Muito se fala do “jeitinho brasileiro” de resolver as coisas. Você sabe bem do que se trata: fazer uma gambiarra, encontrar uma solução técnica alternativa, dar cabo de um problema ou conflito de uma forma não-convencional (e potencialmente ilegal).
Mas o jeitinho não é exclusividade brasileira, e nem sempre burlar a lei significa desrespeitá-la. E é claro que isso também se aplica à indústria automobilística.
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Por aqui, recentemente tivemos uma manobra curiosa por parte da Volkswagen: o Up, que saiu de linha há pouquíssimo tempo, perdeu um dos cinco lugares para adequar-se à lei. Explico: começando em 2020, todos os carros novo vendidos no Brasil precisam ter cintos de três pontos e encostos de cabeça em todos os assentos – incluindo para quem vai no meio do banco de trás.
Quando o Up foi lançado no Brasil, a divisão local da Volkswagen teve de modificar o projeto para que ele acomodasse cinco pessoas, com um aumento no entre-eixos e a inclusão de um quinto lugar – na Europa, onde foi projetado (e ainda é vendido, vale lembrar), o Up é um carro essencialmente urbano, com espaço para apenas quatro pessoas, e geralmente é o segundo ou terceiro veículo de uma família. No Brasil, onde muitas casas ainda têm só um carro, não seria possível vendê-lo do mesmo jeito.
No início, não houve problema algum: o Up ganhou mais um assento no banco de trás, com cinto abdominal. Porém, com a mudança na lei, a Volkswagen optou por simplesmente eliminar o lugar do quinto ocupante em vez de modificar o banco para receber um cinto de três pontos e um encosto de cabeça para o ocupante do meio. Ou seja, depois de todo o trabalho para desenvolver um Up de entre-eixos mais longo para cinco pessoas, a Volks simplesmente deixou o carro essencialmente igual à versão europeia.
Não seria mais fácil ter vendido o Up no Brasil com quatro lugares desde o início? Certamente – e o Ford Ka de primeira geração provou ser possível vender um carro de quatro lugares no Brasil. É uma pena, porque o Up era um projeto excelente e poderia ter sido melhor aproveitado.
Mas nós estamos falando de tudo isso por causa de outra notícia: a Suzuki fez algo parecido para continuar vendendo o mini-jipe Jimny na Europa. Por lá, uma nova mudança nas leis de emissões tornou os limites mais rígidos para veículos de passeio – mas não para utilitários e veículos comerciais.
Para não perder um mercado importante – afinal, os britânicos também usam o volante do lado direito, o que facilita importações do Japão – a Suzuki decidiu simplesmente deixar de vender o Jimny no Reino Unido como carro de passeio e, em seu lugar, colocar uma versão furgão feita quase sem custo nenhum: retirou-se o banco traseiro, instalou-se uma tela entre o habitáculo e a área de carga, e pronto.
Oficialmente, o Jimny é um veículo comercial de verdade. Na prática, quem vai comprá-lo são os trilheiros, que vão utilizá-lo da mesma forma que sempre utilizaram. Talvez até com um banco traseiro adaptado para rodar longe das vias públicas – algo que causaria problemas em uma eventual fiscalização.
Foi uma sacada inteligente – e fica claro que, apesar de ser enquadrado como um veículo comercial, o Jimny continua sendo voltado ao consumidor final: ele ainda tem todos os equipamentos de conforto e segurança, incluindo sistemas semi-autônomos. Ironicamente, não houve quakquer modificação no motor para reduzir emissões: o 1.5 de 100 cv continua idêntico.
Mas existiram mais malandragens parecidas no passado. Na década de 80, por exemplo, outra fabricante japonesa seguiu o caminho oposto da Suzuki com o Jimny.
Tudo começou em 1963, quando o então presidente dos Estados Unidos, Lyndon Johnson, estipulou uma taxa de 25% sobre importações de diversos produtos para dentro do país – fécula de batata, dextrina, conhaque e, por alguma razão provavelmente arbitária, picapes leves. A medida foi uma represália ao aumento do imposto de importação sobre carne de frango dos EUA para a Europa – na época, os produtores de frango europeus estavam se sentindo prejudicados pela carne americana, e a ideia era estimular o consumo de produtos locais.
Com o tempo, quase as taxas elevadas foram extintas – exceto pelas picapes leves, sobre o qual a chamada Chicken Tax (“taxa do frango” em tradução livre) incide até hoje.
Avançando um pouco no tempo, chegamos a 1978. Naquele ano, foi lançada a Subaru BRAT – um raro exemplo de carro fabricado no Japão apenas para exportação. A BRAT – de Bi-drive Recreational All-terain Transport – foi encomendada pela divisão americana da Subaru para brigar com outras picapes compactas japonesas que estavam chegando aos EUA, como a Mazda B-Series (vendida pela Ford como Courier) e a Nissan Datsun Truck. Seu diferencial era o sistema de tração integral, igual ao do Subaru Leone.
Por conta da taxa do frango, a BRAT custaria muito mais caro do que a Subaru estava disposta a cobrar – o que era um problema pois, apesar de visar lucro, uma fabricante também quer praticar um preço que o consumidor esteja disposto a pagar.
Para contornar a taxa, a Subaru fez algo surpreendentemente simples – apelou para a famosa “solução técnica alternativa” e colocou dois bancos na caçamba, virados para trás. Bancos que, aliás, estavam mais para cadeiras. Mas havia cintos de segurança e até carpete no assoalho – o que garantiu que a BRAT fosse classificada como carro de passeio, e não utilitário.
Outras fabricantes tomaram providências parecidas para burlar a chicken tax. Até 1980, outras fabricantes japonesas venderam picapes leves nos Estados Unidos com a ajuda de empresas locais. A Chevrolet LUV, que era fabricada pela Isuzu no Japão; e a Ford Courier, que era um projeto da Mazda, eram levadas para os EUA como chassi-cabine, o que as isentava da taxa extra, e recebiam a caçamba nos Estados Unidos. Como o imposto não podia incidir de forma retroativa, elas acabavam livres da cobrança. Em 1980, a lei mudou para incluir os chassi-cabine e a brecha não pode mais ser explorada.
Curiosamente, também foi nos Estados Unidos que aconteceu outro caso icônico de “jeitinho” – mas fazendo o caminho oposto.
Você certamente conhece o Chrysler PT Cruiser, e sabe que na prática ele é um hatchback com visual inspirado nos carros da década de 1930. Nos Estados Unidos, porém, legalmente o PT Cruiser era uma picape. Aliás, o “PT” do seu nome quer dizer “Plymouth Truck”, pois o modelo foi originalmente concebido como um Plymouth.
A situação era a pela qual o Suzuki Jimny passou no Reino Unido: de acordo com as leis de emissões no fim da década de 1990, o PT Cruiser não poderia ser vendido – ele ultrapassava o limite de CO2.
Mas a lei era mais branda para picapes e utilitários. Então, em vez de modificar o motor ou instalar algum sistema para reduzir a emissão de poluentes, a Chrysler simplesmente fez com que o banco traseiro do PT Cruiser fosse removível, dizendo que o intuito era permitir que o compartimento fosse usado para transportar carga.
De acordo com as normas da National Highway Traffic Safety Administration (NHTSA), órgão responsável por fiscalizar diversos aspectos dos veículos que circulam nos Estados Unidos, as medidas foram suficientes para classificar o PT Cruiser como picape – e, consequentemente, a Chrysler pode vendê-lo sem problemas.