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Mercado e Indústria Pensatas

Nosso mercado de carros está voltando aos anos 1980?

“Tempo, tempo… o que é o tempo?” perguntava Peter Lorre em O Diabo Riu por Último. “Os suíços o fabricam, os franceses o acumulam. Os italianos o desperdiçam, e os indianos dizem que ele não existe.” E o brasileiro?

Bem… a gente transforma o tempo em um loop infinito de crises que se repetem com roupagens diferentes. Nos anos 1980, eram os planos econômicos, os congelamentos de preço e a hiperinflação que corroía o dinheiro no banco enquanto você dormia. Nos anos 2020, foi a pandemia, a falta de chips e um choque de oferta global que fez os carros sumirem das concessionárias. Quarenta anos separam essas duas décadas, mas o resultado é surpreendentemente parecido: o carro deixou de ser um bem de consumo e virou ativo financeiro.

Se você comprou um carro em 2020 e o vendeu em 2022, provavelmente ganhou dinheiro com ele. Não é metáfora: você literalmente lucrou com a venda de um bem usado. Isso não deveria acontecer. Um carro, como qualquer bem de consumo durável, perde valor no momento em que sai da concessionária. Mas entre 2020 e 2023, essa lógica foi suspensa. Carros seminovos de um a três anos eram vendidos por 105% a 115% do valor de tabela de um zero-quilômetro — quando este estava disponível, o que raramente acontecia.

Era como se tivéssemos voltado aos anos 1980, quando um Monza ou um Escort eram negociados com ágio no mercado paralelo enquanto as tabelas oficiais fingiam que a inflação não existia. Só que desta vez o vilão não era o dinheiro que derretia — era a falta de carros.


A anatomia de uma distorção

Para entender como chegamos aqui, é preciso dissecar o cadáver ainda quente dessa crise. E ele tem três órgãos vitais comprometidos: o custo de produção, a taxa de juros e o estrangulamento da oferta.

Primeiro: o carro ficou estruturalmente mais caro

O preço do carro novo não subiu apenas por inflação ou câmbio. Ele subiu porque o carro, como produto, se transformou. Compare o Uno Mille de 2000 (745 kg) com o Fiat Argo 1.0 de 2020 (1.010 kg) — uma diferença de 265 kg. Não é gordura — é músculo. Ou melhor, é tecnologia, conforto e segurança.

As regulamentações de segurança (airbags, freios ABS, controle de estabilidade) se tornaram obrigatórias no Brasil e no mundo. Para acomodar esses sistemas, as fabricantes precisaram reforçar estruturas, integrar novos módulos eletrônicos e aplicar aços de alta resistência. E o aço automotivo, cujo preço variou fortemente nos últimos 20 anos, chegou a triplicar em alguns períodos críticos, segundo dados do Instituto Aço Brasil.

O resultado? Um carro intrinsecamente mais caro de ser fabricado.

Some a isso o câmbio desvalorizado — que encarece componentes importados, especialmente semicondutores —, as exigências ambientais (motores mais eficientes custam mais para desenvolver) e a margem de lucro das fabricantes, que absorvem reduções de imposto em vez de repassá-las ao consumidor. O IPI pode até cair para alguns modelos, mas dificilmente isso aparece no preço de tabela.

O carro novo atingiu um patamar estruturalmente mais alto. Mesmo que a inflação ceda e o dólar recue, o zero-quilômetro não voltará aos preços de 2019. Ele dificilmente pode. A física, a regulamentação e a complexidade industrial não permitem.

Segundo: os juros altos criaram um efeito tesoura

Aqui está o paradoxo que poucos entendem: juros altos deveriam derrubar o preço dos carros, mas no Brasil eles produzem o efeito contrário — sustentam preços elevados no mercado de usados.

Funciona assim: quando a Selic sobe, o financiamento de um carro novo fica muito mais pesado. Em 2025, a taxa média de juros para financiamento de veículos está em torno de 27% ao ano, segundo dados do Banco Central — o maior patamar desde que o índice começou a ser acompanhado, em 2011. Um carro de R$ 110 mil, com 20% de entrada (R$ 22 mil), resulta em 60 parcelas de cerca de R$ 2.350. Ao final, o comprador terá pago aproximadamente R$ 163 mil — quase 50% a mais que o preço de tabela.

A classe média não desiste do sonho do carro. Mas faz as contas e recalcula a rota: em vez do zero-quilômetro, migra para o seminovo. E é aqui que o mercado se distorce: com menos gente comprando novos, há também menos gente vendendo seminovos. O consumidor que normalmente trocaria o carro de um a três anos para comprar outro zero está bloqueado. O upgrade não compensa — o novo está caro demais, os juros estão pesados demais. Então ele segura o carro por mais tempo.

O resultado é uma escassez artificial de seminovos. Uma demanda gigantesca (fugindo do zero) encontra uma oferta minguada (porque ninguém está trocando). O preço dispara. O juro alto não derruba o preço do usado — ele o sustenta, ao secar a oferta dos melhores carros.

É uma tesoura cruel: a lâmina de cima é o preço nominal alto do veículo; a lâmina de baixo é o custo do crédito. E o consumidor está espremido no meio.

Terceiro: a oferta de usados está envelhecendo

O Brasil ainda não recuperou totalmente o volume de vendas de carros novos de 2019. Os números são claros: segundo a Anfavea, foram vendidos 2,66 milhões de veículos em 2019 e 2,63 milhões em 2024 — praticamente o mesmo nível, mas ainda abaixo do pré-pandemia em termos reais.

Em 2020 e 2021, a produção despencou por causa da pandemia e da escassez de semicondutores. Os anos de 2023 e 2024 registraram crescimento, sim — mas sobre uma base muito baixa. O buraco cavado entre 2020 e 2022 ainda não foi completamente preenchido.

E menos carros novos vendidos no passado significa menos seminovos entrando no mercado hoje. O estoque de carros com um a quatro anos de uso — os mais desejados, com baixa quilometragem e bom estado — ainda está em níveis historicamente baixos. Quem não encontra o seminovo ideal é forçado a migrar para carros de cinco a oito anos. E quando esses também ficam escassos, o consumidor desce mais um degrau: carros de dez anos ou mais.

Os dados confirmam: as vendas de carros com mais de 13 anos de uso cresceram mais de 40% desde 2020, de acordo com a Fenauto. Não é preferência — é falta de opção. O brasileiro está sendo empurrado para o fim da fila da frota nacional, cuja idade média passou de 9,6 anos (2019) para 11,3 anos em 2024.


De volta aos anos 1980

Nos anos 1980, o mercado automotivo brasileiro vivia sob duas distorções simultâneas: o fechamento do mercado e a hiperinflação. Os carros nacionais eram tecnologicamente defasados e caríssimos. Mas não havia alternativa — a importação era proibida.

O brasileiro, vendo seu dinheiro derreter no banco, descobriu que o carro era um dos poucos ativos capazes de preservar valor. Comprava-se um Monza ou um Escort e revendia-se semanas depois com lucro. Carros novos eram vendidos com ágio no mercado paralelo. Usados não desvalorizavam — apreciavam junto com a inflação, ou até acima dela.

Hoje, quatro décadas depois, o cenário é diferente, mas o resultado é similar. O fechamento de mercado foi substituído pela escassez global de componentes. A hiperinflação deu lugar aos juros estruturalmente altos e ao choque de custos de produção. Mas a essência permanece: o carro voltou a ser reserva de valor.

A diferença é que nos anos 1980 havia pelo menos a ilusão de que, com o fim da inflação e a abertura do mercado, tudo voltaria ao normal. Nos anos 2020, essa ilusão desapareceu. O carro ficou estruturalmente mais caro. O custo de produção subiu de forma duradoura. As regulamentações não serão revogadas. O aço dificilmente voltará aos preços de duas décadas atrás. O câmbio pode oscilar, mas a tendência global é de valorização das moedas fortes.

Estamos presos em uma nova normalidade — e ela é cara.

Então, o mercado de usados está desvalorizando ou valorizando? A resposta é: está desvalorizando, mas de um patamar tão alto que ainda parece caro.

A bolha estourou. A fase em que o carro usado valia mais do que zero-quilômetro já passou. Desde meados de 2023, o mercado entrou em ciclo de correção. Segundo a Tabela FIPE, muitos modelos seminovos (um a quatro anos) registraram quedas entre 6% e 13% em 2024.

Mas — e este é um “mas” enorme — essa queda parte de uma base altíssima. O carro usado não voltou aos valores de 2019. Ele simplesmente parou de subir na loucura e começou a cair lentamente de um pico histórico.

E tem mais: essa desvalorização está sendo maior que a inflação. Se seu carro perde 6% de valor enquanto o IPCA acumula 5%, você perde poder de compra em termos reais. O carro voltou a ser um bem que deprecia — mas deprecia a partir de um preço inflacionado que poucos brasileiros conseguem pagar.

Para quem quer vender, o melhor momento já passou. Para quem quer comprar, o momento é menos insano que há dois anos, mas ainda é hostil. E os juros altos continuam encarecendo o financiamento, que segue sendo o principal meio de acesso da maioria da população.


O futuro do mercado: três cenários possíveis

Cenário 1: Normalização lenta (o mais provável)

Os preços de usados continuam caindo aos poucos, conforme a oferta de seminovos melhora e a produção de novos se estabiliza. Mas essa normalização é lenta e incompleta. O patamar de preços permanece elevado porque o custo estrutural do carro novo não cede. Neste cenário, o brasileiro se acostuma a pagar caro. O carro popular de R$ 80.000 vira o carro popular de R$ 100.000. E o usado de cinco anos, que antes custava R$ 50.000 agora custa R$ 70.000. A classe média encolhe seu acesso — ou aceita dívidas maiores.

Cenário 2: Choque de oferta chinês (o disruptivo)

As marcas chinesas continuam inundando o mercado brasileiro com carros novos a preços competitivos. BYD, GWM, Chery e outras pressionam os preços dos carros nacionais e importados tradicionais para baixo. A competição finalmente força as fabricantess estabelecidas a reduzir margens. Neste cenário, o teto do mercado (o preço do zero-quilômetro) cai, e o piso (o usado) é arrastado junto. Mas há um risco: se as marcas chinesas perceberem que podem cobrar mais caro no Brasil — um mercado historicamente cativo —, simplesmente igualarão os preços das concorrentes e capturarão a margem.

Cenário 3: Reversão ao caos (o pessimista)

Uma nova crise global — seja geopolítica, logística ou econômica — provoca um novo choque de oferta. A produção de carros novos trava novamente. Os preços de usados disparam. O ciclo de 2020-2022 se repete. É o cenário menos provável, mas também o mais brasileiro: a expectativa de que a crise nunca realmente acaba, apenas muda de nome.


Há uma ironia amarga nisso tudo. Durante décadas, o carro foi o símbolo máximo da mobilidade social no Brasil. Comprar o primeiro carro era o passaporte para a vida adulta, a liberdade física e simbólica. Era o sonho da classe média — acessível, tangível, realizável. Hoje, o carro virou símbolo de inacessibilidade. O jovem de 25 anos que consegue comprar um carro novo é exceção. A classe média financia usados de dez anos com juros de 2% ao mês e leva oito anos para quitar a dívida. E mesmo assim, sente-se sortuda por ter conseguido.

Nos anos 1980, o brasileiro sonhava com o dia em que poderia comprar um carro importado. Quando o mercado finalmente se abriu, nos anos 1990, houve uma explosão de variedade e uma breve democratização. Foi uma janela curta de normalidade.

Agora, 30 anos depois, estamos de volta ao ponto de partida. O carro voltou a ser artigo de luxo. A diferença é que desta vez não há plano econômico milagroso que resolva o problema. O Plano Real domou a inflação, mas não pode domar o custo do aço, a complexidade regulatória ou a geopolítica global. E o carro importado não é mais proibido, mas é proibitivo por seu custo em relação ao nosso poder de compra.

Nos anos 1980 ainda havia esperança de que tudo melhoraria quando a inflação caísse. Hoje, a inflação está controlada — e o carro continua inacessível. O que isso diz sobre nós? O carro, que um dia foi símbolo de liberdade, virou símbolo de uma armadilha da qual não conseguimos escapar. E enquanto não entendermos as forças estruturais que nos trouxeram até aqui — o custo, os juros, a oferta estrangulada —, continuaremos achando que o problema é conjuntural, que vai passar, que logo voltaremos ao normal.

Mas não voltaremos. Porque este é o novo normal. E o novo normal se parece muito com o velho anormal dos anos 1980. Como disse Millôr Fernandes, “o Brasil tem um enorme passado pela frente.” E, pelo visto, o mercado automobilístico estará nele.