Foto: Oswaldo Corneti/Fotos Públicas
Na semana passada, a CET anunciou o início da fiscalização por velocidade média em diversos pontos de São Paulo. Como a legislação ainda não permite que autuações desta natureza sejam impostas ao contribuinte, a Companhia alegou que o fim era apenas educativo, ainda que, em paralelo, tenha iniciado uma campanha intensiva focada no respeito à fiscalização eletrônica, e divulgou alguns dados sobre as infrações e acidentes. Se tudo isso está sendo usado em uma articulação governamental para liberar esse tipo de fiscalização, não sabemos – ainda.
Em algumas peças da campanha a CET revela dados chocantes sobre a mortalidade no trânsito, e relaciona as fatalidades ao excesso de velocidade com um slogan afirmativo digno do Ministério da Verdade de 1984. Soou estranho vindo da gestão que prometia combater a “indústria da multa” — uma referência ao aumento de mais de 100% no número de infrações entre 2014 e 2016.
Mas nesta quinta-feira (9) a Companhia compartilhou uma notícia intrigante em sua investida publicitária: segundo a Secretaria Municipal de Transportes e Mobilidade Urbana, somente 5% dos veículos cometem 60% das infrações de São Paulo, e apenas 25% dos veículos cometem todas as infrações de São Paulo.
Isso significa que você, bom motorista/motociclista, não precisa se preocupar com a fiscalização, porque somente uma minoria irresponsável é multada, certo? À primeira vista sim, mas esta estatística nos intrigou porque o número de suspensões da CNH vem crescendo mensalmente na capital paulista e cerca de 6,5 milhões de infrações já foram anotadas neste ano. O que está acontecendo com estes 5,5%?
O jogo de números
Bem… acontece que não são apenas 5,5% que cometem 60% das infrações. A conta da Secretaria está equivocada devido à omissão de um fato divulgado pela própria CET. Segundo o órgão, a frota total de São Paulo é de 8,5 milhões de veículos. Destes, apenas 5,5% receberam 60,3% das 6,5 milhões de multas aplicadas neste ano. Fazendo o cálculo são 467.500 veículos que receberam 3.919.000 de multas — uma média de 8,4 multas por veículo. O restante das 2.581.000 de infrações foram cometidas por 19,37% da frota — ou 1.646.450 veículos, em uma média de 1,56 multas por veículo. Uma estatística semelhante foi usada pela gestão anterior como resposta às acusações de “indústria da multa”.
Acontece que nessa conta percentual, a Secretaria considerou o total da frota registrada na cidade, que inclui, além dos veículos que circulam rotineiramente, todos os veículos em pátios, todos os veículos baixados ainda constantes no sistema, todos os veículos de coleção, todos os veículos abandonados, e veículos que não circulam diariamente, como 215 veículos fabricados em 1901 e todos os veículos com mais de 40 ou 50 anos, por exemplo. No fim das contas a CET estima que a frota circulante da cidade de São Paulo é de 3,8 milhões de veículos.
Assim, 467.500 veículos correspondem a 5,5% da frota total, mas 12,3% da frota circulante. As outras 40% das multas são cometidas por 19,37% da frota total, mas estes 1.646.450 carros correspondem a 43,3% da frota circulante. Isso significa que 2.114.040 veículos dos 3.800.000 que compõem a frota circulante cometem 100% das infrações — ou 55,6% da frota circulante de São Paulo. Ou seja: mais da metade dos veículos que circulam por São Paulo têm ao menos uma multa e não apenas 25% como diz a Secretaria Municipal de Mobilidade e Transportes.
Veículos em pátios entram na conta divulgada pela Secretaria, distorcendo os números
Os dados disponibilizados pela Secretaria em seu site mobilidadesegura.prefeitura.sp.gov.br mostram que o número de infrações duplicou após as reduções de limites de velocidade. A infração mais cometida ainda é exceder o limite de velocidade em até 20%. Nos primeiros sete meses de 2017 foram 2.966.259 autuações deste tipo, menor que o mesmo período dos outros anos. Em 2014, antes das reduções dos limites de velocidade, o ano inteiro registrou 2.827.494 infrações deste tipo. Em 2015, quando os limites começaram a ser reduzidos, o número saltou para 4.544.607 infrações e chegou a 5.876.983 infrações.
A explicação para o aumento das infrações pode estar na própria natureza da infração: exceder os atuais limites de velocidade da via em até 20% significa, basicamente, trafegar nas velocidades antes consideradas dentro do limite legal. Nas vias de 40 km/h, a infração de até 20% é anotada para quem circula a 48 km/h — velocidade abaixo do limite antigo de 50 km/h. Onde o limite caiu de 60 para 50 km/h, a maioria das infrações ocorre entre 58 e 60 km/h, a mesma velocidade que antes era considerada segura. Onde o limite caiu de 70 km/h para 60 km/h, a infração acontece entre 68 e 72 km/h — ainda dentro da margem de erro legal (que é 7 km/h para limites abaixo de 100 km/h). Nas vias com redução de 90 para 70 km/h, as infrações aconteceram entre 77 e 84 km/h — abaixo do limite anterior. Tudo isso pode indicar que os condutores estão circulando nas mesmas velocidades que circulavam antes, mas que agora são ilegais. O comportamento é o mesmo, somente os limites mudaram.
E isso nos leva a perguntar: um condutor que mantém o mesmo comportamento que era considerado seguro há 3 anos é realmente um risco para a segurança no trânsito de hoje? Não seria o caso de rever os limites baixados ou adotar elementos que façam os condutores perceberem naturalmente a necessidade de redução de velocidade? Não estamos mais falando de uma minoria, mas de mais da metade dos condutores.
Na prática, estamos multando condutores que estão atentos a tudo o que acontece ao seu redor. Gente que desvia a atenção do velocímetro por alguns segundos para dirigir com prudência e acaba excedendo o limite de velocidade em menos de 10 km/h. E o poder público está dizendo que estas pessoas são um risco potencial. Como resultado, as pessoas se concentram mais na velocidade que em todo o entorno. O que será mais perigoso?
Além disso, se o limite anterior era perigoso, a segurança desejada não está sendo alcançada, pois os condutores continuam a praticar velocidades consideradas perigosas. E isso vai de encontro à afirmação de que limites de velocidade mais baixos estão salvando vidas: se cada vez mais condutores estão infringindo os limites seguros, como o número de mortes caiu 45,6%, saindo de 1.496 em 2007 para 813 em 2016?
Acidentes em queda há dez anos
E isso também depõe contra os radares, deixando claro que eles não coíbem o “excesso” de velocidade — não por imprudência dos motoristas, mas provavelmente por falhas no planejamento do trânsito. Se o interesse da prefeitura é salvar vidas, é preciso, usar elementos que façam os condutores perceberem a necessidade de praticar uma velocidade mais baixa, e não deixar que continuem em alta velocidade para puni-los dali a 30 dias com um radar convencional ou com a eventual legalização da medição de velocidade média.
Para salvar vidas no trânsito é preciso agir diretamente sobre as causas. E para isso é preciso conhecê-las. O problema é que o último estudo abrangente sobre acidentes fatais feito em São Paulo foi publicado em 2011. Depois disso houve um estudo pontual, por amostragem de dois meses, publicado em 2016 pela CET, que concluiu o seguinte:
Após a análise da documentação apresentada, identificamos alguns possíveis fatores contribuintes que se repetem em vários dos acidentes fatais.
Como exemplo, temos o uso de álcool e drogas entre condutores e pedestres, prática de velocidades inadequadas, dificuldade de visibilidade por chuva ou por falta de luminosidade natural ou iluminação pública, além de registros de alguma deficiência de sinalização ou ainda sem defensas ou barreiras protetoras.
Note que a prática de velocidades inadequadas se mistura a quatro outros fatores, mas as campanhas e o senso comum têm foco apenas nos radares — cuja arrecadação pode ser utilizada como garantia de debêntures e engorda o orçamento público. Não temos motivos para duvidar das intenções do poder público?
Ciclovia apagada e não recuperada. Foto: Vá de Bike
Coibir o uso de álcool exige equipes de agentes, ações constantes que custam dinheiro e não têm retorno garantido. Iluminação pública, sinalização e estrutura viária também custa caro. É muito mais conveniente para qualquer prefeitura adotar um slogan que relaciona radares ao salvamento de vidas, reduzir os limites de velocidade para abaixo das velocidades operacionais das vias — a ponto de serem desconfortáveis ou pouco naturais — e intensificar a fiscalização eletrônica para fisgar quem dirigir como sempre dirigiu sem causar acidentes e, por acaso, exceder os novos limites. Basta usar o argumento de salvar vidas. Quem seria contra um objetivo tão nobre?