (existe uma pequena influência do combustível utilizado) após o ponto morto superior. O diagrama abaixo pode nos ajudar a entender melhor:
Essa figura nos mostra o “Mass Fraction Burned” que nada mais é do que a evolução da queima da massa ar+combustível ao longo da rotação do virabrequim, consequentemente ao longo do curso do pistão.
Para esse caso, a centelha (spark) é disparada com 338° (22° antes do ponto morto superior) o ponto morto superior do pistão é indicado pelo “TDC” (top dead center) que é 360°.
Acompanhando a subida das linhas (é uma para cada cilindro) notamos que temos o consumo da massa ar+combustível a apartir de mais ou menos 348° (existe um delay químico entre a centelha e a queima começar efetivamente) e a queima da mistura evolue até a linha atingir 1, o que significa que 100% da massa foi consumida.
Como dito, o ponto de maior torque é gerado quando a 50% da massa (nesse caso o 0,5) é atingido por volta de 8° depois do ponto morto superior (nesse diagrama 368°).
Sendo assim, podemos notar que para a combustão mostrada nessa figura, quando o motor está com 368° temos por volta de 0,3 (30%) da massa total consumida, ou seja, só por isso já podemos saber que esse motor não está na sua condição de maior torque possível, o que não é o fim do mundo, isso acontece por alguns motivos, sendo o principal é a limitação pelas características anti-detonantes do combustível (RON), mas também isso pode ser utilizado para limitar a pressão gerada dentro do cilindro.
Essa limitação em função da pressão dentro do cilindro é o motivo pelo qual motores turbo flex produzem a mesma potência com etanol ou gasolina — mesmo com um “combustion phase” pior com a gasolina, a eficiência volumétrica (a quantidade de ar dentro do cilindro) é alta o suficiente para que o limitante seja a pressão gerada pela combustão.
Por isso o motor a álcool gera mais potência (na verdade ele gera mais torque — a potência é produto da multiplicação do torque pela rotação) pois a combustão, devido ao alto RON, está (quase) sempre com a sua fase posicionada de forma otimizada. É possível aplicar um avanço “adiantado” para o etanol e garantir que 50% da massa ar+combustível esteja sendo consumida no ponto ótimo, devido a menor octanagem da gasolina, não podemos aplicar o mesmo avanço, e com isso o ponto de 50% da massa combustível acontece geralemente depois do momento ótimo.
Isso deixa claro que se tivermos um carro apenas a gasolina e quisermos passar a rodar com álcool, não adianta apenas fornecer mais combustível, lembrem-se que apenas injetar combubstível não gera mais potência. Se o mesmo avanço de ignição for usado para os dois, como o Etanol possui menos energia, o torque gerado será menor. Deve-se também mudar o avanço aplicado para potencializar o uso do Etanol e dessa forma haver um aumento de performance.
Calor Latente de Vaporização (Latent Heat of Vaporization)
Essa característica é a resposável por tornar a partida a frio um problema para o etanol. O maior valor de LHV indica que para o etanol mudar de fase, ele deve receber mais calor do ambiente do que a gasolina, ou seja, ele precisa que o ar esteja mais quente do que para a gasolina para que a transformação de fase ocorra.
Além dos problemas na partida, durante o aquecimento a dirigibilidade pode ficar bastante prejudicada também devido a dificuldade do etanol em vaporizar.
Uma dica: vale lembrar que a temperatura de vaporização de um fluído depende da pressão ambiente, quanto maior for a pressão, maior é a temperatura para a evaporização e consequentemente quanto menor a pressão, menor a temperatura para vaporização. Um exemplo prático são as panelas de pressão: com maior pressão dentro do recipiente a água continua líquida mesmo com temperaturas bem mais altas do que 100°C.
Levando isso para os nosso motores, o que controla a pressão no coletor de admissão? A borboleta! Quanto mais a borboleta estiver aberta, maior a pressão no coletor (pois ela fica mais perto da pressão atmosférica). Logo, se eu quiser ajudar o combustível a vaporizar, eu devo deixar a borboleta fechada e não aberta! Por isso não adianta pisar totalmente no acelerador para ligar o carro — na verdade o que a ECU faz no momento da partida é fechar a borboleta e não abrir. Nos carros com acelerador eletrônico, se você estiver com dificuldade na partida e pisar no acelerador, a borboleta não irá responder a esse movimento.
Repare as borboletas fechadas durante a partida
Essa característica também possui um lado positivo, pois quando o motor está quente e o etanol é injetado, ele pode “roubar” mais calor do ar do que a gasolina, aumentando a eficência volumétrica e reduzindo a temperatura durante a compressão (isso é válido principalmente para motores com injeção direta, na qual a injeção é feita dentro da câmara, para motores com injeção na porta de admissão). Esse “calor roubado” que o etanol usa vem principalmente das paredes do cabeçote e da válvula, logo a eficiência volumétrica não aumenta — na verdade ele pode cair por motivos que podemos tratar em outro artigo.
Além do calor latente de vaporização ser maior para o etanol, outra característica que atrapalha a partida é o fato de o Etanol ser uma substância pura, ele não é como a gasolina que é composta por vários componentes que tem pontos de evaporação diferente.
O etanol evapora por completo por volta de 77°C, enquanto a Gasolina têm alguns componentes que já por volta de 45°C começam a evaporar. A curva de destilação da Gasolina e do Etanol podem ser comparadas abaixo. Com isso, quando o motor está a frio, essas frações da Gasolina que evaporam com temperatura mais baixa, ajudam na partida.
Como decidir qual dos dois combustível devo utilizar?
É disseminado o uso de uma simples fórmula para se decidir qual combustível vale a pena ser utilizado, se o etanol está abaixo de 70% do preço da gasolina, ele vale a pena. Lamento informar, mas isso não faz muito sentido.
Quem tem carro flex já percebeu que essa relação não funciona sempre — depende muito do uso (e, claro, do preço também).
Tratando apenas do mérito dos parâmetros relacionados a combustão (não vamos considerar corrosão etc.), o etanol é vantajoso principalmente quando o motorista utiliza o motor por períodos mais longos de tempo, ou seja, ele é utilizado até aquecer por completo.
Isso acontece pois o motor trabalha com mais excesso de combustível durante a fase fria com etanol (devido ao calor latente de vaporização) do que com a gasolina. Esse excesso ocorre pois como a evaporação do etanol é deficiente a frio, é necessário injetar ainda mais combustível para garantir que o que pouco que evaporou seja o suficiente para a combustão. O resto vai para o óleo, o que é um grande problema, mas que podemos tratar em um outro artigo. O excesso na gasolina também ocorre mas em uma escala menor, logo você joga menos combustível fora. Portanto se você usa o carro apenas em trajetos curtos, a gasolina é melhor.
O etanol também é vantajoso se o motorista costuma rodar com altas condições de carga (com o pé no fundo) pois como a combustão da gasolina gera gases de escape mais quentes, o motor trabalho com excesso de combustível para que os gases de combustão sejam menos quentes e dessa forma proteger o catalisador/turbo/sistema de escapamento. Esse excesso de combustível para o etanol é menor, logo menos combustível é jogado fora nessa condição. Motores de baixa cilindrada costumam visitar com mais frequência a região de altas cargas, pela falta de torque em baixas rotações.
Para ter certeza de qual combustível vale a pena devemos conhecer bem os nossos costumes de direção e também os nossos percursos, dessa forma podemos fazer a escolha mais econômica. A não ser que o etanol volte a custar R$1,00 como era na época que eu aprendi a dirigir. Aí vamos todos para o etanol!
Por hoje é isso, galera. Se tiverem dúvidas, podem usar a caixa de comentários que, dentro do possível, vamos conversando. Espero que tenham gostado. Até a próxima!
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Erich Policarpo é engenheiro de Desenvolvimento de Sistemas de Combustão na empresa Austríaca AVL e também atua como membro da Comissão Técnica de Motores Otto da Society of Automotive Engineering (SAE).