A Toyota está de volta à Fórmula 1. Não como construtora, nem como fornecedora de motores. O retorno da marca japonesa veio na forma de uma “parceria técnica” com os americanos da Haas — a Toyota Gazoo irá participar do projeto dos carros e da fabricação de componentes para a Haas, enquanto a Ferrari continua como fornecedora de motores. No anúncio da parceria, a fabricante fez questão de salientar que não se trata de um retorno da marca à Fórmula 1 efetivamente, mas uma forma de intercâmbio técnico para os engenheiros da Gazoo Racing em troca do uso das instalações da Toyota pela Haas.
A Toyota tem suas razões para não mergulhar de cabeça de novo na Fórmula 1. Afinal, ela foi a protagonista daquele que talvez seja o programa mais mal-sucedido de uma grande fabricante na categoria em toda a história. Um programa que enterrou bilhões de dólares ao longo de uma década e não produziu uma mísera vitória na categoria, nem reforçou sua imagem de tecnologia ou esportividade. A Subaru, por exemplo, também foi mal-sucedida na categoria, porém ela não tentou mais que um fornecimento de motores ao longo de uma temporada — algo semelhante ao que fez a Lamborghini nos anos 1980 e 1990.
Fórmula 1, a fronteira final
A decisão da Toyota de ingressar na Fórmula 1 no final dos anos 1990 foi vista pela mídia da época como um movimento audacioso e estratégico para consolidar a imagem da fabricante como uma potência tecnológica e esportiva. O anúncio foi feito em 1999 com a previsão de estreia em 2002, e foi recebido com grande expectativa por parte dos entusiastas do automobilismo e dos analistas financeiros, dada a reputação da Toyota como líder mundial em eficiência de produção e inovação automotiva.
Na época, a Toyota já era a terceira maior fabricante do mundo, reconhecida por ter revolucionado a indústria com o sistema de produção conhecido como “Toyotismo” ou “just in time”, que influenciou até mesmo segmentos alheios ao setor automobilístico. Além disso, a marca consolidava sua liderança no mercado global de automóveis, especialmente com veículos como o Toyota Corolla, que se tornara o carro mais vendido do mundo.
O problema é que, sob o ponto de vista do marketing e do prestígio esportivo, a Toyota ainda não havia se estabelecido como uma força dominante no automobilismo internacional. Embora tivesse se tornado um ícone do Campeonato Mundial de Rali (WRC) com o Celica GT Four e o Corolla WRC nos anos anteriores, a Fórmula 1 ainda era o patamar mais alto para uma fabricante consolidar sua imagem de potência técnica e esportiva junto ao público em geral — entusiasta ou não.
Celica GT-4: o ícone esportivo da Toyota que acabou esquecido nos anos 1990
Além disso, no final dos anos 1990 a Fórmula 1 foi tomada pelas grandes fabricantes: a Benetton se transformava na Renault, enquanto a BMW fazia uma parceria com a Williams, a Mercedes se juntava à McLaren, a Honda retornava como fornecedora de motores para a BAR. Para a Toyota era crucial estar presente nesse grupo seleto, uma vez que o sucesso nas pistas a posicionaria como uma marca com o mesmo padrão técnico destas já mencionadas.
A preparação
Ao contrário de Honda, BMW e Mercedes, que optaram por parcerias técnicas com equipes bem-estabelecidas, a Toyota decidiu montar sua própria equipe de fábrica, controlando todas as etapas do projeto — desde o desenvolvimento do chassi e do motor, até a operação de pista. Para isso, a equipe se estabeleceu em Colônia, Alemanha, onde a Toyota Motorsport GmbH (TMG), já operava sua bem-sucedida divisão de rali.
Foi uma decisão tão ousada quanto arriscada. A construção de uma equipe do zero implicava uma curva de aprendizado significativa e a necessidade de montar uma organização extremamente complexa em um curto período de tempo foi algo que poucas equipes conseguiram fazer na história da Fórmula 1. Os Fittipaldi, por exemplo, sofreram na pele todas estas dificuldades. Além disso, a Toyota, por ser uma das maiores e mais poderosas fabricantes do planeta, elevava as expectativas contra uma concorrência calejada, com décadas de experiência e infraestrutura consolidada na Fórmula 1.
Mesmo assim, a própria Toyota acreditava que seu poderio econômico e sua e expertise em engenharia de competição — obtida não apenas no WRC, mas também no endurance — poderiam compensar essa falta de experiência na Fórmula 1. Estima-se que a Toyota tenha investido entre US$ 500 milhões e US$ 1 bilhão nos primeiros anos de seu projeto de Fórmula 1. Esse valor era muito superior ao orçamento da maioria das outras equipes, mas a Toyota tinha a capacidade de aumentar esses investimentos caso fosse necessário.
Além disso, a Toyota investiu pesado no recrutamento de talentos. Contratou engenheiros e técnicos experientes vindos de outras equipes da Fórmula 1, além de profissionais de áreas como a aerodinâmica, onde a equipe alemã já tinha experiência devido ao envolvimento da Toyota no WRC. O plano era fazer uma estreia com força total, evitando os erros que outras novas equipes haviam cometido.
A estreia
A aguardada estreia da Toyota na Fórmula 1 ocorreu no Grande Prêmio da Austrália de 2002, a prova inaugural daquela temporada, com Mika Salo e Allan McNish ao volante do TF102. Logo na primeira corrida, Salo conseguiu um respeitável sexto lugar, marcando os primeiros pontos para a equipe já em sua estreia. Apesar do otimismo, esse resultado se mostraria um evento isolado na temporada, que foi marcada por desafios técnicos e de desempenho.
O principal problema era o motor RVX-02, que, apesar se estar entre os mais potentes do grid, era menos refinado do que os propulsores dos rivais e sofria com problemas de confiabilidade, o que resultou em abandonos ao longo da temporada e dificuldade em completar corridas. Além disso, o motor também tinha uma curva de potência pouco eficiente ao longo das faixas de rotação, sendo prejudicado nas saídas de curvas de baixa. Como se não bastasse, o carro tinha problemas aerodinâmicos, sofrendo com excesso de arrasto e falta de downforce – exatamente o oposto do que deveria ser.
Como resultado, ao longo da temporada de 2002, a Toyota não conseguiu acompanhar o ritmo das equipes de ponta, terminando o campeonato de construtores na 10ª posição, com apenas dois pontos; ambos conquistados por Mika Salo — um na Austrália e outro no Brasil.
Apesar dos resultados modestos, o primeiro ano da Toyota foi considerado promissor em alguns aspectos, já que outras equipes novatas levaram anos para conseguir seus primeiros pontos.
A curva de aprendizado
Entre 2003 e 2005, a Toyota continuou a investir pesado no projeto da Fórmula 1. A cada temporada, novos carros eram lançados com atualizações no chassi e no motor. Em 2003, a Toyota lançou o TF103, uma evolução do carro do ano anterior, mas com ajustes aerodinâmicos significativos. Ainda assim, a equipe terminou o Mundial de Construtores na oitava posição, com 16 pontos.
Foi durante essa fase que a Toyota começou a entender a complexidade da Fórmula 1 moderna. A competição exigia uma coordenação perfeita entre aerodinâmica, motor, estratégia de corrida, gerenciamento de pneus e uma equipe eficiente e precisa nos boxes. O desenvolvimento técnico não era suficiente sem uma estrutura organizacional eficaz.
Para resolver esse problema, a Toyota chamou Mike Gascoyne para a temporada seguinte. O engenheiro teve uma passagem bem-sucedida na Renault, e levou para a Toyota uma abordagem mais metódica para reorganizar o departamento técnico da equipe. Apesar disso, o carro TF104 também não conseguiu entregar os resultados esperados, com a Toyota terminando novamente em oitavo lugar no Mundial de Construtores, mas com apenas oito pontos.
Na temporada seguinte, 2005, a equipe fez seu maior avanço até então. Seu novo carro, o TF105, era fruto de melhorias significativas no chassi e no motor, e deu à Toyota sua primeira pole position, no Grande Prêmio dos Estados Unidos, e os primeiros pódios, com Jarno Trulli e Ralf Schumacher. Juntos, eles chegaram duas vezes em segundo lugar e três vezes em terceiro, além de terem pontuado em todas as etapas, exceto a primeira. Com isso, a equipe terminou a temporada em quarto lugar no Mundial, atrás apenas de Renault, McLaren e Ferrari, e com 88 pontos, foi considerada uma das forças emergentes da Fórmula 1. O jogo parecia estar virando.
A consistente inconsistência
Os resultados de 2005 elevaram drasticamente a expectativa para a temporada de 2006. Para evitar um fiasco, a Toyota aumentou ainda mais seu orçamento, chegando a gastar cerca de US$ 400 milhões naquela temporada — um dos maiores orçamentos da época. Mas… dinheiro não compra tudo e, provando esse sábio aforismo, o desempenho do TF106 foi decepcionante. A Toyota conquistou apenas um pódio — um terceiro lugar de Ralf Schumacher — e teve ao menos um abandono em dez das 18 etapas da temporada. O resultado foi um retrocesso em relação à temporada anterior, com uma sexta posição no Mundial de Construtores.
A inconsistência acabaria sendo o aspecto mais consistente da Toyota em sua incursão na Fórmula 1. Em 2007, a equipe tentou uma mudança radical do design do carro com o TF107, mas as dificuldades aerodinâmicas persistiram. Além disso, a mudança para os pneus Bridgestone, após a saída da Michelin da Fórmula 1, impactou negativamente o desempenho da equipe, que não conseguiu se adaptar rapidamente às características dos novos pneus.
Em 2008, a Toyota lançou o TF108, um carro que, embora mais competitivo que seus antecessores, ainda não conseguiu levar a equipe ao topo. Durante a temporada, a Toyota conseguiu mais dois pódios — um segundo lugar de Timo Glock e um terceiro lugar de Jarno Trulli, mas faltava consistência para competir de forma regular com as principais equipes. A equipe encerrou o campeonato na quinta posição, o que foi visto como mais uma decepção, dado o imenso orçamento e as expectativas.
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A última tentativa e o fim da aventura
A temporada de 2009 foi o último capítulo da Toyota na Fórmula 1. A equipe entrou no campeonato com o TF109, um carro que utilizava o novo regulamento técnico que introduziu o KERS e permitiu o uso de difusores duplos, uma inovação aerodinâmica que algumas equipes aproveitaram melhor que outras — certo, Brawn?
Apesar de um início promissor, com dois terceiros lugares nas duas primeiras etapas, a Toyota não conseguiu sustentar o ritmo, alternando pontuações baixas e abandonos. Para piorar, naquela temporada as fabricantes já sofriam as consequências da crise financeira global de 2008 e a Toyota, que àquela altura havia se tornado a maior fabricante do planeta, sofreu um forte golpe fora das pistas. Assim, ao final da temporada de 2009, a Toyota anunciou o fim do seu programa de Fórmula 1, citando a necessidade de reduzir custos e priorizar sua recuperação econômica.
Depois de oito temporadas e quase US$4 bilhões, a Toyota disputou 140 corridas e não venceu nenhuma delas. Foram apenas 13 pódios e um modesto quarto lugar como melhor resultado no Mundial de Construtores — um fiasco que frustrou os planos da Toyota em termos de construção de uma imagem tecnológica e esportiva. Curiosamente, em paralelo a Toyota começava a construir parte da imagem que tem atualmente com as primeiras gerações do Prius. Ainda em 2009, Akio Toyoda foi empossado presidente da Toyota e iniciou uma nova era na fabricante, que incluiu novos investimentos em automobilismo e viu a formação de parcerias técnicas que resultaram em esportivos fundamentais para a construção da imagem que a Toyota desejava construir na Fórmula 1.
Ainda em 2010 a Lexus, sua subsidiária de luxo, colocou no mercado o avançadíssimo LF-A, um carro que, embora não tenha revolucionado o segmento, se mostrou extremamente competente e desejável, abrindo as portas para a criação do Toyota GT86 e do retorno do Supra, assim como o programa da Toyota no Mundial de Endurance.
Agora, com a criação da Gazoo Racing como divisão esportiva — que deu refinamentos notáveis até mesmo à picape Hilux —, a Toyota volta a se associar à Fórmula 1. Curiosamente, fazendo o caminho inverso do que fez duas décadas atrás.