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Técnica

Explicando o câmbio PV dos Volkswagen GTS

Se você assistiu a meia-dúzia de episódios do Overhaulin’ ou qualquer outro programa de customização/restauração/construção de carros, percebeu que o motor Chevrolet 350 de bloco pequeno, o famoso “small block Chevy”, é uma carta-coringa no cenário de preparação dos EUA. câmbio pv da

O motor é instalado em qualquer modelo Chevrolet, em hot rods Ford (Eliminator?), em carros de corrida, dragsters clássicos, tanques de avião, motos, DeLoreans, cortadores de grama e onde mais for possível. E ele não se tornou popular porque os americanos gostam mais da Chevrolet do que da Ford ou da Chrysler.

Foi por que antes de todo mundo colocar ele em qualquer coisa, a General Motors fez isso. E ela fez isso porque ela foi convencida a fazer isso por um cara chamado Zora Arkus-Duntov. Sim, você conhece ele: é o cara que salvou o Corvette de ser uma caricatura mal-feita dos esportivos europeus dos anos 1950.

Depois de se decepcionar ao ver um carro tão interessante quanto o Corvette embalado por um seis-em-linha do carro do vovô, Zora sentou à sua mesa, pegou sua caneta e, usando a arte perdida de escrever uma boa carta, convenceu a Chevrolet de que ela precisava de um motor que fosse fácil de se trabalhar para as pistas e que tivesse abundância de peças de reposição e componentes de performance.

O engenheiro hot rodder: a história da carta que criou o Chevrolet small block

Alguém na Chevrolet percebeu que Arkus-Duntov tinha razão. E dessa carta nasceu o projeto que daria origem ao motor V8 de bloco pequeno, que foi parar no Corvette e do Corvette se espalhou por todas as marcas da Chevrolet. O resto é história, como se diz.

Já faz um bom tempo que os entusiastas brasileiros chegamos à conclusão que o motor AP da Volkswagen é o “small block Chevy” brasileiro. Ele é usado em qualquer modelo da Volkswagen, alguns Ford, em carros de corrida, de arrancada, em Lamborghini e Landau, em veículos artesanais onde mais for possível instalar a versão brasileira do EA827.

Também como o V8 de bloco pequeno da Chevrolet, o motor AP (o E827 em geral) foi usado em praticamente tudo o que a Volkswagen lançou por aqui depois do Passat. O Gol, a Saveiro, o Voyage, a Parati, a Kombi para exportação, o Santana, o Pointer, o Apollo, o Logus, além da turma do lado Ford da Autolatina — Escort, Pampa, Del Rey, Belina, Versailles, Verona e Royale.

Isso sem contar os Golf, Polo Classic, Passat importado e os espanhóis Cordoba e Ibiza e os Audi 80, A3 e A4, que foram equipados com variações do EA827 que tinham alguma compatibilidade com o AP em maior ou menor grau.

Esse uso amplo e quase irrestrito do EA827 e seus derivados ao longo de quase 40 anos no Brasil —  do Passat  em 1974 à Parati em 2012 — foi o grande responsável pela popularidade do motor AP nas preparações e adaptações brasileiras. Nos anos 1990, por exemplo, se você não quisesse instalar o 2.5 do Opala no Chevette, a receita com o motor AP, uma heresia para muita gente, era a solução alternativa para conseguir um rendimento maior que o motor OHC original do Chevrolet.

E seu trunfo não estava apenas na confiabilidade e versatilidade do motor, que tem paredes grossas no bloco e uma boa margem para sobremedidas, que tem bielas robustas e tem a relação r/l ideal na versão 1,6 por exemplo. Ele também estava na quantidade de peças e componentes disponíveis. Como foi extremamente popular no Brasil, havia todo tipo de componente específico para ele. Isso sem contar as variações e componentes que a própria Volkswagen fazia para usá-lo no comportado Passat LS, na trabalhadora Saveiro, no confortável Santana e no esportivo Gol GTS.

Câmbio PV

Comandos de válvulas modificam a curva de torque e potência de acordo com a aplicação. Assim como coletores de admissão e escape. Os cabeçotes diferentes dão até outra personalidade ao motor. Diferentes carburadores idem. Mas isso é só parte do processo.

A outra parte era o câmbio, componente fundamental para determinar o desempenho do carro. É por isso que o Santana 1.8 usa um câmbio diferente do Gol GTS. Ele não precisava ter uma marcha em cima da outra. E por ser um carro familiar para a estrada, ele precisava girar relativamente baixo em velocidade constante de estrada.

 

O câmbio PV vs. os outros

Se você já se meteu com preparação de modelos Volkswagen, já topou com o famoso câmbio PV. É ele que identifica o câmbio de escalonamento esportivo, marchas mais próximas, quase um close ratio, usado no Gol GTS e no Passat GTS Pointer. Ele é o principal responsável pelo desempenho dos esportivos, não apenas em termos de números, mas também no envolvimento e experiência/sensações do motorista.

Veja só as relações da transmissão PV:

1ª – 3,45:1
2ª – 1,94:1 (1,51)
3ª – 1,29:1 (0,65)
4ª – 0,97:1 (0,32)
5ª – 0,80:1 (0,17)
Ré – 3,17:1
Diferencial: 4,11:1

Agora compare às relações da transmissão PS, usada no Santana e no Gol GT até 1986:

1ª – 3,45:1
2ª – 1,79:1 (1,66)
3ª – 1,13:1 (0,66)
4ª – 0,83:1 (0,3)
5ª – 0,68:1 (0,15)
Ré – 3,17:1
Diferencial: 4,11:1

Note que a primeira marcha e a marcha à ré são as únicas com a mesma relação — assim como o diferencial. As demais são todas mais longas no câmbio PS (se você não tem muita experiência, quanto menor o número, mais longa a relação — ex: 3,17:1 significa 3,17 voltas de uma engrenagem a cada 1 volta da outra com quem ela faz par, no caso, o eixo piloto do câmbio).

Outro item a ser analisado é o intervalo entre uma marcha e outra: note como a relação da segunda marcha do câmbio PV (1,94:1) é mais próxima da primeira marca (3,45:1) do que a relação de segunda marcha do câmbio PS (1,79:1) em relação à primeira dessa caixa (também 3,45:1). Isso significa que há uma queda maior de RPM na troca de marchas. É aí que está o “salto” dos esportivos ao passar a segunda, e depois a terceira, quarta e quinta. Embora estas sejam muito parecidas nas duas transmissões.

Na prática, isso significa que, levando a primeira marcha a 6.500 rpm nos dois câmbios, ao passar a segunda marcha, no Gol GTS (que tem o câmbio PV, lembre-se) a rotação irá cair para 3.655 rpm, enquanto no PS ela irá descer quase 300 rpm além, caindo para 3.372 rpm.

Essa queda menor de rotações se mantém constante por todas as marchas, veja:

Estas relações do câmbio PV são as mesmas usadas mais tarde pelo Gol GTi, que usa o câmbio PVB. Infelizmente não encontrei a razão da diferença, mas é provável que seja devido à capacidade de torque, que é maior no GTi do que no GTS. Um fato interessante é que o Santana 2.0 passou a usar as mesmas relações de marcha dos esportivos a partir de 1991, porém seu câmbio (código PVD) tinha diferencial mais longo, com relação 3,89:1, o que resultava em rotações mais baixas em velocidade de cruzeiro, em quinta marcha.

Havia ainda o câmbio PX, usado nos modelos 1.6 e também uma das opções para preparações turbo de rua, por ter um escalonamento intermediário. Nele as três primeiras marchas são as mesmas do PV, assim como diferencial e ré. A quarta e a quinta, porém, são mais longas que as do PV, mas ainda mais curtas que no PS, o que permite velocidades mais altas, sem ter uma relação demasiadamente longa.

Ao todo a Volkswagen usou ao menos seis transmissões diferentes de cinco marchas nos anos 1980 e 1990, o que também resulta em uma oferta razoavelmente variada de engrenagens para customização das relações — um exemplo é explicado no vídeo do Clubsport do Gol 1.0 de 7.000 rpm (clique para assistir).

Essas possibilidades todas que se tem com o motor EA827 da Volkswagen e seus derivados é exatamente o que foi vislumbrado por Zora Arkus-Duntov em sua carta ao alto escalão da GM lá nos anos 1950. Lembre-se disso quando falarmos da popularidade do motor AP. Não é moda, mania ou preferência. É simplesmente uma questão de viabilidade.