Depois de praticamente monopolizar o mercado automobilístico dos EUA entre 1913 e 1924, a Ford começou a perder mercado na segunda metade dos anos 1920. Na época Edsel Ford já estava à frente da empresa de sua família, lutando contra a Chevrolet e contra o próprio pai, Henry Ford, para modernizar a marca, que ainda apostava no obsoleto Ford T. Primeiro ele insistiu que a Ford fizesse um novo modelo para encarar os modernos Chevrolet e Dodge, depois tentou contratar somente diretores com educação formal para profissionalizar a empresa.
Seu pai, contudo, ainda era muito influente, e contratou um ex-marinheiro e pugilista para “fazer as coisas funcionarem” na fábrica. Seu nome era Harry Bennett. A personalidade forte e a truculência de Bennett se sobrepuseram ao planejamento de Edsel.
Eclipsado pela personalidade de Bennet, os planos de Edsel não foram implementados e a Ford chegou a ter apenas 22% do mercado. O estresse e a frustração estavam acabando com Edsel, que desenvolveu um câncer no estômago e morreu em 1943. Na época Henry II, seu filho, estava na Guerra e seu pai, Henry I estava mentalmente incapacitado, de forma que Bennett quase “tomou” a direção da empresa tentando convencer Ford a nomeá-lo. Felizmente a viúva se manifestou contra a posição de Bennett a tempo de Henry II voltar da guerra.
Henry II então foi chamado por seu avô Henry I, que lhe perguntou se ele desejava assumir a fábrica ou ser um bon-vivant. Ford II topou assumir o comando com a condição de que tivesse liberdade total de gerenciamento para não acabar como seu pai. Aos 28 anos Henry Ford II se tornou presidente da Ford nos termos que apresentou ao avô.
Sua primeira medida foi convocar dez veteranos do exército para os cargos de diretoria. Eles haviam servido com Henry II, fizeram parte da divisão de estatísticas do exército e ficaram conhecidos como Whiz Kids. Eles assumiram um estilo agressivo de gerenciamento que resultou em uma das maiores viradas da indústria americana e iniciou a “guerra entre GM e Ford”, famosa nos anos 1950.
Na época os EUA viviam uma febre dos carros esporte. Max Hoffman estava enchendo os bolsos de dinheiro com o Mercedes-Benz 300SL, o BMW 507, o Porsche 356 Speedster e o Alfa Romeo Giulia Spider. A Chevrolet idem: ela havia lançado o Corvette em 1953, inicialmente com um anêmico seis-em-linha, mas acabou encontrando um engenheiro hot rodder que resolveu o problema com um V8. Já a Ford até tentou criar uma resposta ao Corvette na forma do Thunderbird, que até fez sucesso, mas não como alternativa ao Chevy.
Precisamos de um esportivo, Lee
Nesta mesma época Henry Ford II ouviu falar de um gerente de vendas chamado Lee Iacocca que fez as vendas dos carros dispararem em 1956 e vinha se destacando cada vez mais desde então. Ele foi convidado para uma reunião com o chefe e dela saiu como vice-presidente da Ford, em 1960.
Lee Iacocca ficou incumbido de desenvolver um esportivo que pudesse recuperar o território perdido para a Chevrolet. Iacocca havia formado um comitê para desenvolver novos produtos e encontrar novos nichos de mercado, o Fairlane Group. Foi deste grupo a ideia de desenvolver um esportivo que preenchesse o espaço entre os karts e o Corvette, e que pudesse competir no Grupo 9 da FIA (equivalente à Classe G do SCCA) como os modelos europeus que faziam sucesso na época.
Assim nasceu o Mustang I, um esportivo de baixo custo que combinava praticidade, desempenho esportivo e um visual radical. O carro tinha entre-eixos curto, de 2,28 metros, e um motor V4 de 1,5 litros usado no Ford Taunus europeu, porém com duas variações de potência: 90 cv para o carro de rua e 110 cv para o carro de corridas.
Ele tinha carroceria de fibra de vidro em peça única, rebitada ao chassi spaceframe. Os bancos eram integrados à carroceria e eram os pedais e a coluna de direção que se ajustavam. Os radiadores do carro foram posicionados nas laterais para manter a dianteira baixa, um conceito aerodinâmico já bem conhecido na época. Mais impressionante é que o carro foi produzido em 100 dias.
O Mustang I foi exibido no GP dos EUA de Fórmula 1 em Watkins Glen em 1961. O público adorou a ideia de um Ford daquele, porém a complexidade da construção impedia que ele fosse feito em série no volume necessário para enfrentar o Corvette e, por isso ele sequer chegou perto de ser aprovado para produção.
Enquanto isso em Los Angeles…
No começo dos anos 1960 Carroll Shelby retornou de uma triunfante temporada na Europa, onde havia disputado alguns GP de Fórmula 1 e vencido as 24 Horas de Le Mans de 1959 pela Aston Martin. Infelizmente, ele não conseguiu continuar correndo, porque seu médico diagnosticou um problema cardíaco que, em tese, o daria apenas alguns anos de vida. Sem poder correr, ele encontrou alento em um comércio de pneus e em uma escola de pilotagem, mas ainda sentia falta das pistas.
O jeito foi se tornar construtor de carros de corrida. Criado nas corridas de carros esporte/turismo, e tendo vencido as 24 Horas de Le Mans em um Aston Martin, ele conhecia muito bem a superioridade dinâmica os roadsters britânicos.
Shelby então entrou em contato com a AC Cars para saber se seria viável colocar um V8 no AC Ace. Na época a AC usava um seis-em-linha anterior à Segunda Guerra. Em 1961, até mesmo o mais novo motor da AC era um dinossauro, e seria aposentado em favor do seis-em-linha do Ford Zephyr. Por ironia do destino as modificações necessárias para instalar o motor do Zephyr no chassi do AC permitiram que um V8 fosse instalado da mesma forma. Shelby só precisava saber qual seria este V8.
Primeiro ele foi à Chevrolet, mas eles não queriam um concorrente para o Corvette, e negaram o apoio a Shelby. Depois, Shelby cruzou o caminho de Lee Iacocca, da Ford, que também estava procurando um parceiro para fazer um carro de corridas. Era a combinação perfeita. No início Iacocca achou engraçado aquele texano que sempre aparecia no escritório com um enorme chapéu e uma bela loira. Mas depois o presidente da Ford percebeu que Shelby era sério e fechou o acordo com ele.
Shelby-Ford
Convencido de que as vitórias esportivas seriam uma excelente publicidade para sua própria empresa, que no início dos anos 1960 tinha produtos com uma imagem demasiadamente popular, Henry Ford II percebeu que só mudaria isso nas corridas, enfrentando seus concorrentes também nas pistas. Foi assim que, em 1962, ele transformou a empresa de Carroll Shelby em sua equipe oficial.
A Ford havia recém desenvolvido um V8 leve para as picapes canadenses. Este motor foi produzido inicialmente na cidade de Windsor, e por isso ficou conhecido como Windsor V8. Você já deve ter ouvido falar dele como V8 canadense. Shelby pegou a versão de 260 polegadas cúbicas (4,2 litros) e instalou no AC Ace, criando o Shelby Cobra MkI.
O primeiro teste destruiu o eixo traseiro original, que foi substituído por um eixo Salisbury 4HU (com freios inboard) do Jaguar E-Type, mas o calor dos freios derreteu os retentores do diferencial, e por isso eles voltaram para a ponta do eixo. Shelby também gastou um bom tempo pensando em uma forma de arrefecer o motor apertado no cofre, apelando até para radiadores de Corvette. E, assim como no Corvette, uma enorme montanha de torque em um pacote tão leve pedia o uso de um arranjo de suspensão com feixes de mola transversais, que por sua vez exigiu braços de suspensão mais largos, o que resultou em uma carroceria mais volumosa na traseira. Assim nasceu o Shelby Cobra Mk2.
Os resultados foram épicos. O V8 Ford foi quase totalmente retrabalhado para gerar 325 cv e catapultar o Shelby-Ford AC Cobra a 100 km/h em um tempo de 4,2 segundos, algo jamais visto até então. As primeiras unidades produzidas tiveram a potência levemente reduzida e também uma direção ruim (devido ao sistema de setor e rosca sem fim) e mais problemas de refrigeração. Shelby resolveu isso com um motor 289 (4,7 litros), novo câmbio, caixa de direção do tipo pinhão e cremalheira, e uma grade dianteira aumentada com respiros laterais para tirar o ar quente do cofre do motor.
O Cobra dominou os circuitos americanos em 1963. Eles fizeram uma dobradinha em Riverside, à frente de seus rivais da Chevrolet e o número de corridas vencidas pelo Shelby Cobras naquela temporada é tão grande que pode ser resumida da seguinte forma: se houve uma corrida em solo americano em 1963, ela foi vencida por um Shelby Cobra. E isso inclui as 12 Horas de Sebring.
Se você não pode vencer seu inimigo, tente juntar-se a ele
Apesar do sucesso do Cobra nos EUA, Henry Ford II sacou que precisaria de muito tempo e muito dinheiro para fazer a Shelby atingir o nível da Ferrari. Então, por sugestão de Lee Iacocca, ele decidiu comprar a fabricante italiana e transformá-la na divisão de esportivos da Ford.
Em 29 de abril de 1963, Henry Ford II começou a negociação de compra da Ferrari. Na época Enzo Ferrari já tinha 65 anos e nenhum herdeiro, uma vez que seu filho Dino havia morrido em 1956 e Piero ainda não era conhecido, nem reconhecido por Enzo. Assim, ele vislumbrou na proposta da Ford uma oportunidade de garantir a sobrevivência futura da Ferrari.
Foram 22 dias de negociação, e a ideia inicial era construir carros de rua com a marca Ford-Ferrari, tendo a Ford participação majoritária na produção; e uma equipe de corridas chamada Ferrari-Ford, com a Ferrari como acionista majoritária. Surpreendentemente Enzo Ferrari topou a proposta. O contrato foi redigido e o acordo estava pronto para ser assinado em 20 de maio de 1963, em uma reunião de 14 membros da Ford, Enzo e seu secretário Franco Gozzi.
Ao ler os termos, contudo, Enzo teve um acesso de raiva, sublinhando duplamente os trechos que lhe causaram tamanha ira: ele precisava “submeter à Ford, para rápida aprovação, qualquer orçamento superior a 450 milhões de liras” (equivalente a US$ 2,1 milhões em 2019). Enzo Ferrari achou um acinte ser obrigado a pedir autorização para investir em sua própria equipe e, “usando palavras que não estão no dicionário” (como diria Gozzi décadas mais tarde), disse que não aceitaria um acordo sem total independência.
Em seguida, virou para Gozzi, dizendo: “Vamos comer algo”. E saiu da reunião deixando os 14 membros da delegação da Ford atônitos na sala de reuniões italiana. Ele jamais voltou a conversar com os americanos.
Dizem que a negociação com a Ford foi uma forma de Enzo pressionar a Fiat, com quem já estava negociando, e a quem acabou vendendo parte da Ferrari em 1969 — com liberdade total para gerenciar a Scuderia.
Se você não pode juntar-se ao seu inimigo, tente vencê-lo
O rompimento com Enzo deixou Henry Ford II furioso. Ele era o segundo maior fabricante de carros do planeta, produzindo em um mês mais carros do que Enzo Ferrari já havia feito em toda a sua vida. Ele então decidiu não poupar esforços para derrotar Enzo Ferrari na maior de todas as provas europeias, a 24 Horas de Le Mans.
A Shelby inscreveu em Le Mans uma versão fechada do Cobra, usando um teto rígido de fibra de vidro, para tentar otimizar a aerodinâmica deficiente do roadster. Nos EUA a força bruta era suficiente, mas em Le Mans, a reta Hunaudières/Mulsanne era extremamente longa e ainda não tinha as chicanes atuais, o que permitia que os carros chegassem à velocidade máxima. Nesse cenário a aerodinâmica era extremamente importante.
O teto fechado, contudo, não foi suficiente para a Shelby: enquanto as Ferrari beiravam os 280 km/h no reto, os Cobra não passavam dos 240 km/h. Resultado: a Shelby conseguiu um módico sétimo lugar, atrás de seis Ferrari em sequência. A Ford havia sido humilhada pelos italianos pela segunda vez.
Foi quando Henry Ford II decidiu que venceria Enzo Ferrari em seu próprio jogo. E para mostrar que sabia fazer um esportivo de verdade, Henry Ford decidiu construir um carro do zero. Como ele fez isso? É o que contamos na segunda parte desta história (leia aqui).