Hoje em dia, a presença ou a ausência de modelos importados no Brasil é quase sempre uma questão de viabilidade do mercado — se a gente não tem um Toyota GT86 ou um VW Scirocco como opções nas concessionárias, são grandes as chances de suas fabricantes simplesmente acharem que não há espaço para eles no mercado.
Isto só acontece porque, lá em 1990, as importações de veículos foram liberadas no Brasil, colocando fim a um hiato de 14 anos. Foi este hiato que deu origem a alguns dos nossos modelos mais icônicos. Eles eram tão desejados que ninguém ligava para o fato de, no fim das contas, carros como o Ford Escort XR3, o Gol GTI e até mesmo foras-de-série como o Puma serem meio que “prêmios de consolação” por não termos sedãs alemães, muscle cars americanos, roadsters britânicos e supercarros italianos — ou mesmo carros comuns lá fora que, para nós, pareciam coisa de outro mundo quando chegaram.
Depois de 1990 um novo mundo se abriu, literalmente — um mundo onde existiam Alfa Romeo, Mercedes-Benz, BMW e Audi, só para citar algumas. Não estamos dizendo que nossos clássicos, como o Chevrolet Opala e o Ford Maverick (só para ficar nos mais lembrados) não são dignos. Pelo contrário: é preciso saber valorizar nossos modelos históricos, especialmente os endêmicos do Brasil. Eles são o legado da nossa indústria automotiva.
Mas eles não são o único legado, não. Com a falta das opções importadas, que só conhecíamos por revistas automotivas, veio a necessidade de modificar nossos carros. Quer dizer, provavelmente a modificação começou no momento em que começaram as vendas de carros no Brasil, visto que o homem sente a necessidade de acelerar desde os primórdios do automóvel, e modificar faz parte do processo. Mas foi nas décadas imediatamente anteriores à reabertura das importações — os anos 1970 e 1980 — que a modificação e a customização explodiram em popularidade.
Vamos te situar no tempo: nos anos 70, Dodge V8, Ford Maverick e Chevrolet Opala eram os reis das ruas, que também eram povoadas por Fusca, Brasília, Chevette e Corcel. Na década de 80, vimos o nascimento da família Gol, a chegada dos sedãs médios (como o Chevrolet Monza e Volkswagen Santana) e a primeira pista do que viriam a ser os carros populares com o Fiat Uno. Carros dos anos 60 não eram tão antigos e ainda eram vistos com frequência pelas ruas.
Como acontece hoje, os jovens da época também gostavam de modificar seus carros. Contudo, o visual era diferente — estamos em um mundo globalizado e absorvemos tendências de outros países o tempo todo quando se trata de modificação, mas naquela época não havia acesso a internet ou mesmo muita disponibilidade de componentes importados, e por isso o que se via eram carros que até refletiam certas características do que se via lá fora mas, acima de tudo, tinham uma estética genuinamente brasileira.
A customização brasileira tinha forte inspiração no automobilismo: instalava-se faróis auxiliares nos para-choques, algo que remetia aos carros de rali. Os volantes de madeira, como os populares Walrod e Fittipaldi, eram inspirados naqueles dos carros de Fórmula 1 — de diâmetro reduzido com raios de metal e aro de couro ou madeira —, e as rodas eram largas, com offset agressivo, bordas polidas e calçadas com pneus bem gordos (não raramente ultrapassando os limites dos para-lamas).
Finalizando o stance, suspensão levemente rebaixada, muitas vezes com cambagem ligeiramente negativa, mas nada gritante — só o suficiente para deixar o carro com uma postura mais agressiva.
Existiam também kits de preparação e customização que eram oferecidos por empresas especializadas e instalados em concessionárias — e algumas delas até forneciam seus próprios kits. Normalmente eram empresas que funcionavam como concessionária, autorizada e também importadora, além de fabricar alguns componentes e até carros completos.
A Envemo, por exemplo, é famosa por realizar conversões de carrocerias — transformar sedãs em conversíveis e peruas, por exemplo — e oferecer kits de modificação para o Opala e outros modelos, mas também fabricava seus próprios carros — réplicas do Porsche 356.
O famoso e raro kit Envemo para o Opala. Fotos: Opaleiros do Paraná
Outras, como a concessionária Dacon, importavam componentes da Volkswagen alemã e da Porsche para instalar em veículos nacionais. A variedade ia de rodas, faróis e lanternas, retrovisores, volantes e itens de acabamento a kits de preparação e motores completos Porsche para instalar no Fusca e na Brasília.
Naturalmente, a oferta não era restrita — havia opções de preparação e customização para todas as marcas. Havia empresas nacionais fabricando cabeçotes para motores V8 e seis-em-linha ou itens estéticos como spoilers, e também quem importasse componentes como rodas BBS e peças de acabamento da Europa e dos EUA para instalar em modelos nacionais.
Sem falar nas inúmeras oficinas de preparação que se valiam destes produtos nacionais e importados para transformar carros comuns em esportivos, com rodas maiores, suspensão rebaixada, faróis auxiliares, kits estéticos e motores com cabeçotes preparados, carburadores maiores e escape dimensionado.
Fuscas V.E.B. Foto: Máfia Boxer
Existiam opções para todos os gostos e bolsos — desde aquele cara que podia entrar na concessionária e sair com um carro novo e exclusivo, modificado a seu gosto pela concessionária, até o jovem que só podia comprar um carro usado e “modernizá-lo” usando componentes mais novos — um Fusca 66 com para-lamas, faróis e lanternas de um Fusca do fim da década de 70 não era visto como aberração por quem curtia modificações. Também era comum a utilização de componentes de outros modelos — alguns até importados.
Talvez a década de 80 tenha sido o auge da cena nacional de modificação e preparação — os vídeo acima,por exemplo, filmado em 1981, mostra um encontro/passeio com dezenas de carros de diferentes modelos, todos com algum grau de modificação e, certamente, preparação. Também dá para notar como a cena parecia unida — vemos Fusca, Chevette, Corcel, Opala e Maverick estacionados juntos, ou em carreatas divididos por modelo, ou dando zerinhos em um estacionamento (o que também é um reflexo das leis de trânsito mais permissivas da época). Você pode conferir as outras duas partes do vídeo aqui e aqui.
Para sorte dos saudosistas, contudo, existe quem mantenha vivos o estilo, a estética e os métodos de preparação e modificação das dos anos 70 e 80 — caras que, apesar de poder aproveitar de todas as evoluções que os anos trouxeram aos entusiastas — sistemas de injeção eletrônica, técnicas de pintura, rodas de liga leve, suspensão regulável —, ainda preferem colocar um comando bravo, carburadores maiores, escapamentos dimensionados e rodas largas com pneus bifudos.
Maverick do Pedrinho, da Pedrinho racing. Note as largas BBS, as lanternas traseiras de Mustang Mach 1 e o spoiler dianteiro — modificações típicas da década de 80. Foto: Marquinho/CG
Existem diferentes nichos de modificação — caras que são mais ecléticos, que absorvem e utilizam tendências de diferentes gerações, desde que tenham pelo menos 20 anos de histórias, até grupos mais restritos que são bastante metódicos e exigentes na escolha de acessórios, peças e receitas.
No Brasil, existe até uma galera dedicada a manter vivo este estilo de customização. São os adeptos do V.E.B. — Velha Escola Brasil, um estilo que surgiu entre os donos de Volkswagen a ar e consiste em só modificar o carro com peças da década em que ele foi fabricado. Claro, não demorou para que donos de carros de outras marcas também entrassem nessa.
Dá para entender o apelo das modificações de época hoje em dia — além da estética agradável e da experiência sensorial extremamente prazerosa que um motor preparado à moda antiga dá, hoje em dia é bem mais fácil trazer peças de fora, e não faltam fóruns e grupos de discussão na internet para troca de informações e anúncios de compra e venda de peças — basta ter os recursos e saber onde procurar.
Inspiração também não falta, e a galeria abaixo prova isto: são quase 100 imagens escaneadas de propagandas de acessórios dos anos 1970 e 1980, reunidas pelo pessoal do grupo Arquivo do Carro Nacional. Além das rodas de visual inspirado nos carros europeus, bancos Recaro e Procar, volantes e tetos solares, há algumas curiosidades interessantes.
Calotas eram tratadas como acessórios chiques e imitavam com muito capricho rodas de liga leve; equalizadores de som (especialmente da mítica marca Tojo) e conjuntos completos de alto-falantes eram verdadeiras coqueluches entre os entusiastas na época.
Conjuntos dianteiros prometiam exclusividade e sofisticação, e normalmente imitavam os modelos vendidos lá fora. Hoje, são verdadeira raridades, como o já conhecido Escort JPS com faróis escamoteáveis.
Mas agora, chega de falar: é hora da nostalgia!
Este post foi publicado originalmente em julho de 2014 e reescrito em maio de 2016, com novas informações e fotos.
[ Fotos: Velha Escola Brasil/Arquivo do Carro Nacional ]