E aqui estamos nós, mais uma vez dando sequência a nossa série sobre os diversos estilos e culturas dentro do universo automotivo. E quando falamos em “universo”, não estamos brincando — há espaço para diferentes escolas de personalização e modificação. E uma das mais ricas é, sem dúvida, o JDM — cuja complexidade já começa pela definição.
A rigor, JDM é a sigla para Japanese Domestic Market, ou “Mercado Doméstico Japonês” — os produtos feitos no Japão para serem comercializados dentro do Japão. E isto, obviamente, inclui os carros.
Só que esta é a definição literal de JDM, aquela que você vai encontrar na Wikipedia. A definição cultural no mundo automotivo — a que nos interessa neste guia — tem muito mais a ver com um estilo de personalização inspirado nos carros japoneses e adotado no mundo todo, com várias vertentes. É deles que vamos falar hoje.
Raízes nas pistas
A exemplo do German/Eurolook e dos muscle cars, a história do JDM está intimamente ligado ao automobilismo japonês. Contudo, diferentemente do que acontece na Europa e nos EUA, não há muitos registros sobre a história automobilística japonesa — ao menos, não no ocidente. O que significa que a maior barreira para entendermos as raízes do estilo japonês de personalização é o idioma. Contudo, isto não nos impede de cavar a fundo e descobrir de onde vem a cultura de rua do Japão.
E ela vem, principalmente, do Campeonato Japonês de Turismo, o JTCC. Nos anos 1960 e 1970 as corridas eram dominadas por modelos como o Nissan Skyline C10 e o Mazda RX-3 (este, com motor rotativo Wankel) e, na virada da década de 1980, pelos Skyline Silhouette Formula, com kits aerodinâmicos exagerados que nos lembram uma mistura do Grupo B com os carros que competem no Pikes Peak. Na filmagem abaixo, você pode vê-los em ação no mítico, minúsculo e desafiador autódromo de Tsukuba:
https://www.youtube.com/watch?v=2QjayS2–UY
A década de 1980 trouxe as competições de turismo que seguiam o regulamento do Grupo A da FIA — e a Honda, com o Civic de terceira (1983-1987) e quarta gerações (1988-1991), dominava a categoria. Já na década de 1990, o Skyline GT-R voltou a dominar, desta vez com as gerações R32 e R33 (você pode ler mais a respeito aqui).
Na verdade, logo o grid passou a ser todo ocupado pelo esportivo da Nissan (agora você sabe de onde veio todo o expertise e o mito) e, sendo assim, quando a marca decidiu abandonar a categoria por problemas financeiros e com a Honda mais focada em seu programa de Fórmula 1, o JTCC teve sua última temporada, disputada em 1998.
Cultura e visual das ruas
Ao longo destas quatro décadas o automobilismo sempre teve muita influência sobre o modo como os entusiastas japoneses encaravam seus carros — e as próprias fabricantes colaboravam para isto. Tome, por exemplo, o primeiro GT-R de todos — o C10, de 1968, cujo seis-em-linha de dois litros e 170 cv era uma herança direta do motor usado nas competições.
Ou os Civic que corriam nas ruas de Osaka na década de 1980 e 1990, os chamados Kanjozoku, que eram totalmente inspirados nos carros da equipe de fábrica da Honda no Grupo A.
Não há uma regra específica, mas geralmente o visual clássico de um JDM inclui fender mirrors (os espelhos retrovisores nos para-lamas), molduras nos arcos de roda (influência direta dos carros esportivos da década de 1970, como o próprio GT-R de primeira geração, o lendário Hakosuka, que tinha neles um dos maiores diferenciais ante às versões mais comportadas), pintura impecável em tons sólidos e rodas de duas ou três peças com talas largas — estas, talvez, influenciadas pelos carros europeus, como os BMW e Porsche que competiam contra os japoneses em seu próprio território.
https://www.youtube.com/watch?v=_xCGMsc1ORQ
O Japão também tem uma imprensa especializada muito forte, representada principalmente pela lendária revista Best Motoring e suas várias edições especiais. Além da edição impressa, que trazia matérias sobre preparação, carros famosos e dicas de pilotagem, também foram produzidos diversos vídeos de comparativos entre carros e pilotos e videoaulas de técnicas de pilotagem, como a série Drift Bible protagonizada pelo piloto de drift Keiichi Tsuchiya.
Tudo isto conta e, assim, as vertentes não param de crescer — o que também é um reflexo do imparável crescimento econômico japonês nos últimos 20 anos, pois mais carros novos foram lançados e, consequentemente, novas maneiras e estilos de modificação.
Nos carros mais antigos, fender mirrors não são obrigatórios, mas muito presentes. O olhar destreinado pode até confundi-los com os carros modificados europeus, mas no JDM é possível notar que há um pouco mais de discrição e preocupação em manter certos aspectos originais do carro, como frisos, para-choques, pinturas e outros detalhes — vemos muitos german/euro look com carroceria alisada (sem maçanetas, emblemas ou frisos) e cores anacrônicas, trazidas de outras décadas.
Para-lamas alargados também são muito populares, assim como para-choques dianteiros complementados com spoilers e lips (influência direta do Hakosuka, abaixo). Essencial é o ajuste esportivo na suspensão — quase sempre feito com componentes aftermarket de primeira linha e um cuidadoso estudo da geometria da suspensão (rebaixamento e cambagem funcionais), algo possível graças ao fato de o Japão ser um verdadeiro celeiro de fabricantes de autopeças e por diversos mecânicos de oficinas renomadas serem ex-pilotos. Indo para a pista ou não, funcionalidade é importante para eles — assim como o estilo, garantido por rodas como as Work Equip 01, 02 e 03.
Ah, um detalhe: não precisa ser, necessariamente, um carro japonês clássico — modelos mais recentes também entram na brincadeira, embora seus donos geralmente prefiram algo com apelo mais racer. Na verdade, como todo estilo de personalização, o JDM vem em vários “sabores” — alguns preferem performance, outros curtem mais o visual. A regra de ouro da qualidade dos componentes permanece — com especial ênfase nas rodas, mas também incorpora bancos concha, kit turbo, volante e cintos de competição.
Há até mesmo aqueles que consideram que o visual é só um efeito colateral das modificações de alto desempenho, como os já citados Kanjozoku ou os adeptos do Touge — passeios em alta velocidade, quase sempre noturnos (e ilegais) pelas sinuosas estradas montanhosas do Japão. São caras mais discretos, que modificam seus carros com ênfase na dirigibilidade (mais do que na potência, até), com suspensão preparada e alterações estéticas discretas para se diferenciarem entre os conhecidos, mas não ficarem “marcados” durante o dia.
Depois, é impossível não citar os carros de drift — ou dorifuto, segundo a pronúncia japonesa. O drift começou a se popularizar, acredite se quiser, no Campeonato Japonês de Turismo. Pilotos como Kunimitsu Takahashi e seu discípulo Keiichi Tsuchiya começaram a usar as derrapagens controladas para ganhar tempo nas curvas nas décadas de 1970 e 1980 — e proporcionavam um belo espetáculo no processo.
A prática do drift evoluiu com o passar dos anos e não demorou muito para que surgissem campeonatos inteiramente dedicados à modalidade. Uma das contribuições da categoria ao estilo JDM foi a adoção dos sticker bombs — sim, como no eurolook —, que surgiu quando os pilotos usavam dezenas de adesivos para cobrir um amassado na carroceria ou até mesmo emendar um para-choque quebrado em um toque com o muro. No fim das contas tudo se interliga, não é mesmo?
Do outro lado da moeda temos o estilo VIP, que tem uma história curiosa: ele surgiu quando os pilotos de rua do Japão perceberam que os hatchbacks que normalmente usavam estavam sendo muito vigiados pela polícia e decidiram rodar pela cidade em sedãs grandes e potentes, de tração traseira e visual imponente. Só que não demorou para que eles sentissem a necessidade de modificar também estes carros – e o status acabou atraindo outros tipos de adeptos, criando uma vertente bem menos funcional e mais focada no stance.
Rodas de grande diâmetro, tala larga, calçadas com pneus de perfil baixo e montes, montanhas de cambagem negativa são as marcas do estilo VIP. Seus representantes sempre mantém os carros imaculadamente limpos, contrastando com a rusticidade funcional do JDM de raiz.
Tendo emprestado o termo em inglês Very Important Person para denominar o estilo, os japoneses pronunciam bippu. Rodas enormes, de tala larga e acabamento cromado são as favoritas — como a Work Euroline Series abaixo. Detalhe: com o passar dos anos e seus desdobramentos, alguns admiradores do estilo VIP acabaram o adotando também em compactos e até kei cars!
Agora, você deve ver com certa frequência, nas ruas da sua cidade, carros modificados com influência do german/euro look ou dos muscle cars. Com o JDM não é diferente.
Na verdade, ao buscar deixá-los parecidos com os carros das ruas da terra do sol nascente, os adeptos do estilo sem perceber acabam criando vertentes locais. Deste modo surgiu a chamada Import Scene nos EUA, por exemplo — um Honda Civic do mercado americano (USDM), em tese, pode ter só as rodas trocadas por peças de origem japonesa, mas alguns chegam a trocar faróis, lanternas e até painéis da carroceria para deixar seus carros iguais aos vendidos no Japão. Em outros países, ocorre algo semelhante — mesmo no Brasil, que recentemente vem apresentando uma onda de carros personalizados e preparados ao estilo JDM.
Mas neste processo algumas diferenças começaram a surgir: os americanos, por exemplo, gostam de conservar as luzes de direção âmbar (exigidas por lei nos carros zero-km), cores metálicas e perolizadas aparecem com muito mais frequência e não raro alguns elementos da cena tuning de Los Angeles são incorporados — misturando estilos de rodas (geralmente maiores e mais brilhantes), tipos de adesivo e de body kits.
No Brasil, os entusiastas do estilo procuram maior proximidade com o que se encontra no Japão, porém a maior dificuldade em encontrar peças autênticas (as importações ficam mais restritivas a cada dia) faz com que alguns recorram à criatividade e à habilidade em fazer adaptações — e às vezes o resultado surpreende, como no Impreza abaixo (foto por Ed Cunha).
Além da legislação e da disponibilidade de componentes, há também a questão cultural: como os europeus, os japoneses curtem rodas de menor diâmetro (13 ou 14 polegadas, no máximo 15) e doses generosas de borracha, enquanto os americanos e brasileiros preferem pneus de perfil mais baixo e rodas maiores, acima de 17 polegadas.
Agora, como sempre, queremos ouvir vocês: qual é sua vertente JDM favorita, e em qual carro? Se possível, coloque uma foto para nos mostrar sua ideia!
[ Fotos: AutoGraphic, SB Captures, Import Tuner, Stayclean, Work Wheels, Kevin Pratt ]