Você já se perguntou por que os americanos compram carros japoneses e coreanos, mas não compram carros brasileiros? O que levou a Hyundai e a Honda e a Toyota e a Kia a se tornarem bem-sucedidas no maior mercado, digamos, qualitativo de automóveis? Por que a Puma e a Gurgel e a Miura e a Santa Matilde não conseguiram? Ou por que um dia desenvolvemos carros para o Brasil e hoje adaptamos projetos coreanos, chineses, tailandeses, indianos e de outros mercados menos badalados?
Por causa do borracheiro de quinta-feira.
Na quinta-feira acordei às seis da manhã e saí para pegar o primeiro horário de atendimento na borracharia mais conceituada da cidade. O pneu dianteiro direito estava mais gasto por fora que o pneu dianteiro esquerdo, então mandei conferir o alinhamento das rodas. Dez minutos depois de entregar o carro, a moça da recepção me chamou e disse que estava pronto. Perguntei o que estava errado no alinhamento, ela se limitou a dizer que “estava fora”.
Perguntei de novo: “Câmber, cáster, convergência…?” A moça insistiu: “Estava fora de convergência”. Perguntei se eles tinham laudo. Não tinham. Paguei e fui embora. Duas curvas mais tarde, o pneu esquerdo começa a a reclamar estridentemente.
Voltei no sábado explicando que o carro estava pior, que a roda estava claramente fora de alinhamento e apontei as marcas escuras na quina externa da banda de rodagem. O sujeito imitou o pneu e deu de ombros. Insisti e ele aceitou conferir o alinhamento. Cinco minutos depois ele me chama e diz que está alinhado.
Desta vez fiquei ao lado da rampa e pedi para ver as medidas. Não batiam com o manual do carro. Mostrei o manual e falei que queria as medidas do manual. O sujeito insistiu que estavam corretas. Agradeci e fui embora. Sou o cliente que não reclama descrito por Sam Walton.
Seria um problema fácil de resolver se este não fosse a última borracharia onde eu era bem atendido na cidade. Todas as outras (eu não moro numa capital, então não são muitas) têm um tratamento semelhante: fazem como querem, e não como tem que ser feito. E quando isso acontece, é preciso fazer duas vezes — o que significa que se trabalha em dobro para ter um mesmo resultado, ou que se produz metade do que era possível produzir.
O borracheiro de quinta-feira não é uma exceção. O trabalhador brasileiro — e aqui estamos todos nós incluídos — é quatro vezes menos produtivo que um americano ou um alemão, e três vezes menos produtivo que um coreano. E não pense que é por preguiça ou falta de talento: a produtividade tem muito mais a ver com a qualidade da formação técnica e sua atualização, com a infra-estrutura das empresas, com a burocracia de um país e até com sua carga tributária.
Por que o borracheiro de quinta-feira não tinha um aparelho de alinhamento eletrônico? Por que ele ainda usava a maldita garra e espelhinhos que eram usados na Belina do meu pai em 1987? Provavelmente porque esse aparelho é tão mais caro a ponto de não ser compensado pelo possível aumento da demanda. Somos improdutivos, mas não estúpidos, afinal.
A pergunta que temos que fazer, contudo, não é “por que ele não investe?”, mas “por que a bendita máquina mais moderna não é mais acessível?”
Impostos? Câmbio desfavorável? Margens mais elevadas? Burocracia? Legislação? É uma reação em cadeia complexa, que envolve milhões de direitos, pouquíssimos deveres, ideologias anacrônicas, lobbies, corrupção, um pouco de leniência e um pouco indolência.
Nem mesmo a revolução tecnológica nos ajudou. Sabe quanto nossa produtividade aumentou desde 1995, apesar dos smartphones, computadores, autenticações e validações eletrônicas, banda larga móvel etc? Somente 1%. Sim, tudo isso nos tornou 1% mais produtivos. E não vai melhorar tão cedo: a expectativa é que nossa produtividade tenha recuado 0,7% em 2019. A cada dois passos voltamos um.
O que isso tem a ver com os carros que os americanos compram e os carros que não mais desenvolvemos?
A resposta deveria estar implícita. Mas caso não esteja, ela é simples: tudo.
A improdutividade resulta no infame Custo Brasil. Como nossa produtividade não é tão eficiente quanto poderia, levamos mais tempo, gastamos mais dinheiro e consumimos mais recursos para produzir o mesmo que em outros países. Em resumo, nossa improdutividade custa caro. Porque você poderia investir o mesmo para produzir mais em outro lugar. E como se isso não fosse suficiente, nosso poder de compra encolheu, o que significa que você precisa de produtos mais baratos. Percebe a sinuca de bico em que estamos? As coisas são caras de produzir, mas precisam ser baratas para que possamos comprá-las.
Não adianta falar em alta lucratividade, em ganância e outras abstrações improváveis. O Brasil é inóspito para indústrias e é por isso que elas estão saindo do país ou produzindo menos.
Veja as marcas brasileiras mais famosas de qualquer setor. Pegue sua televisão, seu celular, seu liquidificador, sua sanduicheira ou torradeira, sua cafeteira, seu despertador, sua impressora, sua jaqueta corta-vento, seus tênis e veja quantos são fabricados no Brasil. Lembra do iPhone brasileiro? Pois ele agora é feito na Índia. Não é só porque a China ou o Vietnã escravizam seus trabalhadores. É porque produzir aqui é mais caro do que nestes lugares. Sempre foi. Por isso os carros eram tão simples e, ao mesmo tempo, caros até o início dos anos 1990.
As importações eram sobretaxadas e, depois, proibidas, então não poderíamos simplesmente trazer um carro inteiro da Argentina ou do México ou da China. O jeito era fazer aqui. E assim nasceram modelos como o Corcel, o Del Rey, o Gol, as evoluções do Chevette e do Opala. A longevidade do Galaxie, e da Kombi de primeira geração. E assim também nasceram as fábricas brasileiras: Vemag, Romi, FNM, Gurgel, Puma, Miura e Santa Matilde.
A industrialização do Brasil foi historicamente afetada por decisões equivocadas dos governos de suas respectivas épocas. No final do século XIX, por exemplo, a competitividade do café brasileiro já estava em baixa, mas o governo investiu fortunas em incentivos aos produtores — que acabaram falidos no início do século XX, atrasando nossa industrialização.
As fábricas vieram, mas ainda eram muito subsistentes: produzíamos para suprir parte da demanda interna. As importações ainda eram o lado mais pesado da balança comercial brasileira e, para equilibrar o negócio, Getúlio Vargas decidiu incentivar a industrialização do Brasil. Substituiríamos as importações por produtos nacionais e, de quebra, teríamos empregos e riqueza. E para estimular o consumo de produtos nacionais, bastava tributar pesadamente os produtos estrangeiros.
Foi assim que surgiu a Companhia Siderúrgica Nacional, a Companhia Brasileira de Alumínio e a Fábrica Nacional de Motores. E foi assim que surgiu o GEIA, o Grupo Executivo da Indústria Automobilística, responsável pela gestação da indústria nacional.
O problema é que: 1) o Brasil era um país pouco desenvolvido; 2) a produção era voltada para substituição das importações no mercado interno. Sem escala, o custo de produção era elevado e não era atrativo para exportação. Sem importados, o produto não tinha concorrência externa.
Isso não afetou apenas a chegada da tecnologia — sempre atrasada em vinte anos, no mínimo. O produto brasileiro era um menino mimado de condomínio, protegido por câmeras, grades e vigilantes, sem a menor noção de como sobreviver no mundo real. Quando as importações foram abertas, aconteceu o óbvio: os projetos nacionais foram massacrados por projetos estrangeiros e modelos importados. Até chegamos a desenvolver algo por aqui, mas o Brasil teve apenas alguns surtos de competitividade.
Mas isso não explica porque os coreanos e japoneses — principalmente os coreanos — conquistaram o mercado americano. Os japoneses nós sabemos como: crise do petróleo. O Japão sempre fez carros compactos e ultra-eficientes. Nos anos 1970, as cicatrizes da guerra já não doíam mais, e os americanos encontraram nos Honda, Datsun e Toyota a economia de combustível de que precisavam.
Com os coreanos o negócio foi diferente. Porque eles também precisaram competir com os carros japoneses. A divisão de automóveis da Hyundai, que é a grande fabricante coreana, foi fundada somente em 1967 — 11 anos depois do primeiro carro brasileiro. Logo de cara eles fizeram joint-ventures com fabricantes europeias (como a Ford) para produzir modelos sob licença para o mercado interno coreano. Foi mais ou menos o que a Vemag fez com a DKW, a FNM fez com a Alfa Romeo e a Romi fez com o Isetta.
Mais ou menos, porque a Coreia não permitiu que as empresas nacionais fossem controladas totalmente por multinacionais. O controle acionário deveria permanecer coreano. Além disso, em menos de dez anos eles produziram seu primeiro modelo “autoral”, o Hyundai Pony, o que também aconteceu no Brasil. Só que, diferentemente dos carros brasileiros, o Pony foi exportado para o Equador e para a Bélgica, Holanda e Luxemburgo em 1975.
Como os carros brasileiros, o Pony também usava tecnologia estrangeira: o design era de Giorgetto Giugiaro e o motor era um projeto licenciado da Mitsubishi. Claro, o carro não era um primor de construção e acerto, mas ao menos estava sendo exposto ao mercado internacional e enfrentando a concorrência. Em 1982 ele chegou ao Reino Unido, vendendo impressionantes 2.993 unidades em seu primeiro ano. Em 1984 ele atravessou o Pacífico e foi parar no Canadá onde se tornou um dos carros mais vendidos daquele mercado.
Foi somente o sucessor do Pony que colocou a Hyundai nos EUA. O Hyundai Excel, que atendia às normas de emissões da Califórnia, começou a ser vendido na terra dos muscle cars em 1986. Apesar de ser considerado o “Best Product #10” da revista Fortune, ele não foi exatamente um sucesso de vendas e foi até ridicularizado por seus anacronismos e sua falta de qualidade frente aos modelos mais sofisticados da mesma categoria. Não chegava a ser um Yugo ou um LeCar, mas não era o carro que alguém considerava como alternativa a um Cavalier, a um Escort ou mesmo a um Corolla.
Só que… sua incursão americana se sustentava. Porque ele não era grande coisa, mas era ridiculamente barato. O preço médio dos compactos americanos em 1986 era US$ 10.439, mas o Hyundai Excel custava entre US$ 5.494 e US$ 7.470. É o que acontece com um carro barato de produzir — diferentemente dos nossos.
O Hyundai Excel (e, mais tarde, o Sonata) tentou sobreviver no mercado americano. E tentando sobreviver ao mercado ele evoluiu para ser competitivo. Os Hyundai foram motivo de comentários jocosos até o início da década de 2000. A partir da segunda metade daquela década, com a nova geração de sua linha de produtos, eles apresentaram uma qualidade semelhante ou superior a modelos tradicionais e começaram a figurar na lista de modelos mais vendidos dos EUA — incluindo a Kia, então já sob o comando da Hyundai. As duas marcas têm uma fatia de 8% do mercado americano — vendendo o mesmo que Subaru e Volkswagen juntas.
Quando um fabricante vem a público e declara que não sabe se continuará no Brasil devido à baixa competitividade, tendemos a encarar como chantagem para obter benefícios do governo. Talvez isso seja verdade, porque o Brasil historicamente funcionou com incentivos a alguns setores em vez de se desburocratizar e fomentar a liberdade econômica. Contudo, é isso o que grandes empresas fazem. Elas são grupos de pressão, porque têm algo a oferecer em troca. O governo não tem capacidade de gerar empregos — a menos que você crie enormes estatais ineficientes — são as empresas. Desde uma “esquentadoria de marmitas” até grandes corporações.
A indústria automobilística brasileira emprega mais de 110.000 trabalhadores diretamente e mais de 1 milhão indiretamente. A redução da produção, sem o crescimento de outros setores, resulta em desemprego ou em menos renda. Nos dois casos a única diferença é o quanto o trabalhador irá empobrecer. É daí que vem o poder de barganha: nos interessa manter uma indústria nacional para gerar empregos, para sustentar a economia e, no fim das contas, para termos carros produzidos localmente.
Só que o Brasil não está valendo a pena para as fabricantes. Isso não é um blefe das grandes corporações, mas um fato. O custo de produção do mesmo carro é entre 7% e10% maior no Brasil do que nos Estados Unidos. E a produção nos EUA é mais cara que na Ásia. Como resultado, as fabricantes preferem exportar carros para os demais países sul-americanos a partir de outras regiões como Ásia, México e até da Europa (já viu os carros vendidos no Chile?).
O Peru, que deveria comprar do Brasil pela proximidade geográfica, importou 70% de seus carros novos da Ásia e apenas 2% do Brasil. No Chile, a China e os EUA são os maiores exportadores, com o Brasil aparecendo somente em terceiro, pouco à frente da Argentina. É evidente que o automóvel feito no Brasil não é competitivo e, pior, os automóveis competitivos feitos fora do Brasil não mantêm a competitividade no mercado interno devido à carga tributária — a menos que venham da Argentina ou do México.
A solução encontrada pelos fabricantes é desenvolver modelos específicos para o nosso mercado. Mas devido à atual dinâmica do mercado global, as fabricantes desenvolvem os carros em seus mercados mais competitivos e os adaptam para o Brasil, em departamentos de engenharia esvaziados. Foi o que aconteceu com o Toyota Yaris (Tailândia), com toda a linha Renault (Romênia), com toda a linha Chevrolet (China e Coreia) e também deverá acontecer com outros fabricantes — como a Ford, que demitiu 110 funcionários de seu campo de provas em Tatuí/SP — caso o Brasil não se torne competitivo tão cedo.
O resultado disso poderá ser o mesmo do iPhone brasileiro: ficou caro demais, a fábrica foi para a Índia, empregar indianos, qualificar indianos, desenvolver a capacitação e a engenharia indiana. Por que seria diferente com os carros?
Quando isso acontecer, seremos todos borracheiros de quinta-feira.