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Car Culture

Chevy 500: o que a imprensa disse no lançamento?

Picapes derivadas de automóveis são quase tão antigas quanto o automóvel em si. O Ford modelo T por exemplo já tinha uma versão picape extremamente popular, e o mesmo aconteceu com seu sucessor, o A. Mas em certo ponto da história do automóvel, as empresas resolveram derivar as picapes pequenas de caminhões; parecia mais lógico manter a linha “comercial” das empresas separada da de veículos “de passeio”.

Ford modelo A: picape derivada de automóvel

Esta estratégia, porém, era falha. As picapes sempre foram, desde seu início, veículos de uso misto passageiros/carga. Se era carga que era o objetivo, normalmente se comprava um caminhão logo, de maior capacidade; quem comprava picape queria a praticidade de um caminhão, com o conforto de um automóvel.

Seu comprador inicial eram gente que precisava carregar cargas diversas profissionalmente, mas não queria outro carro para os usos de transporte pessoal e da família. O clássico exemplo era o fazendeiro: trabalhava com ela durante a semana, levava a família para a igreja no domingo.

Chevrolet El Camino 1959: baseada no Impala

Então as picapes derivadas de automóveis começaram a voltar. Na Austrália, por exemplo, nunca chegaram a desaparecer, mas mesmo nos EUA a volta aconteceu também: Ford Ranchero e Chevrolet El Camino os dois clássicos exemplos.

Mas com o tempo, os americanos, que sempre nutriram paixão por suas picapes grandes “Full-size”, resolveram fazer diferente. Desenvolveram as suas picapes não como derivados de caminhões: como um veículo de uso misto grande mesmo, colocando os objetivos de conforto e luxo no mesmo nível de seus automóveis.

BRAT: a Subaru

Com isso a picape grande se tornou o carro mais vendido daquele país, e do mundo. A crise do petróleo faz aparecer opções interessantes: as minipicapes monobloco derivadas de automóveis. Entre 1977 e 1978 aparecem a Fiat Fiorino, a Subaru BRAT e a VW Caddy (derivada do Golf). A picapinha Fiat veio para o Brasil também, inaugurando o segmento por aqui. No Brasil, deste ponto em diante foram um enorme sucesso, fazendo a picape acessível para uma fatia maior da população.

Fiat: pioneira aqui

E mais: como eram monobloco, e derivadas de automóveis modernos de tração dianteira, eram secretamente mais eficientes e melhores que as de chassi separado, grandes. Sua capacidade de carga (em relação a seu peso total), seu controle de carroceria em movimento, seu conforto e estabilidade, e seu espaço interno eram todos exponencialmente melhores.

Picapes monobloco são inerentemente melhores que as com chassi. Mesmo quando grandes. Apesar disso, a evolução da espécie tem sido lenta: foi necessário a Fiat no Brasil com a Toro, e a Ford nos EUA com a Maverick, para mostrar as vantagens inerentes desse tipo de desenho, ainda que num degrau de tamanho abaixo das tradicionais picapes com chassi de cada mercado. Mas deve ser uma questão de tempo; como em furgões de carga, os dias do chassi devem estar contados.

1983: a Chevy 500 aparece.

Mas divago; contei isso para dar algum contexto histórico ao lançamento de uma picape pequena monobloco diferente: a Chevy 500. O “500” aqui é alusão à capacidade de carga, claro, próxima de 500 kg.

Era derivada do Chevette, ali então praticamente um carro a dez anos no mercado, e desenvolvida junto com o extenso projeto de revitalização do modelo de 1983, que além de novo desenho interno e externo, deu também câmbio de 5 marchas, e motor 1.6 litros a álcool, além de um sem fim de outras atualizações, como radiador selado de alumínio.

Como já contamos aqui, não foi a primeira picape Chevette do mundo. Mas esta era diferente das outras, a que duraria mais, e foi projetada aqui no Brasil para o nosso mercado. Foi também a última a chegar no mercado, depois da Fiat, da VW Saveiro, e da Ford Pampa.

Quem fez a primeira picape do Chevette?

É claro que a GM demorou a ter o seu modelo no segmento pelos motivos tradicionais da marca: como essa categoria de veículos era de sucesso somente aqui no Brasil, a empresa nunca entendeu bem a necessidade, controlada por uma sede que nunca entendeu direito o Brasil, e provavelmente nem deseja. Como sabemos, os EUA são o país em que “campeonato mundial” é sempre o nacional: não acreditam na importância de nada fora de suas fronteiras.

Mas a Chevy 500 de qualquer forma era uma opção diferente para o mercado: diferente das outras, tinha tração traseira. O que trazia uma série de vantagens e desvantagens, claro. Mas o incrível é como uma parte da imprensa brasileira tratou destas vantagens e desvantagens na época: criou “fatos” equivocados sobre a tração traseira e dianteira que, vistas de hoje, beiram o inacreditável.

Primeiro, para que se entenda a gafe, vamos falar da realidade da tração dianteira e traseira em picapes. A picape tem duas situações de carregamento extremamente diferentes: vazia e carregada. Quando vazia, a maioria do peso está adiante, melhorando a situação de tração e comportamento da tração dianteira. Carregada, a situação se inverte, e a vantagem é da tração traseira.

Qual é o melhor então? Não há um definitivo. Picapes não são veículos de carga tradicionais, que sempre andam totalmente carregados. Imagine um carro de passeio com caçamba para uso eventual: a maioria das picapes passa a vida assim. É descarregada, ou com uma carga parcial longe do máximo admitido.

Pampa: tração dianteira para carga bem feita.

E mesmo que a carga fosse máxima o tempo todo, tração dianteira ainda assim não é impossível: vejam os furgões de carga modernos, a maioria de tração dianteira. A Citroën mostrou como fazer isso já antes da guerra: basta colocar o eixo traseiro lá no fim do carro, e se possível uma atitude de frente mais baixa descarregado. Execução é tudo, como mostra a Pampa, a preferida até hoje para carregar peso apesar da tração dianteira: tinha entre-eixos maior que o da Belina, motor longitudinal, feixe de mola atrás, e atitude de frente baixa.

Mas uma coisa é certa: tração traseira sem carga em picapes é uma traseira leve, que faz tração em terrenos de baixo atrito um problema. Isso não acontece com tração dianteira. Por outro lado, carga total e terreno de baixo atrito, e subida acentuada, o problema está nas picapes de tração dianteira. Essa é a realidade.

 

A Motor 3 avalia a Chevy 500

A Motor 3, claro, explicou tudo direito. Disse na apresentação do modelo em outubro de 1983: “Teoricamente (a ser comprovado em teste), a Chevy 500 deverá ter melhor capacidade de tração quando submetida à carga completa, com menos problemas de deslizamento em lama ou subindo rampas pronunciadas, já que a colocação da carga sobre o eixo de tração permitirá que este mantenha aderência em solos instáveis.”

Repare no disclaimer “teoricamente”: execução é tudo, e sem avaliar no mundo real, é impossível ter certeza que as vantagens teóricas se comprovam. Vide a Pampa, que funciona muito bem em toda situação. A revista, sempre, tecnicamente perfeita.

Como era uma publicação de “manicacas” por automóvel, a Motor 3 disse também: “Desde já, conhecedores dos invejáveis dotes de estabilidade da linha Chevette e apoiados pela tração traseira da Chevy 500, começamos a imaginar uma versão bastante esportiva e incrementada.” – lembrando que a revista foi pioneira em dizer que uma picape pode ser esportiva. E mais: ao criar uma picape Fiat personalizada, inspirou a Fiat a lançar sua “esportiva” City.

Quando recebeu sua picape de teste, publicado em dezembro de 1983, a Motor 3 disse que “A picapinha cativou a redação por seu aspecto ao mesmo tempo harmônico e parrudo.” Nas medições, a revista comprovou que a alta velocidade o consumo aumentava exponencialmente, e recomendou aos leitores equiparem suas picapes com uma capa marítima; o arrasto com essas capas seria muito menor. A capa, eventualmente, se tornaria de série nas Chevy 500 mais adiante.

Nas medições, a Chevy 500 a álcool fez o 0-100 km/h em 13,5 segundos e chegou a 152 km/h (sem capa marítima). Celso Lamas, o designer, fazia avaliações de estilo para a revista, gostou da picape também: “A limpeza de linhas da traseira é algo para se parabenizar o Departamento de Estilo da GM. Realmente tudo bem-feitinho, lanternas, letreiros e trinco, sem contar, é lógico, com o para-choque muito bem-acabado e a placa de licença sob o mesmo. O assoalho da área de carga está muito bem protegido com as ripas de madeira envernizada; as bordas também, com um borrachão muito bem instalado.” – disse ele.

Mas deixou uma crítica: “Num único ponto não concordo com a GM: a borda da caçamba, que deixou sua lateral muito alta. Se a caçamba seguisse a mesma linha da janela, sua lateral ficaria bem mais agradável e tornaria a pick-up mais comprida. Uma solução para esse problema talvez fosse a aplicação de uma pintura em preto fosco nessa área, dando continuidade às saídas de ar da coluna B.”

JLV encontrou fading nos freios, porém, depois de repetidas frenagens à alta velocidade, com o carro carregado. Pediu que fossem maiores, talvez os do Monza, para um carro de carga como esse, o que nunca aconteceu. Mas terminou o teste positivamente: “Para nós, e se tivéssemos de utilizar uma mini pick-up tanto para lazer como para trabalho de transporte de cargas leves, a Chevy 500 seria, neste momento, a nossa escolha -apesar de nossas restrições aos freios.”

 

A Quatro Rodas avalia a Chevy 500

No teste de lançamento de novembro de 1983, a revista Quatro Rodas, como a Motor 3 disse que gostou do estilo da picape. Além disso, reclamou do tamanho da caçamba, que achou pequena, e disse que a “tração traseira é preferida por muita gente”, sem dizer o motivo.

Os números de desempenho foram inferiores que os da Motor 3, como sempre: 0-100 km/h em 16 segundos e final de 151 km/h. A aceleração pior se deve ao método de teste da revista, que não procurava o modo mais rápido para cada carro, e sim adotava uma aceleração inicial baixa para evitar perda de tração, e trocava marchas no limite recomendado pelo fabricante. A revista gostou também do consumo baixo de combustível.

Mas estranho mesmo foi o que disse no lançamento da versão com o motor 1.6/S mais potente em maio de 1988. A revista elogiou o desempenho melhor do novo motor, mas disse também o seguinte: “É a única de sua categoria com tração traseira, que muitos ainda preferem, por facilitar as subidas em terrenos difíceis ou lamacentos. Além disso, a distribuição de peso entre os eixos fica mais equilibrada. E quem tem de enfrentar estradas ruins sabe das vantagens da tração traseira, o que explica a popularidade de carros como os extintos Fusca e Brasília.”

É uma afirmação errada; Fusca e Brasília tinham tração boa por ter o motor perto do eixo de tração. Como num carro de tração dianteira. Só com carga é verdade no caso da Chevy; descarregado é pior. Não é por isso que “alguns preferem a tração traseira”. A tração traseira dá um controle extra sobre o eixo traseiro, apreciada por quem gosta de dirigir; não é diretamente relacionado á tração, que é outra coisa.

Seria perdoável se fosse um erro localizado; mas dali em diante foi repetido sempre pela revista, sem falha. Em julho de 1993, no fim da vida da Chevy 500 já, a revista disse comparando-a à Fiat Fiorino LX: “A Chevy 500 leva vantagem numa única situação: estradas lamacentas. A tração traseira permite que o carro se desvencilhe, com maior facilidade, das constantes perdas de aderência.”

Mesmo? Duvido muito que esta fosse a vantagem. Uma desinformação que confundiu muita gente. Lembro de meu pai não entender o motivo do Gol do meu irmão andar melhor na lama do sítio que a sua Picape A20 em 1996; “mas a tração traseira não é melhor na lama?”