Quando foi a última vez que você viu um Fusca rodando normalmente pela cidade? Ainda que você esteja nos bairros mais nobres de uma metrópole brasileira, é bem provável que ao menos um deles tenha cruzado seu caminho nos últimos 30 dias.
O uso cotidiano do Fusca é um bom exemplo de como são demoradas as mudanças no panorama automobilístico. Porque ele é um carro projetado e lançado há mais de 80 anos e que continuou praticamente inalterado até o fim de sua produção brasileira em 1996. Mesmo que você tenha o último dos Fusca, ele já será um carro de 24 anos, mas que continua usado diariamente por muitos motoristas — especialmente longe dos grandes centros, com um pneu na roça.
Não é só carisma: ele tem uma longa história de confiabilidade para quem dirige em estradas de terra e vive longe de mecânicos computadorizados e lojas de peças mais sofisticadas que um jogo de velas e juntas de motor.
A situação do Fusca em relação aos carros modernos, é semelhante à situação dos carros movidos pela combustão interna em relação aos elétricos — guardadas as proporções. No princípio do automóvel havia três tipos predominantes de motores — elétricos, a combustão e a vapor —, mas só um deles prevaleceu pelo equilíbrio entre suas qualidades e defeitos. O carro a combustão foi a escolha natural do grande público porque era ele quem entregava da melhor forma o que esperávamos de um automóvel.
Esse predomínio do carro a combustão o tornou extremamente confiável: você pode rodar milhares de quilômetros sem precisar trocar um mísero componente do motor, nem mesmo o óleo. Se trocar o lubrificante e algumas peças de desgaste, ele irá rodar centenas de milhares de quilômetros sem reclamar. E isso só foi possível porque ele está sendo desenvolvido constantemente desde que a sra. Bertha Benz resolveu visitar a mãe com o carro do marido em uma manhã do verão de 1886.
O carro elétrico, embora desenvolvido por curtos períodos nos últimos 130 anos, só ocupou as pranchetas para valer a partir do final dos anos 2000. É uma desvantagem enorme que dificilmente será revertida porque o carro elétrico tem que superar hoje os mesmos problemas que precisava superar em 1910. Só que desta vez as pessoas já conhecem as vantagens dos carro a combustão e resistem a trocá-lo por um modelo elétrico, o que resulta no verdadeiro problema: poucos usuários tornam o desenvolvimento mais lento e mais caro.
Para piorar a história, a tecnologia de baterias ainda não tem uma convergência. Não há uma tecnologia que se mostrou mais promissora e está sendo explorada por todas as fabricantes. Há três tecnologias promissoras sendo desenvolvidas individualmente pelos fabricantes.
Evidentemente os engenheiros e diretores técnicos conhecem as limitações do desenvolvimento dos elétricos e de suas baterias, sabem o atual estágio em que tais tecnologias se encontram e o ritmo necessário para que sejam adotadas plenamente de forma universal e confiável. E é por isso que desde o início da década passada se sabe que os motores a combustão continuarão vivos ao menos até a metade deste século. E não apenas isso: eles continuarão evoluindo e sendo desenvolvidos paralelamente aos motores elétricos e baterias. O que é outra desvantagem para os carros elétricos.
Mas o golpe de misericórdia nos elétricos pode ser algo muito menos complexo do que se imaginava: um novo combustível.
Sim: um tipo diferente de combustível, desenvolvido para que o nível de emissões seja reduzido ou mesmo neutralizado. Afinal, não sei se você já notou, mas os carros elétricos só estão sendo considerados porque a queima dos combustíveis resulta em gases indesejados para a atmosfera e afins — e isso levando em conta a forma na qual usamos os carros hoje. Sem este problema, eles se tornam inúteis e serão preteridos em favor do carro a combustão.
Esse cenário de emissões neutras de combustíveis é o que poderá ser viabilizado pelos chamados combustíveis sintéticos, ou e-fuels em inglês, também conhecidos como e-diesel e e-gasoline. Eles usam como base o CO2 presente na atmosfera e, em uma espécie de reversão do ciclo, se transformam em gasolina e diesel.
Os e-fuels já estão em desenvolvimento há cerca de cinco anos, em iniciativas diversas lideradas pela Bosch e pela Audi. O processo é razoavelmente simples e dividido em três etapas. Na primeira o CO2 é captado da atmosfera e armazenado na planta de produção de combustível sintético. Na segunda, usando eletricidade gerada por energia solar e água, é realizado um processo eletrolítico que separa o hidrogênio do oxigênio da água. Na terceira etapa, o CO2 e o H2 são convertidos em um gás de síntese reativo, que é liquefeito por um reator químico.
O processo já se provou possível e eficiente, porém não era este seu principal obstáculo. Atualmente o maior desafio é a viabilização econômica da produção desses combustíveis em larga escala. De acordo com a Bosch, mesmo com financiadores do desenvolvimento (a Audi, por exemplo) as instalações de processamento são muito caras. A redução dos custos seria uma consequência do aumento da demanda e da redução do custo da energia elétrica, ainda muito cara quando gerada por painéis solares — uma vez que eles ainda não são reciclados e têm eficiência decrescente com o tempo.
Contudo, apesar de um processo que envolve todos estes custos parecer muito mais caro que o processo de produção de gasolina e diesel por refino, a Bosch estima que cada litro pode custar, sem impostos, entre US$ 0,90 e US$ 1,3 em 2030 e menos de US$ 0,90 em 2050. Ainda de acordo com a Bosch, um veículo híbrido abastecido apenas com gasolina sintética teria sua operação mais barata que a de um carro elétrico até os 160.000 km — e isso já considerando a redução projetada do custo dos carros elétricos.
E claro, tem a questão das emissões: ao contrário dos combustíveis fósseis e dos biocombustíveis, os combustíveis sintéticos são neutros em carbono porque o CO2 é usado como matéria-prima para a produção de gasolina e diesel, e reduzem as emissões de CO2 em 2,8 milhões de toneladas, além de terem combustão sem fuligem — o que é especialmente desejável no caso dos motores diesel.
Infelizmente há muito mais fatores do que gostaríamos no processo de barateamento deste combustível — sendo o principal deles o custo de obtenção de eletricidade renovável. Contudo, ultrapassada esta barreira, o e-fuel poderá se tornar uma opção viável para ao menos ser combinado aos combustíveis refinados como forma de redução do saldo final de emissões.
O outro lado: a nova cultura do automóvel
Vejam só como os tempos de crise chacoalham o mundo e alteram nossa realidade da noite para o dia: ao mesmo tempo em que o mundo está se adequando para continuar girando apesar do isolamento necessário para conter a pandemia do coronavírus, a Rússia e a Arábia Saudita seguem brigando pelo preço do petróleo e o negócio chegou a US$ 22, sua menor marca em vinte anos.
Aos nossos olhos acostumados à rotina e à ordem estabelecida das coisas, isso significa apenas que vamos pagar um pouco menos na gasolina daqui a algumas semanas.
Mas a ordem das coisas está brevemente fora do lugar.
Não estamos mais acordando todas as manhãs para ir ao trabalho — o trabalho agora está em casa. Nossos filhos também não vão à escola pois estão estudando em casa — exatamente um ano depois de a discussão sobre a educação domiciliar dividir opiniões no Brasil. Governadores e prefeitos parecem ter finalmente descoberto que não precisavam amontoar os cidadãos nas repartições públicas para corrigir carnês de IPTU ou renovar a CNH e outros processos burocráticos simples. De repente o arroz e o feijão começaram a ser comprados pela internet, como nossos livros, nossos móveis e eletrodomésticos. E isso só está acontecendo porque já era possível há muito tempo, só não havíamos adotado em grande escala. Imagine você: prefeituras trabalhando em regime de home office!
E se tudo isso se tornasse permanente? Não a maldita pandemia, mas esta nova rotina que desenvolvemos para não ter de sair de casa para coisas “banais” como trabalhar. Nossos deslocamentos passariam a ser feitos somente para atividades impossíveis de se fazer remotamente. Como o trânsito seria melhor se começássemos a viver uma rotina pós-revolução tecnológica, algo que ainda não aconteceu — e que pareceu possível de se materializar neste momento.
A cada dia que o isolamento avança e que novas soluções são anunciadas, essa hipótese parece cada vez mais próxima de uma realidade próxima. Ainda hoje, procurando suprimentos para casa na internet optei por usar pela primeira vez o modo de envio rápido, no qual o produto chega até mim em, no máximo, 36 horas. E então fui trazido de volta ao mundo pré-coronavírus por uma matéria da BBC que desmistifica a hipótese de os carros elétricos serem mais poluentes que os carros a combustão quando se considera toda a cadeia. Porque, no fim das contas, a viabilidade do carro elétrico está muito relacionada aos malefícios do carro à combustão. E eles são drasticamente reduzidos quando você elimina os deslocamentos de rotina.
Veja só: apesar da recomendação de distanciamento, o transporte público de São Paulo continua operando, porém o volume de passageiros diminuiu 77%. O impacto no trânsito foi semelhante: segundo a startup VAI – Vehicle Artificial Intelligence, desde o início da quarentena o tempo gasto nos carros diariamente caiu 50,35% e o número de viagens caiu 41,4%. É quase a metade do número de viagens.
E a redução das viagens trouxe outro efeito: em São Paulo, o nível de monóxido de carbono está abaixo do nível mínimo do medidor usado pelo Instituto de Astronomia e Geofísica da Universidade de São Paulo.
Evidentemente não é uma redução que aconteceria nessa proporção em situações normais — as atividades necessariamente presenciais ainda manteriam parte dos deslocamentos. Mas uma eventual escalada do home office, do ensino domiciliar e das compras online, certamente traria uma redução significativa do número de passageiros — o que melhoraria a qualidade da viagem ou até reduziria o volume de viagens. E aí teríamos menos emissões, menor consumo de combustível.
Foi o menor consumo, aliás, que ajudou a derrubar o preço do petróleo para este patamar ridiculamente baixo de US$ 22 — colocando em contexto, em 1974, antes de o barril de petróleo disparar e causar a grande crise energética daquela década, ele custava o equivalente a US$ 15,74.
Diante disso, surge a pergunta: em um cenário no qual fazemos menos deslocamentos “obrigatórios” cotidianos, em que os níveis de emissões estão em patamares aceitáveis e saudáveis, em que os carros de combustão interna são ainda mais eficientes, e o petróleo se mantém na casa dos US$ 40, o que será do carro elétrico?
Porque, embora pareça uma tecnologia plenamente desenvolvida, ela ainda tem muito a contornar — especialmente a questão das baterias, tanto na eficiência, quanto no armazenamento de energia e no tempo de recarga. O carro a combustão é uma máquina que vem sendo aperfeiçoada de forma contínua nos últimos 140 anos. Em 2013, por exemplo, os fabricantes registraram mais de 1.300 patentes relacionadas ao motor à combustão, em sua busca constante por melhor eficiência.
E eles insistem nessa máquina fumacenta e quente porque ainda não sabem se o carro elétrico será viável em escala global em médio prazo. Por essa razão também se estima que o auge da eficiência energética do motor a combustão irá acontecer em 2050, daqui a 30 anos. Trinta anos! Compare o consumo de um Santana GLS 2.0 1990 com o de um Virtus 1.0 TSI e você terá uma noção superficial do nível de evolução que estes motores têm pela frente. Atualmente os melhores carros a combustão não-híbridos já têm motores com quase 40% de eficiência térmica. Os motores mais avançados do planeta, usados pela Fórmula 1, já estão beirando os 60% de eficiência. Com a hibridização, o resultado será ainda mais promissor.
Claro: esta é apenas uma hipótese que dificilmente terá um efeito tão drástico como estamos observando agora, mas que poderá modificar nossa rotina e a mobilidade das cidades ao longo desta próxima década. Nesse cenário, o carro elétrico teria chance?