Hoje em dia, o VW Golf mais potente que se pode comprar é o Golf R. Um degrau acima do GTI, o Golf R é movido pelo mesmo motor 2.0 TSI, um quatro cilindros turbinado que, em sua mais recente encarnação, entrega 300 cv, pode ter câmbio manual ou DSG de dupla embreagem, e tem tração nas quatro rodas – a receita padrão dos hot hatches de topo atuais. Ainda que não seja o mais potente (o Ford Focus RS, por exemplo, tem 350 cv em seu motor 2.3 turbo Ecoboost), o Golf R tem um dos conjuntos mais equilibrados do mercado, e é garantia de diversão ao volante.
Mas quando foi que a Volkswagen decidiu dar um sistema de tração traseira a um carro que, originalmente, foi concebido para ter tração dianteira? E como eles fizeram isto?
Foi na década de 1980 – mais precisamente, em 1984, que foi o ano em que o Volkswagen Santana, primeiro VW “de luxo” lançado no Brasil, começou a ser vendido aqui. Na Europa, o Santana já existia desde 1981. Exceto que, como você já deve ter lido aqui, ele não se chamava Santana, e sim “Passat”. Havia, ainda, a versão perua e o hatchback de duas ou quatro portas. Na Europa, a perua era vendida como Passat Wagon, enquanto nos Estados Unidos era chamada de Quantum, como no Brasil.
De qualquer forma: enquanto a VW brasileira preparava o Santana para sua estreia, na Alemanha ele era preparado para sua primeira atualização, que veio em 1984 como modelo 1985. Além de uma leve reformulação visual, o Passat Wagon/Quantum recebeu naquele ano sua primeira versão com tração nas quatro rodas.
O sistema, chamado pela Volkswagen de Syncro, era na verdade o mesmo sistema quattro desenvolvido pela Audi. Não podemos dizer, contudo, que foi a Audi a responsável pela existência da Quantum Syncro, pois se não fosse a VW, a Audi não teria o sistema quattro. Hã?
Simples: como já contamos aqui, o sistema de tração integral quattro da Audi foi inspirado pelo utilitário Volkswagen Iltis, utilitário construído pela VW sob encomenda do exército alemão entre 1978 e 1988. Em 1977, enquanto acompanhava testes com o Iltis, um dos engenheiros da Audi, Jörg Bensinger, percebeu que o protótipo do Iltis era mais rápido que qualquer outro veículo na neve, não importava o quão potente este fosse. Foi ali que ele teve a ideia de criar uma variação do Audi 80 com tração integral.
O sistema usava o arranjo do eixo dianteiro do Audi 80 como base para o eixo traseiro, que recebia um diferencial idêntico. Um terceiro diferencial era instalado no eixo cardã, com bloqueio mecânico, compensava a diferença de velocidade entre os eixos, impedindo a quebra do sistema e proporcionando uma qualidade de rodagem e tração superiores.
O Audi 80 era como o “primo rico” do Santana, e foi o primeiro automóvel a ser equipado com tração nas quatro rodas – na verdade, foi sua versão cupê, chamada Quattro, lançada em 1980. Quatro anos depois, a Volkswagen Quantum recebeu sua própria versão do sistema.
Chamada Quantum Syncro, de início a versão de tração nas quatro rodas da perua vinha equipada com o motor de cinco cilindros compartilhado entre Audi e VW. Com dois litros de deslocamento e comando no cabeçote, era praticamente um AP com um cilindro a mais, compartilhando diversas características do projeto. Mais potente, era mais apropriado para compensar o aumento de peso do sistema Syncro, que adicionava algumas dezenas de kg a mais.
Havia algumas diferenças em relação ao sistema usado na Quantum Syncro: o eixo traseiro, por exemplo, era derivado da VW Transporter de terceira geração (aquela que recebeu um motor boxer arrefecido a água, sobre o qual falamos há algum tempo). Isto porque o eixo original do Quattro ocupava muito espaço e acabaria reduzindo o espaço no porta-malas. A Volks também precisou modificar bastante a parte inferior do carro, adaptando um túnel de transmissão e reposicionando o tanque de combustível, além de eliminar a alojamento do estepe, que não ficava mais escondido sob o forro do porta-malas, e sim guardado no compartimento.
A VW era discreta na hora de identificar a Quantum Syncro. Se você não olhasse a perua por baixo, só conseguiria identificá-la pelo emblema na traseira. A ideia, de qualquer forma, não era exaltar a tração integral como característica esportiva, como era feito no Audi Quattro, e sim proporcionar uma station wagon com melhor capacidade de se locomover sobre a neve, terra ou lama. É a mesma ideia de modelos mais modernos como a linha Allroad de peruas da Audi.
O fato de não ser uma perua esportiva não significa que a Quantum Syncro não possa ser guiada como uma perua esportiva
Apesar de não ser muito conhecida por nós, a Quantum Syncro se saiu bem nas vendas. Na Europa, a versão de tração dianteira foi produzida até março de 1988, quando veio a nova geração. A Syncro, porém, permaneceu por mais três meses, saindo de linha só em junho daquele ano.
Talvez por isso a VW tenha decidido arriscar e, em 1986, apresentou o Golf Syncro. Baseado na segunda geração do Golf, lançada em 1983, o Golf Syncro tinha o mesmo apelo da Quantum Syncro, mas usava um tipo diferente de tração integral. No Audi Quattro e na Quantum Syncro, o motor era longitudinal e o diferencial traseiro era do tipo Torsen. No Golf, o diferencial era um Haldex com acoplamento viscoso, cujo funcionamento merece um parágrafo à parte.
Colocando de forma simples: o acoplamento viscoso consiste em um tambor fechado que, em seu interior, traz placas perfuradas e um fluido, geralmente a base de silicone. Este fluido preenche cerca de 80% do volume do tambor, e tem a finalidade de fazer a conexão mecânica destas placas.
As placas estão ligadas ao eixo cardã e, por meio dele aos eixos dianteiro e traseiro, movendo-se de acordo com a velocidade das rodas. Quando há uma diferença de velocidade entre as rodas (e, consequentemente, entre as placas dentro do tambor), o calor gerado pelo atrito faz com que o fluido se dilate e ganhe viscosidade, ao ponto de ficar quase sólido. Neste estado, o fluido conecta as placas ligadas ao eixo dianteiro e ao eixo traseiro, possibilitando a transferência de energia mecânica do eixo dianteiro para o eixo traseiro e, consequentemente, distribuindo o torque do motor entre ambos os eixos.
Mudando o tamanho dos furos e o desenho nas placas, até se pode determinar a intensidade desta distribuição de torque e a que velocidade o carro precisa estar para que o acoplamento viscoso entre em ação, mas é impossível fazer com que toda a força vá para um único eixo.
No caso do Golf Syncro, normalmente o acoplamento viscoso distribuía o torque em 95% para o eixo dianteiro e 5% para o eixo traseiro, variando conforme a velocidade das placas dentro do acoplamento viscoso. Desse modo, o sistema era “ativo”, de certo modo, embora não existisse um sistema eletrônico que o controlasse.
O sistema Syncro foi o precursor do sistema 4Motion usado pelo Golf R. Nos anos 80, foi aplicado não apenas no Golf Syncro, que era apenas uma versão do Golf comum, com tração nas quatro rodas e motor 1.8 de 90 cv, mas também no Golf Rallye, especial de homologação do WRC com para-lamas alargados e motor 1.8 supercharged e 160 cv.
Havia, ainda o Golf Country Syncro, edição especial com suspensão elevada e acessórios off road como barra de proteção na dianteira e luzes de neblina, que só teve cerca de 7.700 exemplares fabricados e foi inspirado em um conceito apresentado no Salão de Genebra de 1989. O visual “aventureiro” proporcionado pelo estepe na tampa do porta-malas e pelos apliques plásticos na carroceria não é muito distante dos “SUVs compactos”, segmento que no Brasil se popularizou com o Ford Ecosport, que a Volkswagen respondeu (de certa forma) com o Crossfox.
Exceto que, até onde sabemos, o Golf Country Syncro era muito mais valente que o Crossfox…