Meu nome é Marcos Amorim, tenho 25 anos e sou engenheiro agrônomo. Desde que me entendo por gente estou junto aos carros, principalmente os VW, sempre mexendo ou observando, então acho que acabei crescendo como um entusiasta da marca – mesmo não sabendo o que era isso.
O projeto do Gol GTS – que chamarei apenas de GTS, sem apelidos -, não nasceu de uma ideia premeditada. Foi se desenvolvendo ao longo do tempo e com inúmeros acontecimentos, alguns que inclusive viraram minha vida de cabeça para baixo, literalmente. No fim, acho que é outro daqueles estranhos casos não apenas de amor, mas de simbiose entre um dono e seu carro. É algo que não sei bem como descrever, mas que quem convive com isso sabe exatamente como é…
Minha história com o GTS começa lá na infância, praticamente nos registros mais distantes de minha memória. Desde sempre vendo – e ouvindo – meu pai com o Gol da família, um LS 1982 comprado zero km e que ainda está conosco (a foto aí em cima é de hoje mesmo!), acabou sendo algo natural desenvolver admiração e respeito pelo valente carrinho. Dessa forma, a visão de um GTI 16V no seu lançamento, lá em 1996, acabou causando estranhos efeitos em uma perturbada mente infantil, que decidiu que ainda teria um daqueles, mesmo que ainda demorasse muito para isso acontecer.
O tempo passa, o tempo voa e, em 2005, o GTI nem era mais fabricado. Mas foi o ano em que encontrei um bom modelo de 1997 à venda, sem preço inflacionado. Mais estranho que o achado foi o meu pai ter gostado do carro, ao ponto de querer comprá-lo mesmo sem eu ter carteira de motorista (desconfio que ele também queria andar de GTI 16V por aí, mas não vem ao caso). Contudo, como alegria de adolescente dura pouco, minha mãe vetou a compra. E lá fui eu juntar uns trocos para tentar comprar um carro, mais precisamente um Puma, que sempre admirei e que ainda eram baratos naquela época. Mal sabia eu que essa vontade de comprar um Puma me traria o GTS…
Para entender como isso aconteceu, preciso contar um pouco de história: nos anos 70 meu pai trabalhava viajando bastante, mas também ficava um bom tempo em Brasília. E como a capital ainda era pouco desenvolvida em infraestrutura, não tinha muito o que fazer na região e as ruas eram largas e vazias. Resultado? Tome gente sentando o pé por aí sem dó, não importando o modelo do carro. E foi numa dessas que um cara perdeu o controle de seu Puma e capotou no início da Asa Norte, atingindo com o teto um PV (aqueles poços de visita, que a grosso modo é uma manilha de concreto com tampa, colocada na vertical). O teto – e o resto – se partiu, transformando a fibra em lâminas afiadas e, bem, acho que dá para imaginar o resultado. Sabendo do caso, meu pai passou a ter uma incrível aversão por carros com carroceria em fibra de vidro, lembrando sempre daquele acidente de quatro décadas atrás.
A imagem do filho guiando uma daquelas coisinhas minúsculas certamente não o agradava. A verba era quase suficiente para comprar um remendo de Puma e faria isso tão logo achasse um modelo que ao menos rodasse. Então, tome ficar olhando os classificados do Correio Braziliense – algo que faço ainda hoje – atrás de um GTE ou GTS, mas sempre dando uma olhada nos Volks também. E foi em uma dessas que achei o GTS – o Gol, não o Puma – em um anúncio simples, sem letras destacadas ou demais firulas, em 2006. O preço estava dentro de média de mercado para um bom exemplar, R$ 12 mil, e a cor vermelha era a que achava mais bonita para o modelo. Sabia que não tinha condições de comprar e que também não ganharia o carro, então apenas comentei com meu pai, da mesma forma que faço até hoje quando vejo um carro interessante nos classificados. Ele só perguntou onde o GTS estava e continuamos a conversa.
Mais tarde, naquele mesmo dia, ele chega em casa e apenas diz: “passei lá na loja e já dei o sinal, amanhã vamos buscar o carro.”
Hein?
Eu sem carteira, sem dinheiro e sem juízo e ele resolve comprar um GTS 1994? É, foi isso mesmo. E lá fomos nós “buscar” o carro, algo que não fiz pela falta de carteira e pela presença de bom senso, já que não seria muito legal ser enquadrado indo com o carro novinho para casa… Acabou que um funcionário da loja o deixou em casa – e eu fiquei lá babando na garagem, querendo dar uma volta e sem condições de fazê-lo. Só consegui matar a vontade algumas semanas depois, quando finalmente chegou a tão sonhada provisória. Poderia usar o clichê do moleque virgem com a prima gostosa dormindo em casa, mas como nunca tive prima gostosa…
Um breve registro: se no ano anterior minha mãe já havia vetado o GTI 16V, acho que é possível imaginar a reação dela com o GTS parado na garagem. Em compensação, os poucos amigos que o viram logo que ele chegou em casa acabaram gostando muito, claro.
Pode parecer estranho, mas a memória de meu pai o dirigindo pela primeira vez comigo de carona foi mais marcante do que quando eu o dirigi pela primeira vez. Era diferente do que estava acostumado, era mais firme, seco, barulhento, envolvente. Cresci vendo meu pai dirigir, e a forma que ele guiava o GTS mostrava que o carro não era nada parecido com o que ele estava acostumado. Não era algo que permitia uma tocada indecisa: se errasse o pé ou a mão ele respondia com um tranco. Então, pela primeira vez em sei lá quantos anos, eu o vi tendo o maior cuidado nos comandos. Após alguns quilômetros já estava natural. O GTS conseguiu fazer meu pai ser mais suave ao volante.
Ainda sobre essas primeiras sensações, duas características dos Volkswagen que se perderam com o tempo: câmbio preciso e o cheiro do interior. O transeixo dele, o famoso PV, com quinta real de 0,80:1 e diferencial de relação 4,11:1, possuía engates incrivelmente precisos, mesmo com as buchas um pouco gastas. Não exigia esforço, mas cada marcha entrava de forma direta, com aquela sensação típica de contato mecânico e com um movimento bastante curto da alavanca. Após uns 200 metros parecia que você já estava guiando um velho conhecido.
Sobre o cheiro do interior, quem tem um Volks mais antigo sabe muito bem que eles possuem um odor característico que não se perde com o tempo. Pode passar quarenta anos, o carro ser abandonado, restaurado ou guardado, o cheiro estará lá ao abrir a porta. E ele o possui, claro, que mesmo em meio à mistura de gasolina, óleo, B12, pastilhas de freio e borracha. Não sei se é dos Recaros – meio desbotados, diga-se – dos materiais que eram utilizados ou alguma macumba do pessoal da Via Anchieta, mas o perfume continua lá. E olha que teve algumas desmontagens, chuva e mofo no meio dessa história…
Várias coisas aconteceram desde aquele dia no primeiro semestre de 2006. Entrei na faculdade, me formei, viajei algumas vezes com ele, conheci bastante gente – “normais”, mecânicos, entusiastas – tive alguns acidentes. Ele ficou associado à mim. Aliás, essa é outra daquelas coisas estranhas entre um “dono” e seu carro: você deixa de ser você e passa a ser o “cara daquele carro”. Vira sua identidade.
Sobre os acidentes, o pior que já tive foi com ele foi algo que todos consideraram PT – mas não entrava na minha cabeça que eu deveria simplesmente abandoná-lo. E não o fiz.
Para resumir o caso, na noite de 16 de junho de 2008 estava voltando para casa, algo entre as 20:00 e 20:30, quando na saída da segunda perna de uma curva em “S”, a frente firma no chão e a traseira solta. Não estava correndo, havia reduzido para quarta pouco antes da entrada da primeira perna e não girava nem 3.000 rpm. Eu, sem pensar, resolvi corrigir com o pé no acelerador, achando que era algo simples, mas não era. Ele deu uma chicoteada para o outro lado e eu continuei nessa, pendulando e aumentando a velocidade, até que perdi de vez e fui meio de lado com a frente apontada para o meio-fio, com as rodas travadas.
Tirei o pé do freio pouco antes de acertar a guia – única atitude sensata de todo o caso – e esperei a pancada. Pensei que iria voar e cair na outra mão apenas, mas acertei um hidrante de lado, perto da base da coluna A esquerda. Depois vi o mundo girando. Não sei se dei uma volta completa ou o teto girou no chão – lembro de faíscas – mas entrei no meio fio apontando para um lado e caí apontando para outro. A foto abaixo não foi tirada no local exato do acidente.
Ele ficou bastante machucado. Ninguém queria que eu o recuperasse, mas depois de muito convencimento, de prometer andar o mínimo possível com ele (é, essa não deu para cumprir…), do apoio da minha mãe – ela passou a me apoiar depois de ver o quanto que eu gostava do carro – e conferir o quanto tinha guardado na poupança, resolvi ligar para o Elias, um lanterneiro, que neste caso pode ser chamado de milagreiro. Ele aceitou ressuscitar o GTS, que está de pé novamente faz alguns anos.
Foi a partir daquele momento que as coisas começaram a mudar de rumo. Decidi deixar a originalidade mecânica de lado e partir para a preparação. É o que falarei no próximo post.
Por Marcos Amorim, Project Cars #88