Na primeira parte do especial Lubrificantes falamos sobre os fundamentos da lubrificação de motores, os significados dos números e siglas nas embalagens, e as propriedades físicas principais do óleo que usamos em nossos carros. Nesta parte 2 entraremos um pouco mais a fundo nas características físicas e nas particularidades de formulação dos lubrificantes, aspectos que ajudam a entender porque óleos aparentemente similares podem ter performances muito diferentes, e em algumas situações até causar danos ao motor.
Como na primeira parte, a fim de permitir uma leitura (minimamente) agradável, termos técnicos serão evitados sempre que for possível) e alguns números arredondados. O objetivo é apresentar conceitos e princípios de forma simples e útil, mas é importante deixar claro, novamente, que o assunto é complexo e polêmico. Embora as informações a seguir sejam baseadas em dados técnicos, não há aqui a ambição de que sejam inquestionáveis ou mesmo definitivas, e caso tenha interesse em entender aspectos mais científicos ou números exatos, tentarei ajudar pelos comentários.
Se você não leu a primeira parte, talvez seja interessante clicar no link do início do post, e se familiarizar com alguns termos e conceitos. É importante reforçar novamente que nesta série estamos tratando especificamente da lubrificação de motores a combustão automotivos, cujas características envolvem particularidades e complexidades em relação a outras aplicações.
Altas temperaturas, alta pressão, enxofre, explosões, fogo… Um motor a combustão interna é praticamente a descrição do inferno. Como se não bastasse, o óleo ainda tem que lidar com fuligem, água, gasolina ruim, etanol, ácidos, aditivos, e as possíveis reações de cada um entre si, e a deles com metais, como ferro, alumínio e cobre usados em diversos componentes do motor. Considerando esse cenário, fica fácil de entender que não é impossível que alguma coisa dê errado, e daí a importância de aplicar o lubrificante correto, da forma correta, o tempo todo no seu carro.
Mas vamos começar pelo princípio: de maneira geral, dois regimes, denominados como Hidrodinâmica e Marginal, diferenciam o tipo de lubrificação de uma máquina. Testes e análises demonstram que quase sempre há alguma combinação entre as duas ocorrendo simultaneamente, mas na Hidrodinâmica, que é o regime em que os lubrificantes trabalham normalmente em um motor automotivo, um fluxo contínuo de fluído separa as partes móveis reduzindo atrito. Sem esse fluxo a lubrificação se torna Marginal, dependendo totalmente da presença de um filme de óleo (e de sua espessura), para evitar contato entre as partes, o que em geral acaba não sendo plenamente eficaz.
Apesar da existência de outras variáveis, na lubrificação hidrodinâmica, por não haver contato entre as superfícies, o atrito existente é apenas o do próprio lubrificante, ou seja, quanto mais viscoso o óleo maior será o atrito. Desta forma, para obter máxima eficiência decorrente do menor atrito possível, o lubrificante menos viscoso deveria ser utilizado em um motor. Entretanto, como vimos na primeira parte, viscosidade varia conforme a temperatura, diluição e outros fatores, e quanto menor a viscosidade, menortambém será a distância entre as superfícies, o que no limite pode significar menor proteção…
Em outras palavras, manter as superfícies separadas de forma a minimizar atrito é função básica do óleo, mas há um equilíbrio delicado entre a proteção e a eficiência que um lubrificante deve obter a fim de entregar os melhores resultados. Não custa repetir: são muitas as variáveis, e o lubrificante em um motor automotivo atua em condições extremas, tendo que atender diversas necessidades, às vezes conflitantes, paralelamente.
- Atuar como um fluído resfriador, removendo calor produzido pela fricção e outras fontes
- Manter-se estável de forma a garantir um comportamento regular durante o período de uso
- Proteger as superfícies contra elementos agressivos formados pelo funcionamento do motor.
- Dispersar e limpar resíduos formados durante o funcionamento.
A coisa é bem mais complexa do que o comercial de TV da sua marca preferida dá a entender. Os aspectos relacionados à viscosidade e suas variações abordados na parte 1, são o primeiro passo para entender as necessidades de um motor automotivo, e ajudam a explicar a tendência cada vez maior de desenvolvimento de produtos multiviscosos e sintéticos. Entretanto há outras propriedades importantes a serem consideradas, e abaixo apresentamos uma descrição simplificada das mais relevantes.
Obs – Para auxiliar na análise e escolha de um lubrificante, termos em inglês foram mantidos, destacando propriedades e componentes ativos que podem ser verificados nas fichas técnicas dos produtos.
- Cloud point – Trata-se da temperatura em que aparecem os primeiros sinais de formação de cristais, que reduzem drasticamente a capacidade de lubrificação do fluído. Quanto mais baixa a temperatura de cloud, maior será a capacidade do óleo de operar em baixas temperaturas.
- Pour point – Indica a menor temperatura em que o óleo ainda flui exclusivamente pela força da gravidade. Lubrificantes com viscosidade mais alta tendem a chegar ao pour-point em temperaturas mais altas, portanto seu uso será mais limitado nestas condições.
- Volatilidade – Indica a resistência do óleo à vaporização. Em regimes extremos a altas temperaturas, um óleo com menor volatilidade é necessário para evitar ou reduzir perdas durante o funcionamento do motor.
- Flash point – Indica a menor temperatura em que ocorre ignição espontânea do vapor do óleo durante o funcionamento do motor. Quanto maior esta temperatura, mais seguro será o lubrificante para operação em condições sujeitas a temperaturas mais altas.
- Características de espuma – Aponta a resistência à formação de espuma e sua persistência. A espuma deteriora a capacidade de lubrificação e resfriamento, portanto quanto menor a formação, mais eficiente será o óleo.
- TBN – Ou Total Base Number, indica a reserva de capacidade do óleo em neutralizar a ação de ácidos, importante para manter as propriedades a medida em que oxidação e contaminação ocorrem durante a combustão.
- Facilidade de partida do motor – Por ser influenciada diretamente pela velocidade do virabrequim, a viscosidade tem grande importância na facilidade de partida. De maneira geral, a viscosidade controla a eficiência em termos de fricção, de temperatura e fluxo, portanto é fundamental que as características de viscosidade do óleo sejam adequadas as condições de operação, como por exemplo, frequência de partidas, e temperatura ambiente.
- Tendência à carbonização – Motores de ciclo Otto que trabalham com taxas de compressão mais altas, são muito sensíveis a carbonização, cuja intensidade e composição podem causar desde ruídos até a queima deficiente do combustível, com aumento da temperatura no motor, cujas consequências na performance e durabilidade podem ser sérias. Testes indicam que óleos com base mais viscosa, em geral de origem mineral, tem maior propensão na formação de depósitos e carbonização.
- Resistência à oxidação – Durante o funcionamento do motor, o lubrificante é exposto a condições de oxidação intensa. Altas temperaturas de funcionamento, presença de oxigênio e composição do combustível (vide Etanol Hidratado e Gasolina com Etanol Anidro), são alguns dos fatores que contribuem para aumento da oxidação do lubrificante. É fator crítico para performance que o óleo utilizado no motor tenha resistência suficiente a oxidação, para evitar a formação de depósitos e carbonização. Essa resistência depende principalmente da qualidade do óleo base e/ou da presença de aditivos anti-oxidantes, em geral associados a presença de aminas e fenóis.
- Detergência e Dispersão – A qualidade da combustão (combustível, velas, ignição, temperatura do óleo, sistema de refrigeração, vedação dos anéis…) influencia na formação dos depósitos que contaminam o lubrificante. Os aditivos detergentes removem os depósitos das superfícies, evitando desgastes, e os dispersantes mantêm estes depósitos suspensos para que sejam removidos no momento da troca do óleo. Importante lembrar que as propriedades físicas de um óleo com base melhor refinada ajudam a evitar a reação em cadeia que promove a formação de depósitos, contaminação e desgastes.
- Redução de desgastes – O desgaste de peças e superfícies é efeito de três mecanismos, Adesão (contato metal x metal), Abrasão e Corrosão:
– Desgaste por Adesão: É o desgaste causado pelo contato entre superfícies/partes móveis, em geral associado à quebra do filme de óleo, seja por interrupção do fluxo (falta de óleo ou perda de pressão), irregularidades nas superfícies, ou ainda perda das propriedades do lubrificante (contaminação, perda de aditivos).
É comum que este desgaste ocorra após aumentos de potência no motor, sem as modificações necessárias na lubrificação e/ou componentes. Um suprimento com fluxo adequado de óleo é o primeiro passo para evitar o desgaste por Adesão, o que implica em adequações especiais do sistema (bomba, passagens, filtro, cárter…) em casos de aumento de potência.
Novamente, a qualidade do óleo base contribui para a proteção, e um lubrificante sintético, em geral, proporcionará mais proteção que um mineral. Muitos óleos, principalmente minerais, incluem aditivos na sua composição como forma de compensar a qualidade do óleo base ou o tipo de refino, mas tenha em mente que quase sempre há contrapartidas (por exemplo, um aditivo a base de Aril, derivado de Fenil ou Benzil, tem ótimas estabilidade térmica, mas baixa estabilidade hidrolítica).
– Desgaste por Abrasão: É causado por partículas sólidas que quando maiores que o filme de óleo (e mais duras que a superfície), causam erosão ao entrar em contato com superfícies, e alimentando um ciclo vicioso de contaminação e desgaste. Pode estar associado a erros de projeto, como o uso de material com dureza inferior a ideal, mas a prevenção está associada ao uso de lubrificantes sem partículas abrasivas. É importante salientar que a capacidade do lubrificante de promover “flush”, removendo as partículas das áreas de conato é proporcional à viscosidade, ou seja, quanto mais viscoso o óleo, melhor será a proteção contra o desgaste por abrasão.
– Desgaste por Corrosão: Este tipo de desgaste é geralmente causado pela oxidação do próprio lubrificante, que acaba sendo contaminado pelo produto da queima do combustível (potencializado pela presença de enxofre na gasolina). A oxidação promove um ataque corrosivo, que costuma ser a principal forma de desgaste em motores a combustão interna.
Observação – A quantidade de enxofre na gasolina foi recentemente reduzida pela ANP em todo o país. Mas ainda assim, somente a Podium está completamente livre de enxofre.
Quanto mais alta a qualidade do lubrificante (melhor refino / origem sintética), maior será sua capacidade de minimizar os efeitos corrosivos. Muitos lubrificantes, principalmente minerais e semi-sintéticos, incluem aditivos anti-oxidantes em suas fórmulas com o objetivo de adiar a degradação das propriedades do fluído, entretanto, como vimos na primeira parte, estes aditivos são consumidos durante o uso e seu efeito é gradualmente reduzido.
O famoso ZDDP é o um anti-oxidante bastante popular, e há testes em laboratório que indicam que quando usado em concentrações entre 800 e 1200ppm, podem promover reduções significativas na oxidação. Mas o ZDDP é também altamente prejudicial ao catalisador, e quando usado em concentrações muito altas costuma estar associado a desgastes excessivos de componentes do motor.
Embora os conceitos, características e propriedades descritas aqui estejam simplificados, se você chegou até este ponto, parabéns! Você já deve saber mais sobre lubrificantes que a maioria da população, talvez até mesmo que alguns mecânicos! Mas não se empolgue muito, porque apesar de todos os testes e análises, nem mesmo fabricantes e montadoras tem domínio absoluto da arte/ciência da lubrificação de motores a combustão, tanto que são comuns histórias sobre montadoras errando nas recomendações de especificações e períodos de troca de seus carros, com consequências trágicas.
Como mencionado no início do post, naturalmente ocorrem reações químicas entre os metais, aditivos, plásticos e borrachas presentes no motor, e embora elas sejam quase sempre previsíveis, basta acrescentar algum aditivo, ou mesmo completar com óleo de outra especificação, para desencadear uma série de possíveis reações não previstas originalmente… A própria formulação da gasolina, com mais ou menos enxofre, etanol ou solventes (tipicamente usado em adulterações), aumenta as chances de reações adversas.
A formação de borra é provavelmente o efeito mais conhecido, e possivelmente o mais danoso, entre as reações imprevistas envolvendo lubrificantes. O problema não é incomum, afeta motores relativamente novos e modernos, e por isso mesmo é também um tema bastante controverso, com inúmeras teorias sobre suas causas, variando conforme a fonte, agravado pelo fato de que raramente são realizadas análises mais profundas.
Uma explicação válida é que durante o funcionamento normal do motor, eventualmente vai ocorrer oxidação do lubrificante, potencializada por operação em altas temperaturas e condições de uso muito severas. Nestas situações pode ocorrer a quebra de moléculas do óleo, levando a reações que formam uma mistura extremamente viscosa de resíduos sólidos, líquidos e gases, contendo desde partículas metálicas até combustível, água e fluído de radiador.
Também é certo é que algumas combinações envolvendo o tipo de motor, formulações do lubrificante, e condições de uso, podem levar problemas. Os mais importantes são:
– Óleo inadequado: As tecnologias e características que tornam motores modernos mais eficientes (turbos, rotações mais altas, maiores taxa de compressão, bicombustíveis, etc), também exigem mais dos lubrificantes. Em um motor turbo, por exemplo, o lubrificante será exposto a temperaturas mais altas, e os polímeros (usados em modificadores de performance, em geral em óleos base Mineral ) serão consumidos gradual mente, reduzindo a propriedade de multiviscosidade, reduzindo a troca térmica, aumentando ainda mais a temperatura e produzindo depósitos que podem levar a entupimentos, menor circulação/fluxo do lubrificante, formação de borra e finalmente a quebra do motor.
– Período de Troca: Este é provavelmente o fator isolado que mais causa problemas. Por um lado existe o mito de que óleos são classificados pela quilometragem, “óleo para 10 mil”, ou “óleo para 5mil”, etc. Isso simplesmente não existe. Condições diferentes e motores diferentes, exigem períodos de troca diferentes. É por isso que o período de troca é exclusivamente determinando pelo fabricante do carro, e quase sempre os Manuais indicam períodos específicos para usos específicos (como congestionamentos, estradas de terra etc).
Por outro lado, os períodos de troca são controlados e recomendados em quilômetros, quando o ideal seria em horas de uso. Um motor com 5.000 km em congestionamentos terá operado por muito mais horas que um que tenha rodado 5.000 km apenas em estradas, e quanto maior o tempo de uso, maior será a oxidação e contaminação, e consequentemente a possibilidade de problemas, inclusive a formação de borra. Na dúvida, nunca exceda o período de troca recomendado, mesmo usando o mais caro dos lubrificantes disponíveis.
– Misturas e aditivos: Lubrificantes nem sempre são compatíveis com outros lubrificantes, e misturar óleo mineral com sintético não necessariamente melhora o óleo mineral (mas certamente piora o sintético). Há uma lógica nos argumentos a favor de aditivos independentes, mas é importante dizer que eles tendem a ser desnecessários, e às vezes prejudiciais, em motores em boas condições e uso normal, trabalhando com o óleo recomendado.
É verdade que adicionar um óleo/aditivo mais viscoso, costuma reduzir ruídos e temporariamente amenizar sintomas típicos de motores cansados, mas também é verdade que poderá haver menor fluxo do óleo, sobrecarga da bomba, menor capacidade de troca de calor, e maior atrito.
– Combustível adulterado: Durante a queima do combustível são gerados vapores e resíduos, que ainda que em pequena quantidade, entram em contato com o lubrificante. Uma vez contaminado, o lubrificante perde propriedades, e uma nova sequencia de problemas, desde alterações na viscosidade, até aumento da temperatura, podem levar a uma redução da vida útil do óleo, e ao surgimento de borra.
– Formulação de combustíveis: Idealmente, diferentes combustíveis deveriam ser combinados com lubrificantes específicos. Um motor que use apenas etanol hidratado, em geral, precisa de um óleo com menos aditivos detergentes e dispersantes, e mais redutores de atrito. Por operar em temperaturas mais baixas, o lubrificante ideal neste caso, terá índice de viscosidade mais baixo para obter eficiência ideal em temperatura mais baixa.
Na prática isso pode ser complicado, ainda mais em motores flex, usados com alternância de combustíveis, em que alguns compromissos são inevitáveis. Na dúvida, o melhor é seguir a recomendação do fabricante, usando óleos aprovados (informação disponível nas embalagens).
– Trocar o óleo sem trocar filtro: Um bom lubrificante será capaz de evitar que resíduos fiquem impregnados no motor e seus componentes, mantendo estes resíduos suspensos para que sejam eliminados facilmente na próxima troca. Entretanto, até que seja realizada a troca, o lubrificante será continuamente contaminado no processo, e quando o filtro não é trocado, boa parte desta contaminação será imediatamente transferida para o novo óleo, deteriorando rapidamente suas propriedades e reduzindo drasticamente o período de troca.
– Manutenção do sistema de lubrificação: Entupimento de passagens e mangueiras, assim como o mau funcionamento de válvulas e respiros, pode levar a contaminações do lubrificante, cujos efeitos já foram mencionados. Com o tempo e uso, é normal que sujeira e resíduos se acumulem, reduzindo a eficiência do sistema, nestes casos o melhor a fazer é a manutenção e troca dos elementos com problemas.
A esta altura é importante lembrar que, embora sejam muitas as informações abordadas, elas podem não ser suficientes para que alguém que não conhece profundamente o projeto do motor consiga definir com segurança um lubrificante diferente da recomendação do fabricante. Mas este conhecimento pode evitar erros e apoiar o processo de escolha de um lubrificante, sem cair em armadilhas e mitos – ou pelo menos alimentar discussões animadas com seus amigos!
E com isso concluímos o segundo post do Especial Lubrificantes. No terceiro post da série vamos falar de lubrificantes para uso em pista, como trackdays e hotlaps.
Até lá.