Era o começo de 2010. Eu tinha 18 anos recém-completos, não tinha carteira de motorista e nem curso superior, e dali a poucas semanas me tornaria pai. A ficha não tinha caído direito (hoje estou com 30 anos e vivi a época dos orelhões a ficha, então posso dizer isso sem pudor algum), mas obviamente eu precisava de um primeiro emprego de verdade. Tarefa difícil.
Eu nem tinha deixado a adolescência direito, mas já havia morado sozinho (aos 15 anos, em uma casa de fundos com dois cômodos, cuja proprietária costumava “invadir” enquanto eu ia trabalhar como menor-aprendiz para lavar minha louça suja e fazer uma pequena faxina – serei eternamente grato) e estava diante da maior responsabilidade da minha vida. Desempregado.
Confesso que não me esforcei tanto para procurar um emprego normal. Com um verdadeiro vendaval de medos, expectativas e angústias dentro da minha cabeça, acabei entrando em um estado de catarse no qual passava a maior parte do meu tempo livre lendo blogs na Internet, ensaiando alguns contos de ficção – cheguei a enviar currículos para fábricas e lojas da cidade, mas nunca tive resposta.
Meu site de cabeceira, na época, era o Gizmodo Brasil – versão nacional do site de tecnologia da antiga Gawker Media, que hoje não existe mais. Me interessava pelos gadgets do momento – o novo iPod, o novo iPhone, o novo MacBook, os primeiros smartphones com Android. O PlayStation 3, que já estava na metade do seu ciclo de vida, era meu sonho de consumo (nunca cheguei a ter um). Mas o que eu precisava mesmo era de um emprego, cazzo. Em pouco tempo, todo o dinheiro que eu até então não tinha precisaria ser gasto com fraldas, roupinhas e outras despesas que um filho traz.
Meses depois eu descobriria que as despesas nem eram a parte mais difícil de ter um bebê, mas sim o tempo e a atenção de que eles precisam. Mas, no começo de 2010, minha preocupação era menos abstrata e totalmente prática: ter como sustentar uma família.
Pois bem. Um dia – já faz tanto tempo que não lembro exatamente quando foi, mas acredito que em fevereiro daquele ano – topei com um artigo diferente no Gizmodo. Nele, um tal Leo Nishihata convocava entusiastas de carros que tivessem domínio razoável de inglês para uma nova empreitada: um novo site brasileiro licenciado pela Gawker Media. Um site para fãs de automóveis que também valorizavam opiniões inteligentes, bom humor e fortes convicções. O nome, assim como Gizmodo, era uma palavra esquisita que, à primeira vista, não queria dizer nada para os brasileiros: Jalopnik. Uma mistura de “jalopy” (ou “lata velha” em tradução livre) e “beatnik” (termo que se referia aos adeptos do movimento literário beat de poesia e prosa urbana, crua, boêmia e orgânica). Eu gostava dos beats, Kerouac, Ginsberg e, claro, do velho Bukowski (apesar de o mesmo rejeitar até a morte qualquer associação com os beats).
O Leo Nishihata precisava de tradutores que gostassem de carros – simples assim. Você não precisava ser formado, pós graduado e nem ter experiência. Só precisava ser bom, e ter tempo disponível. E, evidentemente, gostar de automóveis.
Hoje em dia, aprender inglês por meio do entretenimento não é nada extraordinário. Na época, porém, ainda era motivo de orgulho e causa de admiração quando eu dizia que o PlayStation e o Iron Maiden haviam sido meus professores de inglês. E foram mesmo, e eu ainda tenho orgulho disso. Há 11 anos, isso foi o bastante para que eu decidisse tentar a sorte.
Eu só precisava mandar um email com uma breve introdução, contando sobre minha relação com os automóveis, explicando por que eu deveria trabalhar no Jalopnik, e a tradução de uma das matérias do site americano em anexo. Minha estratégia foi simples: ser completamente sincero. Sincero mesmo!
O email foi algo nessas linhas: “Tenho 18 anos, não tenho carteira de motorista e nenhuma experiência. Comecei a ler o Gizmodo meses atrás e vi que vocês estão precisando de tradutores para o Jalopnik. Sei me virar no inglês e amo carros. E adorei o nome!” Sequer mencionei o fato de que meu filho nasceria dali a um mês.
Email enviado, esqueci do assunto. Não achei que tivesse chance. Mas, seis dias depois, lá estava a resposta do Leo Nishihata – que começou pedindo desculpas pela demora, pois o volume de emails recebidos era enorme. Ele disse que uma equipe fixa já havia sido formada – e nessa equipe estava o Leo Contesini, que a gente chamava de “Conte” para não confundir as coisas. Mas que havia a possibilidade de textos e traduções feitos por colaboradores adicionais irem ao ar. Então, caso eu tivesse interesse, só precisava escolher dois textos do Jalopnik e traduzi-los – se o Nishihata gostasse do meu trabalho, os textos poderiam ser publicados (e devidamente pagos), e eu poderia pegar algumas traduções como freelancer.
Era óbvio que eu estava interessado. Enviei os dois textos escolhidos – um deles sobre o Alfa Romeo Pandion, o outro sobre o Lamborghini “Jota”, que viria a se tornar o recém-aposentado Aventador.
Era 23 de fevereiro quando outra mensagem chegou.
“Oi Dalmo, tudo bem?
Gostei das suas traduções, acredito que você possa colaborar conosco sem problemas.”
Foi assim que tudo começou. E hoje, tudo acaba.
Coincidentemente, pouco depois de o Aventador sair de linha.
Já faz muito tempo que deixei de ser um mero tradutor – em algum momento do Jalopnik, comecei a ensaiar produções originais. No início, quase por brincadeira. Depois, quando o Jalopnik Brasil fechou as portas no fim de 2013, porque era a única forma de sobreviver. Não vou entediar vocês com todos os desdobramentos (que os leitores mais antigos já conhecem muito bem), mas foi no fim de 2013 que, das cinzas do Jalopnik, por iniciativa do Juliano Barata e do Leo Contesini, nascia o FlatOut.
Pelo Jalop passaram outros membros (mais nomes do que eu consigo lembrar, e peço perdão a todos eles desde já), mas quem restou fomos nós três. O Juliano e o Leo acreditaram em mim até o último instante do Jalopnik e, desde a gênese do FlatOut, me chamaram para fazer parte. Formamos “o power trio do FlatOut”, tal qual o Rush (ou o Motörhead em sua formação clássica), e carregamos nas costas a responsabilidade de fazer vingar um novo site, que logo virou portal e hoje continua sendo um dos veículos mais relevantes da imprensa automobilística no País. Tivemos que nos reinventar inúmeras vezes, investir em novas frentes, produzir vídeos, abrir um site de classificados e um fórum, inaugurar um podcast. Cuidar das redes sociais, elaborar pautas, responder às mensagens dos leitores, organizar eventos. Por muito tempo, com uma equipe fixa de apenas três pessoas.
Hoje há mais gente no FlatOut – caras extremamente competentes, como o erudito e respeitadíssimo Marco Antonio Oliveira (o MAO), que chegou em 2020 para transformar a equipe editorial do FlatOut em quarteto e trazer um tempero mais refinado; e o pessoal dos bastidores que ajuda a manter tudo funcionando como um motor bem acertado – o Rafael, o Sérgio, a Renata, todo mundo.
Se ainda não ficou claro, este é um texto de despedida.
Mencionei apenas os nomes que ficaram – hoje, me junto aos que saíram, cada um por seus motivos. O meu é extremamente simples: o FlatOut, mesmo antes de ser o FlatOut, foi meu primeiro emprego. Lá se vão 11 anos, e eu acabei de completar meus 30. Ou seja: mais de um terço da minha vida está aqui. É bastante tempo, e eu cheguei à conclusão de que é hora de fazer outra coisa. Explorar novos caminhos, enfrentar novos desafios. Time to move on.
O que eu vou fazer daqui em diante? Por ora, tirar um tempo para resolver assuntos particulares – e nada relacionado aos carros ou ao jornalismo.
Nunca vou esquecer de todas as conquistas que alcançamos juntos. Serei eternamente grato pela confiança dos meus colegas, pelo carinho dos leitores, pela paciência de todos com as minhas cagadas. Pela oportunidade de realizar um sonho – ganhar a vida escrevendo. E mais: cobrir o Salão do Automóvel, aprender todos os dias, conhecer centenas de pessoas bacanas e fazer a diferença na vida de muita gente. Isso não tem preço, e vou levar tudo o que vivi para o resto da vida.
E, claro, vou acompanhar o FlatOut – que, tenham certeza, está em seu melhor momento – da mesma forma que vocês fazem há tanto tempo. Como leitor, apoiador e espectador de todas as coisa bacanas que o Juliano, o Leo e o Mao andam fazendo. A equipe editorial volta a ser um power trio, formado por caras extremamente talentosos, dedicados e competentes. O FlatOut está em boas mãos!
É extremamente difícil resumir tanto tempo de história em um único texto. Mas dá para resumir o que sinto agora poucas linhas:
Obrigado a cada um de vocês. Jamais poderei retribuir à altura, e podem ter certeza de que, apesar de deixar a equipe por decisão própria, sentirei muita saudade. Nos vemos por aí, e não esqueçam de atender ao chamado da noite sempre que precisarem!
PS.: Eu sei que tenho a história do Agente para terminar – então vocês ainda vão ver meu nome por aqui mais algumas vezes! 😉