em 1947 a italia era um pais estilhaçado pela guerra a segunda guerra mundial terminara dois anos antes mas as fabricas que nao haviam sido bombardeadas estavam sucateadas gasolina era artigo de luxo pneus eram reaproveitados ate o limite do possivel e boa parte da industria automobilistica estava inativa desmontada ou convertida para outras finalidades mais urgentes que um carro nao havia dinheiro logo nao havia demanda e por isso tambem nao havia um mercado mas foi exatamente nesse cenario que surgiram algumas das ideias mais avançadas e ousadas da historia do automovel a escassez afinal exige escolhas — e quando nao ha margem para desperdicio so as ideias verdadeiramente revolucionarias sobrevivem foi nesse ambiente que nasceu o cisitalia 202 nao foi criado por uma gigante da industria mas sim por uma empresa diminuta sem recursos proprios de produçao que dependia de fornecedores e improviso nao foi projetado por um time de engenheiros mas por uma colaboraçao quase artesanal entre um industrial inquieto um designer que ainda nao era lenda e tecnicos que haviam aprendido na marra a trabalhar com o que tinham a mao foi nesse ambiente que nasceu o cisitalia 202 nao foi criado por uma gigante da industria mas sim por uma empresa diminuta sem recursos proprios de produçao que dependia de fornecedores e improviso nao foi projetado por um time de engenheiros mas por uma colaboraçao quase artesanal entre um industrial inquieto um designer que ainda nao era lenda e tecnicos que haviam aprendido na marra a trabalhar com o que tinham a mao o cisitalia 202 nao foi o primeiro automovel do pos guerra nem o mais potente nem o mais inovador tecnicamente mas foi o primeiro carro que deu forma ao futuro foi o primeiro a traduzir em linhas metalicas continuas o desejo de um mundo novo — mais limpo mais racional mais bonito um carro que rompeu com a tradiçao barroca e compartimentada do design pre guerra e propos uma nova linguagem formal a da integraçao da fluidez da aerodinamica como expressao estetica quando o museu de arte moderna de nova york decidiu em 1951 montar uma exposiçao sobre arte em movimento o cisitalia 202 foi o unico automovel incluido como obra de arte no acervo permanente mas antes de ser simbolo ele foi um projeto real com quatro rodas um volante motor e cambio e uma produçao em serie uma obra visionaria feita com martelos soldas e convicçao a pequena fabrica de grandes ideias o nome completo era consorzio industriale sportiva italia — que parece mais uma cooperativa agricola do que uma fabricante de automoveis mas ela acabaria conhecida pelo acronimo cisitalia um nome forte que era reflexo direto da atuaçao de seu criador piero dusio ex jogador da juventus ex piloto de corridas e empresario dusio nao era engenheiro e muito menos artista ele era o tipo de empresario que agrupa os talentos e extrai da equipe o melhor que cada um deles e capaz de fazer na cisitalia por exemplo ele juntou carlo abarth a ferdinand porsche antes da guerra dusio ja havia fundado uma pequena empresa de insumos industriais a consorzio industriale que fornecia tecidos e peças metalicas a fiat entre outros clientes durante a guerra seus contatos politicos e sua perspicacia resultaram em um contrato de fornecimento para o exercito italiano quando o conflito finalmente acabou em 1945 ele tinha capital e influencia suficientes para tentar algo maior — mas em um pais destruido isso significava criar quase tudo do zero a cisitalia desde o inicio nao havia sido estruturada como uma fabricante tradicional mas como uma especie de consorcio semi artesanal dusio reuniu engenheiros fornecedores e oficinas independentes sob um guarda chuva informal oferecendo a cada um participaçao nos lucros o motor vinha da fiat — o pequeno quatro cilindros 1 089 cm³ ohv do nuova ballila 1100 lançado em 1937 o chassi tubular fora projetado internamente inspirado pelos monopostos da marca mas construido por terceiros as carrocerias feitas artesanalmente saiam de pequenos estudios de turim como a carrozzeria rocco motto [caption id= attachment_386366 align= alignleft width= 1920 ] o cisitalia d46[/caption] a estrategia de dusio era clara usar peças e tecnicas consolidadas no marcado mas combinadas de forma unica com estetica refinada e foco em desempenho seu objetivo imediato era disputar corridas no ambiente escasso do pos guerra o automobilismo pode parecer um desperdicio de recursos e um luxo desnecessario se nao havia gasolina nem pneus nem dinheiro nem mercado — como explicar o renascimento do automobilismo italiano logo apos a guerra a resposta nao esta na logica economica mas na força da cultura e da identidade nacional para os italianos o automobilismo sempre foi mais do que meras corridas de carros era uma identidade nacional — uma identidade da qual eles se orgulhavam muito desde os tempos heroicos da mille miglia e do targa florio passando pelas vitorias da alfa romeo nos grand prix dos anos 1930 o carro de corrida era um simbolo da engenhosidade e do espirito competitivo do pais reacender esse espirito em 1947 em meio as ruinas da guerra era uma maneira de provar ao mundo — e a si mesmos — que a italia ainda estava viva muitos dos primeiros carros de competiçao do pos guerra nasceram nao de grandes corporaçoes mas de pequenos grupos de engenheiros apaixonados como a scuderia cisitalia as corridas aconteciam com o que havia pneus recauchutados combustivel formulado com criatividade motores recuperados de modelos antigos circuitos improvisados em estradas publicas e premios quase simbolicos — o verdadeiro valor estava na gloria na inovaçao tecnica e no prestigio que podiam gerar a automobilismo era um gesto de renascimento em um pais onde tudo precisava ser reconstruido as corridas ofereciam algo que nenhum plano de reconstruçao governamental podia fornecer orgulho esperança e otimismo por isso mesmo antes de o mercado automobilistico renascer as corridas ja estavam de volta [caption id= attachment_386367 align= alignleft width= 800 ] tazio nuvolari e seu cisitalia[/caption] tambem por isso dusio entendeu cedo que disputar corridas era uma vitrine para sua fabrica em 1946 os monopostos cisitalia d46 ja estavam disputando nas principais competiçoes do pais feitos sobre longarinas tubulares simples com mecanica fiat 1 1 levemente modificada e carroceria minima esses monopostos eram leves ageis e acima de tudo acessiveis o cisitalia 202 dusio contudo queria mais vencer nao bastava era preciso transformar as vitorias em algo que o publico desejasse dirigir assim entre 1946 e 1947 começou a surgir a ideia de uma versao de rua inspirada na base do d46 mas com mais sofisticaçao aqui entra um nome essencial dante giacosa engenheiro chefe da fiat e talvez o maior arquiteto da escola italiana de engenharia automotiva foi giacosa quem nos bastidores apoiou a cisitalia fornecendo motores consultoria e ate desenhos de suspensao ele acreditava na ideia de dusio e sabia que mesmo sem envolvimento oficial da fiat o sucesso da cisitalia elevaria a imagem da engenharia italiana como um todo [caption id= attachment_386368 align= alignleft width= 1024 ] giacosa de sobretudo[/caption] com o projeto mecanico amadurecendo dusio virou se para a parte mais delicada o desenho da carroceria em 1947 o padrao de design ainda era o mesmo do pre guerra para lamas destacados capo separado do corpo principal volumes independentes era a herança direta das carruagens — e ate mesmo modelos modernos como os primeiros alfa romeo e os delahaye franceses ainda seguiam esse padrao dusio queria romper com isso queria um carro que parecesse moldado pelo vento e nao pelos martelos foi entao que procurou battista pinin farina um nome ja conhecido no meio mas ainda nao consagrado como mestre o desafio lançado a farina era claro criar algo radicalmente novo mas funcional um carro de verdade nao um prototipo de salao [caption id= attachment_386369 align= alignleft width= 860 ] pininfarina e o cisitalia 202[/caption] o que saiu do estudio de farina nao era apenas inovador era revolucionario bonito acima de tudo como diria o designer em vez de volumes separados a carroceria do cisitalia 202 gt era continua os para lamas fluiam das laterais do carro a linha do capo descia sem interrupçao ate o para choque e a traseira arredondada eliminava o degrau visual comum aos carros da epoca a grade dianteira era estreita alta elegante nao havia excessos nem ornamentos gratuitos era um automovel desenhado como se fosse uma peça unica — e era mesmo farina nao fez isso sozinho contou com a colaboraçao tecnica de giovanni savonuzzi ex aeritalia que ajudou a calcular os fluxos de ar e volumes da carroceria e contou com a habilidade dos artesaos da carrozzeria stabilimenti farina ainda separada da futura pininfarina para transformar o modelo em realidade — martelando cada painel a mao como todos os grandes escultores italianos sempre fizeram seria facil imaginar que um carro com visual tao revolucionario tivesse um v12 sob o capo mas o motor era outro — bem mais humilde a alma do 202 ainda era o quatro cilindros fiat de 1 089 cm³ com bloco de ferro fundido valvulas no cabeçote e um unico carburador weber usado pelos demais cisitalia na forma original esse motor gerava pouco mais de 30 cv no cisitalia com retrabalho nos dutos comando mais agressivo compressao revista e escapamento afinado ele chegava a algo entre 50 e 60 cv dependendo da versao pode soar pouco mas o segredo do 202 nunca esteve na potencia — e sim no conjunto o carro pesava cerca de 870 kg com carroceria de aço e menos ainda nas versoes de aluminio graças a estrutura tubular desenvolvida a partir dos modelos de corrida da propria cisitalia o cambio manual de quatro marchas tambem da fiat tinha relaçoes encurtadas e engates diretos a traçao era traseira claro e a suspensao seguia a cartilha da simplicidade eficaz eixo rigido na traseira com molas semi elipticas e independente na dianteira com braços oscilantes e molas helicoidais mas e ai que entra um ponto chave o 202 podia ter nascido de peças emprestadas mas sua dinamica era autoral ele nao andava como um fiat 508 com carroceria nova o acerto de suspensao era firme mas previsivel a direçao era direta e comunicativa e o conjunto mecanico trabalhava com uma fluidez que traia sua origem popular — fruto de ajustes finos balanceamento e distribuiçao de peso cuidadosamente calculada nas poucas oportunidades em que a imprensa internacional da epoca pode testar um 202 — a maioria dos exemplares foi direto para maos de colecionadores ou clientes endinheirados — o consenso era claro ele era silencioso preciso e surpreendentemente veloz para o que alguem esperaria de um motor daqueles a velocidade maxima oficial ficava entre 150 e 160 km/h dependendo da configuraçao a aceleraçao de 0 a 100 km/h nao era impressionante — cerca de 15 segundos — mas a elasticidade do motor e a leveza do conjunto davam ao carro uma agilidade notavel em estradas sinuosas mais interessante ainda era como o 202 parecia mais rapido do que sua ficha tecnica sugeria — resultado direto de sua aerodinamica ha relatos de testes rudimentares que apontam um coeficiente inferior a 0 38 alto hoje em dia mas excepcional para a epoca isso se traduzia em uma experiencia de velocidade jamais vista enquanto concorrentes da epoca ainda brigavam com sobre esterço rolagem desajeitada em curvas e barulho de vento acima dos 120 km/h o 202 deslizava com serenidade pelas estradas italianas [caption id= attachment_386373 align= alignleft width= 1200 ] o cisitalia mm nuvolari[/caption] a versao de competiçao o 202 mm era ainda mais extrema carroceria de aluminio mesmo motor 1 1 com acerto para corrida e bancos quase inexistentes foi com ela que dusio correu a mille miglia de 1947 dividindo o carro com ninguem menos que tazio nuvolari eles nao venceram mas chegaram em segundo lugar geral atras apenas do alfa romeo 8c de clemente biondetti — um feito extraordinario considerando o tamanho do carro e do fabricante com isso o cisitalia 202 provava que suas formas tambem eram funçao — um equilibrio raro entre engenharia design e acerto dinamico um carro que andava tanto quanto seu design sugeria a forma da revoluçao para entender o impacto visual do cisitalia 202 e preciso antes entender o que era considerado belo em um carro em 1947 ate entao a beleza vinha do virtuosismo artesanal um bom carro era bem proporcionado bem ornamentado bem construido mas sua forma era uma colagem de peças capo para lamas cabine e traseira eram blocos autonomos agrupados com mais ou menos harmonia refletindo uma logica pre industrial — a do automovel como uma evoluçao natural da carruagem o cisitalia rompeu com isso sua carroceria parecia ter sido moldada a partir de uma unica folha metalica os volumes eram integrados pela primeira vez um carro produzido em serie tinha superficies curvas e limpas que fluiam da dianteira a traseira sem interrupçoes visuais a frente era afilada com uma grade alta estreita e recuada quase como um sorriso discreto os para lamas eram absorvidos pela silhueta geral o teto arredondado e sutilmente mais alto que a linha dos vidros conectava se a traseira com um caimento fluido sem a quebra tipica entre cabine e porta malas visto de perfil o 202 nao parecia montado — parecia modelado esse impacto foi sentido de imediato a imprensa europeia — de publicaçoes tecnicas a revistas de moda — ficou fascinada com a pureza do cisitalia ele era moderno sem ser futurista aerodinamico sem parecer uma caricatura aeronautica esportivo sem parecer agressivo pela primeira vez beleza e esportividade caminhavam juntas essa impressao foi tao forte que em 1951 o museu de arte moderna de nova york moma incluiu o cisitalia 202 em sua exposiçao eight automobiles dedicada a examinar o carro como arte funcional mais do que isso ele foi o unico modelo da mostra a ser incorporado ao acervo permanente do museu nao como simbolo cultural mas conforme declarado pelo proprio moma como uma obra prima do design industrial moderno ao lado de cadeiras eames luminarias de alvar aalto e louças de le corbusier para pinin farina o 202 foi mais que um projeto foi a criaçao de uma nova linguagem uma linguagem que logo seria falada por todos os fabricantes do planeta a beleza nao vinha mais dos detalhes mas da relaçao harmonica entre as partes o 202 era a prova de que um carro podia ser desenhado com os mesmos fundamentos que regiam a arquitetura moderna ou a escultura o carro que reinventou o carro nao pense no cisitalia 202 como uma escultura de aço que brilhou por uns anos nas ruas e depois se retirou para o pedestal do moma isso seria ignorar que realmente aconteceu nos bastidores da industria entre o fim da decada de 1940 e o inicio dos anos 1950 o 202 foi assimilado por todos os fabricantes a integraçao de volumes a fluidez das linhas a busca por um todo coeso tornou se o novo padrao aspiracional para os esportivos europeus e mais tarde ate mesmo para sedas e cupes de alto volume quando enzo ferrari fundou sua empresa em 1947 uma das primeiras coisas que fez foi procurar pinin farina mas nao foi atendido farina nao queria trabalhar com um ex gerente da alfa romeo sem estrutura nem reputaçao so em 1951 os dois chegariam a um acordo — e a primeira ferrari com carroceria pininfarina a 212 inter nasceria claramente como herdeira formal do 202 o capo longo os para lamas integrados a cabine recuada e a traseira limpa sao todos ecos diretos da obra de farina para dusio [caption id= attachment_386375 align= alignleft width= 1287 ] a ferrari 212 inter pininfarina[/caption] o mesmo aconteceu com a lancia cuja linha aurelia de 1950 em diante absorveu muito do espirito do 202 motor dianteiro traçao traseira carroceria fastback unificada e um acabamento que conciliava elegancia com precisao tecnica ate mesmo os alemaes sempre mais conservadores e sobrios no design se renderam a novidade ferdinand porsche elogiou publicamente o 202 e seu filho ferry admitiu anos depois que o primeiro 356 adotou a mesma filosofia de design dos italianos com o tempo essa linguagem foi absorvida pelos grandes estudios de design automotivo bertone vignale touring ghia — todos os nomes que dominariam a cena nos anos 1950 e 1960 estavam em maior ou menor grau respondendo a proposta lançada pelo 202 e mesmo fora da italia o impacto se espalhou o frances facel vega hk500 o espanhol pegaso z 102 o britanico aston martin db2 — todos exibiam sinais claros de uma nova escola de proporçao e fluidez e verdade que a cisitalia como empresa nao sobreviveu a propria ambiçao os investimentos no carro de grand prix desenhado por ferdinand porsche — o ambicioso monoposto 360 com traçao nas quatro rodas — drenaram os recursos da empresa dusio deixou a italia em 1949 e levou a marca consigo para a argentina onde tentou continuar seus projetos com apoio de peron mas ali o 202 ja era passado o impacto do cisitalia 202 contudo foi muito mais duradouro ele ensinou a industria que o design nao era acabamento e sim o fundamento um carro bem desenhado nao apenas atraia olhares — ele custava menos para ser fabricado em serie tinha melhor desempenho aerodinamico e comunicava os valores que o fabricante desejava transmitir hoje mais de sete decadas depois e possivel ver o cisitalia 202 com a clareza que a passagem do tempo traz ele nao foi um ponto fora da curva foi a propria curva o ponto exato em que o automovel deixou de ser uma soma de partes e passou a ser uma ideia completa no fundo o que o cisitalia 202 fez foi encerrar uma era se hoje olhamos para o cisitalia como um carro que mudou o mundo e por que seus criadores enxergaram que o automovel nao precisava e nem poderia voltar a ser o que era um novo mundo se desenhava e o cisitalia mostrou como seriam os carros neste novo mundo
SEJA UM MEMBRO DA
FAMÍLIA FLATOUT!

Ao ser um assinante, você ganha acesso irrestrito a um conteúdo verdadeiro e aprofundado. Nada de jornalismo genérico e sensacionalista. Vale a pena? Clique aqui e confira os testemunhos dos assinantes, amostras livres e os benefícios extras que você poderá desfrutar ao ser um FlatOuter!
PARA LER MAIS, CADASTRE-SE OU ASSINE O FLATOUT E TENHA ACESSO LIVRE A TODO CONTEÚDO DO SITE!
JÁ POSSUI CADASTRO OU É ASSINANTE DO FLATOUT?
Este é um conteúdo restrito: pode ser uma matéria só para assinantes, pode ser porque você já atingiu o limite de matérias gratuitas neste mês.