Muita gente reclamou bastante da temporada final da sensacional série de TV “Game of Thrones”. Com razão: desistindo de ficar o resto da vida contando uma história complexa pacas, e loucos para fazer outra coisa na vida depois de 10 anos, os criadores dela resolveram condensar o que daria para mais algumas temporadas em apenas uma, a assim terminar logo o treco; o resultado dessa condensação é que ninguém entendeu a mudança, repentina e mal executada, da heroína em vilã.
Uma pena: é uma história sensacional, esta, de um herói carismático vencendo, para se tornar depois um déspota. Sensacional por ter o eco da verdade. Sempre que se coloca qualquer pessoa num pedestal, ela só tem um lugar para o qual evoluir: para baixo. A não ser, é claro, que morra antes disso, em seu auge. Mais sobre isso mais adiante.

Game of Thrones também deveria ter sido um aviso sobre líderes carismáticos, e o perigo deles. Esta história foi contada de uma forma muito melhor, na verdade, por Frank Herbert na sua saga do fictício planeta árido de Arrakis, que viemos a conhecer com a publicação do livro “Duna” em 1965.
Ops! Spoiler Alert para os novos filminhos do sobrinho menos talentoso ao volante de Gilles Villeneuve, um tal de Dennis. Parece-me incrível ter que dizer isso a respeito de coisa tão antiga e de domínio público como Duna, mas fazer o quê?
Para quem não sabe, no segundo livro, o herói de Duna, Paul Atreides, vira um vilão; um déspota imperador do universo. Quando era criança, adorei o primeiro livro, mas odiei o segundo: como o herói maneiro do primeiro livro virou vilão? Meu pai a saber disso, riu; sentou-se na mesa de casa comigo e me explicou com cuidado a mensagem complexa e adulta dos livros que, até então, eram para mim diversão apenas. Que idolatria para com qualquer ser humano é ruim para o idólatra e para o idolatrado; e que a pior forma disso é a forma política tão comum hoje em dia. O ditador/presidente/chanceler carismático, que sobe ao poder pelos braços do povo. Como Hitler e Fidel, entre outros que prefiro não mencionar.

Os exemplos reais da história são legião, e meu pai fez questão de me explicar direitinho todos que conhecia. Não posso dizer que entendi exatamente aquilo tudo naquele momento, mas me marcou muito. Uma mensagem oculta, um ensinamento importante, em ficção científica? Que legal! Voltei a ler a série depois disso, e até hoje a tenho na mais alta conta. Valeu, pai.
Mas divago; o que queria falar aqui é sobre a trágica morte de Ayrton Senna, que fez ontem aniversário de 30 anos. O que mais dizer sobre ela que não foi dito ontem por todo lado, ad infinitum? É algo inescapável, esta história; daquelas que mesmo se você evitar, não vai deixar de ser lembrado. Resolvi o que muitos fizeram ontem: contar como aquele dia me marcou. E tudo que aprendi com ele. Nada original, eu sei, mas pelo menos, a história minha, particular, desse dia, é diferente. Se não dá para ser original, que pelo menos não seja repetitiva.
1º maio de 1994
É meio estranho falar isso, mas o dia fatídico da morte de Senna não foi triste para mim. Na verdade, foi bem legal, fora o sentimento de empatia com gente próxima que sentiu a tragédia mais imediatamente; eu demorei uns dias para entender seu tamanho e força. Calma, que explico.
Não há herói maior na vida de toda pessoa que o herói da infância. Por isso a maioria dos adultos de hoje tem Senna como o maior ídolo: é um fenômeno cronológico, também. Por isso, também, os meus heróis de infância foram Emerson, e depois Piquet. Como vocês podem imaginar, não era fã de Senna, na época. Dependendo de onde estava, escondia isso, porém: na época, era quase uma heresia criticar o herói. Meu tio, por exemplo, era fã, e não queria discutir isso com ele, para o bem da união familiar.

E na verdade, sendo completamente honesto, não me importava muito mais com isso. Eu não acompanhava a F1 mais; como hoje, sabia o que acontecia, me mantinha informado, mas torcer e assistir corridas não era algo que fazia. Coisa pessoal, que não sei explicar muito bem, mas um fato. Nem Senna, nem Piquet, nem Prost nem qualquer outro: minha relação com a F1 era de quieta contemplação, apenas. Torcer e discutir sobre quem era o maior? Não eu.
No feriado do dia 1º de maio de 1994 na verdade tinha múltiplas outras preocupações. No dia, eu e a futura esposa fomos até Caieiras, em São Paulo, na casa da minha vó, para nos encontrarmos com meus pais. Os dois moravam então no Rio de Janeiro; eu e a Ana Carolina em São Paulo; o feriado era uma hora de nos encontrarmos. O assunto principal era o casamento nosso naquele ano, que criava um monte de coisas a fazer e resolver.

Uma das coisas era o carro: tinha vendido o meu Uno CSL 1992 novinho com a intenção de comprar 2 carros, um para mim e outro para a Ana. Tinha um consórcio de Gol 1000; queria dar um lance nele, e comprar um carro usado para mim. Ao dizer isso para meu tio ele responde: tenho um carro perfeito para ti. Meu tio me conhecia: era um Chevette.
Mais que isso: um Chevette DL 1.6/S a álcool, 1992, azul metálico. O ano de 1992, vale lembrar, é o único do Chevette Junior. A vasta maioria dos Chevettes deste ano era 1.0 a gasolina. Uma raridade o meu, mesmo em 1994. Mas tinha mais: era de um amigo de meu tio de Caieiras, que trocava de carro a cada dois anos, e era absolutamente novo: nem som tinha sido instalado.

Então, durante o dia eu conheci o carro e o comprei; voltei para São Paulo com ele no fim do dia. A estrada que ligava Caieiras à São Paulo então era de pouco tráfego e de mão dupla, cheia de curvas; foi uma delícia voltar ao Chevette andando ali, voltando para casa. O DL tinha também mais isolamento termoacústico que os outros Chevettes que tive até ali: era surpreendentemente civilizado e suave. Voltei para casa e fui dormir feliz com o carro e com planos de rodas aro 14 e um som legal para ele.
Nesse meio tempo, a corrida, o acidente, e a morte de Senna. Triste, sim, mas me senti meio separado daquilo tudo, como se fosse um barulho no fundo. Meu tio, que assistia a corrida na casa de minha vó com a gente, ficou visivelmente chocado. Os filhos dele, ainda crianças, mais ainda.

Só senti realmente o tamanho do que tinha acontecido nos dias que se seguiram. Em São Paulo, a sensação de perda era palpável, tão densa que podia ser cortada à faca. O cortejo fúnebre, o maior que São Paulo e o Brasil já viram, parou a cidade e passou perto de casa. Nenhum chefe de estado, ninguém no Brasil provocou uma reação tão grande e emocionada quanto a daquele dia 4 de maio. O enterro de Senna nos uniu como nada que tenha visto, antes ou depois. Ainda sinto o peso daquilo ao lembrar, tantos anos depois. O enterro de Senna, para nós, foi maior que o de qualquer rainha.
O herói caído
Claro, somos uma nação latina e emocional. E não há nada mais emocional que um herói caído no seu auge, fazendo o que lhe fez grande. Senna, sozinho em seu carro ganhando por nossa bandeira todo fim de semana, querendo ou não, o colocava maior que qualquer time de futebol, e, ao carregar a bandeira, nos fazia um pedaço daquela vitória. Morrer fazendo isso deu contornos a ele de herói nacional.

E também, ao morrer em seu auge aos 34 anos, também não deu chance de conhecê-lo depois do auge, o que, vamos falar sério, é sempre menos impressionante. O herói que morre no seu auge permanece perfeito e intocado para sempre. Quem fica e morre de idade avançada, vive o suficiente para cair de seu pedestal, ou na melhor das hipóteses, virar um senhor encruado lembrando glórias passadas.
Como aconteceu com Emerson de certa forma, abandonado injustamente por nós quando seu Copersucar, outro ato de heroísmo patriótico extremo, falhou em nos dar vitórias e virou motivo de piada. Como também aconteceu com Piquet, sempre boca-mole, que viveu o suficiente para chegar aos dias de hoje onde isso o torna um pária.

Os maiores heróis do automobilismo morreram por ele, ou quase; uma verdade que pode soar mal para muitos, mas não deixa de ser verdade. O risco de vida que significou no passado por si só exigia uma dedicação e seriedade, um tipo diferente de pessoa, para praticar o esporte. Mesmo gente que sobreviveu aos anos 1950, como Moss e Fangio, tiveram acidentes graves, e são admirados por isso: por sobreviver e ganhar em um tempo em que isso era incomum. A morte, o maior sacrifício, goste ou não, eleva o que está em jogo, e torna tudo mais importante.
Hemmingway famosamente disse que: “Existem apenas três esportes: touradas, automobilismo e montanhismo; todo o resto são apenas joguinhos”. O que os três tinham em comum na época, era a importância daquilo que os esportistas colocavam em jogo: a vida. Sim, não toleramos mais a morte como parte do espetáculo, e esta evolução sempre foi inevitável. Hoje a atividade é profissional, e mais segura que o mundo aqui fora. Respeito necessário para os profissionais que praticam a atividade. Não se deve imaginar mudar isso, claro.

Todo mundo encara a morte como achar melhor; mas todo mundo tem que entender que encará-la é necessário. A de heróis, amigos e familiares, e a nossa. Uns pretendem prorrogá-la o máximo possível, como se houvesse vitória num número maior de anos vividos. Outros, como os japoneses antigos, enxergavam a vida como um serviço à humanidade: findo ele, não há mais motivo para continuar, e ritualmente se suicidavam. Entre esses dois extremos, há gente como Senna.
Transformo aqui a afirmação de Neil Young em pergunta: It’s better to burn out, than to fade away? Cada um deve ter sua resposta particular para isso, mas eu digo que Senna, na morte, transcendeu a sua situação de campeão de automobilismo para se tornar o herói de uma nação. Senna sempre seria grande, mesmo vivo, mas congelado para sempre no seu auge, jovem, sem filhos, sem bagagem e a triste decadência que chega para todos, é muito maior.

Quando Senna morreu, não acontecia uma morte na pista em 12 anos (Elio de Angelis em 1986, e Ratzemberger um dia antes de Senna, foram em testes ou treinos). Parecia que nunca mais aconteceria, como hoje, 10 anos distante da última. Muita gente começava a acreditar que havia risco zero, esquecendo que ele sempre existe. Ao morrer, Senna não só se elevou imediatamente ao panteão dos heróis do passado, mas também nos deixou completamente passados: como isso é possível? Ninguém morre mais na F1! Coisas assim são extremamente marcantes.
Piquet viveu para dizer que é melhor que Senna por estar vivo até hoje; nós sabemos que Senna é maior justamente por ter morrido. Idolatria não é bom para ninguém, como me lembra o meu pai, sim. Devemos julgar todo dia nossos pares pelo que são agora, não o que foram antes. E sem idolatrar, ou seguir cegamente.
Ainda assim, volta e meia um herói morre em seu auge para assim ficar para sempre congelado. Talvez uma forma do divino nos lembrar que sim, há gente destinada a ser maior que os seus pares, de uma forma difícil de questionar.

Nenhum herói é tão grande como o que dá a vida pelo que acredita. Ao morrer com nossas cores no capacete, ele morreu por nós. Para nos unir, tenho para mim, como fizemos naquele dia em que São Paulo parou para dar adeus a ele.
Algo que vi com meus olhos, e que dificilmente verei de novo: gente de todos os tipos imagináveis, todos brasileiros, todos unidos na dor da perda. Naquele dia, única vez na vida, senti que éramos uma nação de irmãos, totalmente juntos, ainda que na dor. Então não é por suas vitórias que agradeço e homenageio sua vida. É pela capacidade que teve, ainda que na morte, de nos unir. Unir mesmo, como brasileiros, todos nós, na dor de sua morte. Todo mundo mesmo: Pobre e rico, Flamengo e Fluminense, Palmeiras e Corinthians. Por isso que agradeço a ele. Por ter visto um momento único como aquele, que parece impossível visto de hoje.

Obrigado, campeão. E que a luz da face do Senhor o ilumine para todo o sempre, como sei que está fazendo neste momento. E quando estivemos juntos nesse lugar melhor onde tudo é possível, te levo para dar uma volta no DL azul metálico 1992; você não vai acreditar como era novo!
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