É impossível não associar a imagem de esportividade da Porsche ao 911 e seu layout mecânico excêntrico, com o motor “pendurado” na traseira do carro, atrás do câmbio e do eixo traseiro. Mesmo com o motor “no lugar errado” — um layout que não resistiu à evolução da dinâmica automobilística nas outras marcas — a Porsche sempre conseguiu manter o 911 nas primeiras posições dos grids das corridas e nos degraus mais altos do pódio, além de mantê-lo sempre na cola (ou na frente) de rivais, em tese, mais equilibrados.
Mas apesar do sucesso do 911, ao longo de sua história, a Porsche também contou com a ajuda de vários esportivos de motor central-traseiro para construir a imagem de esportividade da qual desfruta até hoje. Na verdade, a Porsche adotou o layout de motor central-traseiro pela primeira vez em seus carros quando isso sequer era cogitado na Fórmula 1 ou nas corridas de GT ou carros esporte. Não é para menos: Ferdinand Porsche (o primeiro) foi o responsável pelo layout mecânico do Auto Union Type C, que se tornou o primeiro carro com essa configuração a vencer um Grande Prêmio. Era natural que seus herdeiros tentassem isso em seus carros cedo ou tarde. São estes carros que veremos neste post.
Essa configuração, que coloca o motor à frente do eixo traseiro e atrás do cockpit/cabine, acabou se tornando um padrão do automobilismo a partir do final dos anos 1950, uma vez que a melhor distribuição de peso favorece o equilíbrio do carro, e a concentração da massa na porção central do carro o ajuda a rotacionar sobre seu próprio eixo vertical.
Por essa razão não incluímos os carros exclusivamente de corrida feitos pela Porsche com esse layout, caso do 718 RSK e dos protótipos 906, 908, 909, 910, 917, 953, 956, 962, WSC-95, RS Spyder e 919. Sendo carros de corrida, ainda que fossem Porsches, estranho seria se eles não tivessem motor central-traseiro. Sem eles, a cronologia dos Porsche mid-engined feitos para as ruas fica da seguinte forma:
550 – 1953 a 1956
O primeiro Porsche de motor central-traseiro também foi seu primeiro modelo desenvolvido com as corridas como principal finalidade. Ele não teve uma versão de homologação, porém foi pensado para que pudesse ser dirigido até o circuito e depois de volta para casa.
Diferentemente dos 356 modificados para as pistas, o 550 ganhou um novo motor todo feito de alumínio, desenvolvido especificamente para competições. Conhecido como “Fuhrmann”, o motor tinha comando duplo de válvulas, câmaras de combustão hemisféricas e sistema de ignição duplo — um para cada bancada de cilindros.
Nesta primeira versão utilizada no 550, ele deslocava 1,5 litro e produzia excelentes 110 cv a 7.800 rpm e 12,3 kgfm a 5.000 rpm. O câmbio era manual de quatro marchas nos primeiros anos, mas em 1956 ganhou uma nova caixa de cinco marchas, porém com a primeira não-sincronizada.
Embora seja um dos modelos mais populares e replicados da Porsche, o 550 teve apenas 90 unidades produzidas entre 1953 e 1956 — ano em que conquistou a primeira vitória da Porsche em um evento de grande prestígio, a Targa Florio.
No ano seguinte ele foi substituído pelo 718 RSK, que também usava o motor Furhmann em posição central-traseira, mas nunca foi um carro voltado para as ruas.
904 Carrera GTS – 1964 a 1965
O 904 foi o primeiro Porsche desenvolvido como um carro de corrida que ganhou uma versão de rua para ser homologado para as pistas. Ele nasceu em 1963, quando a Porsche desistiu de seu programa na Fórmula 1 ao fim da temporada de 1962, e voltou seus esforços para as corridas de carros esporte. Com a exigência de 100 unidades de rua para homologação conforme o apêndice 3 da FIA, sua versão de rua chegou em 1964.
O motor era o mesmo flat-4 do 718, com dois litros de deslocamento e comando duplo no cabeçote, gerando impressionantes 200 cv. O chassi tipo escada coberto por uma carroceria de fibra de vidro manteve o peso na casa dos 660 kg, o que resultava em uma relação peso/potência de apenas 3,3 kg/cv e permitia uma aceleração de zero a 100 km/h cumprida em cerca de 6 segundos e velocidade máxima de 260 km/h com as relações originais do câmbio de cinco marchas.
A suspensão do 904 também era algo inovadora para a Porsche: ele usava braços triangulares assimétricos na dianteira e braços arrastados na traseira, com molas helicoidais nos quatro cantos. Foram feitos apenas 106 exemplares de rua do 904.
914 – 1969 a 1976
No final dos anos 1960 a Porsche precisava de um modelo de entrada para substituir o 912 — a versão 2.0 de quatro cilindros do 911 — e a Volkswagen precisava de um esportivo para substituir o Karmann Ghia. Como a Porsche estava devendo um projeto para a Volkswagen, parte de um acordo firmado entre as empresas no final dos anos 1940, a Volkswagen decidiu que este projeto seria o 914.
Ferdinand Piëch, então chefe de pesquisa e desenvolvimento da Porsche, ficou encarregado do projeto. A ideia era desenvolver uma plataforma capaz de receber o flat-4 da Volkswagen e o flat-6 da Porsche. O modelo de quatro cilindros seria o sucessor do Karmann Ghia, vendido como Volkswagen, e o modelo de seis cilindros o substituto do 912, vendido como Porsche.
O primeiro protótipo ficou pronto em 1968, mas a morte de Heinz Nordhoff, então presidente da Volkswagen, colocou o projeto em risco. Isso porque Nordhoff havia firmado um acordo de cavalheiros com a Porsche e foi substituído por um executivo sem conexão alguma com a família Porsche que simplesmente ignorou o acordo.
Este executivo era Kurt Lotz, e ele achava que a Porsche estava apenas cumprindo contrato ao desenvolver o carro para a Volkswagen, e que não deveriam usufruir do projeto sem bancar o custo do ferramental. No fim, a Porsche topou o acordo e o carro foi lançado em 1969 na Europa e nos EUA como Volkswagen-Porsche 914, equipado com o motor 1.7 de 80 cv da Volkswagen e 2.0 flat-6 de 110 cv da Porsche. O câmbio era manual de cinco marchas nos dois modelos.
Contudo, com parte do custo do carro bancado pela Porsche, o preço do 914 de seis cilindros (conhecido com 914/6) acabou ficando próximo demais do 911T, a versão de entrada do 911. Por esse motivo foram vendidas apenas 3.351 unidades do 914/6, que teve sua produção encerrada em 1972. Em seu lugar, a Porsche lançou o 914 com o motor 2.0 injetado do Volkswagen Type 4, de 100 cv, que era capaz de acelerar de zero a 100 km/h em 10,5 segundos e chegar aos 190 km/h — o 1.7, também injetado, precisava de 13,5 segundos e chegava aos 186 km/h, e em 1974 foi substituído por um 1.8 de 86 cv que baixava o tempo para 12 segundos.
O 914 foi produzido até o início de 1976, e durante os anos em que foi produzido superou o Porsche 911 em vendas mesmo sem um motor Porsche. Na época a fabricante já estava desenvolvendo o 924, que só ficaria pronto no fim de 1976. Para não ficar sem um modelo de entrada até a chegada do 924, a Porsche instalou o 2.0 injetado da Volkswagen na carroceria do 911 e criou o 912E, que foi vendido somente naquele ano de 1976.
Boxster/Cayman – desde 1996
Olhe para o Boxster e tente não enxergar a herança do 550 Spyder, do 718 e do 914 nele. Teto aberto, motor boxer central-traseiro, peso baixo e dinâmica afiada sobrepostos à potência contida. Olhando hoje, o Boxster parece algo natural na linha da Porsche. Mas não era assim quando ele nasceu.
Por algum motivo, a Porsche desistiu desta receita após o fiasco do 914 — que para os fãs da Porsche era só um Volkswagen rebatizado — e nunca mais fez um roadster. Em vez disso, lançou uma série de esportivos de motor dianteiro que funcionaram bem no começo, mas chegaram aos anos 1990 rejeitados. Os sonhos dos entusiastas estavam habitados por algo mais exótico e ao mesmo tempo conservador: o Mazda MX-5 Miata.
Exótico conservador porque era um roadster típicamente europeu, mas era feito no lugar mais improvável na época: o Japão. O sucesso do japinha fez a Europa inteira voltar sua atenção ao arquipélago oriental; a Porsche inclusive, mas não apenas por conta das características do carro em si. Além de ser um esportivo desejável ele ainda dava lucro para a Mazda, algo que a Porsche já não tinha mais com seu 968.
Assim, além de copiar a receita da Mazda, a Porsche contratou uma empresa de ex-engenheiros da Toyota que implementou o “toyotismo” na fábrica alemã — ou seja: um método que produzia “apenas o necessário, quando necessário e na quantidade necessária” — nem mais, nem menos. Foi esse sistema que permitiu à Porsche desenvolver e construir o Boxster.
Depois de um conceito aprovado pelo público em 1993, o Boxster entrou em produção em 1996, e conquistou os entusiastas e fãs da marca, que compraram mais o novo roadster do que o tradicional 911 — então em sua geração 996. Pudera: com o motor central-traseiro, o Boxster compensava sua potência inferior com desempenho afiado e divertido, e assim se tornou o modelo mais vendido da Porsche até 2003, quando o Cayenne entrou em cena.
Em 2004 veio a nova geração e, com ela, uma versão fechada lançada em 2006. O irmão cupê do Boxster foi batizado de Cayman e você pode encará-lo como um sucessor do 904 — especialmente agora que ele usa um flat-4 com comando duplo no cabeçote.
911 GT1 Strassenversion – 1996 a 1997
Ele tem nome de 911, cara de 911 e por isso nós o chamamos de 911. Mas para considerar este supercarro um legítimo 911 é preciso fazer vista grossa para o fato de que ele tem toda a sua porção traseira derivada do 962C, do chassi ao motor flat-6 biturbo instalado em posição central-traseira.
E ele tem esse nome porque o regulamento da categoria GT1 estipulava que, para ser homologado, cada carro deveria ter ao menos 25 unidades de rua. Isso nunca foi um problema para os demais GT1, que historicamente eram versões hardcore de supercarros de rua como a Ferrari F40, ou o McLaren F1. Por isso em vez de fazer um super 911, a Porsche enxertou a dianteira do 993 no 962 e fingiu que ele era um super 911.
A versão de rua deste 911/962 era o 911 GT1 Strassenversion —
que é o palavrão alemão para “versão de rua”. Ele tinha o mesmo flat-6 3.6 biturbo do carro de corrida, porém recalibrado para produzir menos potência e atender as normas de emissões da época. Por isso ele tem “apenas” 544 cv a 7.200 rpm e 61,1 kgfm a 4.250 rpm em vez dos 600 cv da versão de corrida. Não era algo que o tornava menos super: com apenas 1.150 kg e um câmbio manual de seis marchas ele ia de zero a 100 km/h em 3,9 segundos, zero a 200 km/h em 10,5 segundos e chegava aos 308 km/h.
Apesar do regulamento exigir 25 unidades, a Porsche fabricou somente 22 delas. As duas primeiras saíram em 1996 com a dianteira do 993, com faróis circulares. Uma foi enviada ao governo alemão para testes de homologação e depois voltou para a Porsche, e a outra está com o colecionador barenita Khalid Abdul Rahim. As outras 20 unidades foram construídas em 1997 e usam os faróis do 996.
Carrera GT – 2004 a 2006
Lançado em um período de transição no universo automobilístico, o Porsche Carrera GT foi um ícone em sua época, mas logo ao fim de sua produção acabou esmaecendo aos poucos, até acabar ofuscado pelo 991 e, acima de tudo, pelo 918 Spyder.
Sua peculiaridade como Porsche, contudo, faz dele um dos modelos mais interessantes já criados pela marca, e possivelmente um dos Porsche modernos que mais irá valorizar nos próximos anos. E não pense que é só por causa de seu V10 conectado a um câmbio manual. Isso é uma consequência de sua origem.
O desenvolvimento do Carrera GT começou no final dos anos 1990, quando a FIA e o ACO mudaram as regras da categoria LMP1-98 para a temporada de 1999, o que tornava o 911 GT1 não qualificado para homologação. Assim, a Porsche começou a desenvolver um novo protótipo para 1999.
Originalmente o carro usaria um flat-6 turbo, mas acabou reprojetado para usar um novo V10, o que atrasou a conclusão do seu desenvolvimento para 2000. O motor V10 era um projeto feito originalmente para equipar os carros da Footwork na F1 em 1992 que acabou engavetado e trazido de volta para o projeto do protótipo de Le Mans (LMP). O deslocamento original de 3,5 litros foi modificado para 5,7 litros, o motor foi fabricado e instalado nas costas do novo protótipo de corridas.
A Porsche então iniciou os testes, mas eles foram cancelados depois de dois dias. O motivo nunca foi revelado oficialmente, mas há duas especulações. O desenvolvimento do Cayenne com a Volkswagen e a Audi, que exigia a expertise dos engenheiros envolvidos no projeto do protótipo de Le Mans é o motivo principal e o mais plausível, mas há quem diga que o então presidente da Volkswagen-Audi, Ferdinand Piëch, não queria que a Audi competisse com a Porsche em 2004.
O desenvolvimento de um carro é algo que exige milhões de dólares em investimentos, e este era um dinheiro que a Porsche não poderia simplesmente engavetar como mais um projeto frustrado. Assim, o povo da Estugarda, como dizem em Portugal, enfiou o V10 na traseira de um conceito e o levou ao Salão de Paris de 2000 sem grandes pretensões, apenas para atrair o público para seu estande. Ao menos como publicidade ele serviria. Não era um carro que a Porsche conseguiria desenvolver naqueles tempos de recuperação financeira, muito menos enquanto um inédito SUV estava sendo gestado e consumindo recursos técnicos e financeiros.
E vejam só como o destino às vezes conspira a favor: o Cayenne foi lançado, foi um sucesso estrondoso, encheu os cofres da Porsche e, com essa grana, foi possível desenvolver e produzir aquele conceito despretensioso de Paris. E foi assim que em 2004 a Porsche começou a produzir o Carrera GT, com seu V10 de 5,7 litros, 40 válvulas, 611 cv a 8.000 rpm e 60 kgfm a 5.750 rpm. Conectado ao câmbio manual de seis marchas com embreagem de cerâmica, o Carrera GT era capaz de ir de zero a 100 km/h em 3,6 segundos, zero a 200 km/h em 9,25 segundos e seguia até os 334 km/h. Tudo isso sem controle de tração ou estabilidade.
O interior minimalista não tinha rádio e os bancos eram tipo concha, com encostos fixos. O console central era elevado e ditou a tendência adotada até hoje nos Porsche, e a alavanca de câmbio tinha a manopla com madeira balsa na parte superior, uma referência à sua linhagem, como um descendente direto do 917.
A Porsche planejou fazer 1.500 exemplares do Carrera GT, mas em 2005, depois de apenas um ano de produção, anunciou que não iria continuá-la em 2006, e assim a carreira do Carrera GT chegou ao fim em 6 de maio de 2006, com 1.270 unidades produzidas.
918 Spyder – 2013 a 2015
Nós raramente pensamos no 918 Spyder como um carro de motor central-traseiro porque, afinal, ele tem um par de motores elétricos no eixo dianteiro. Mas se você considerar que ele ainda tem um V8 aspirado de 4,6 litros encaixado entre o cockpit e o eixo traseiro, bem, isso faz dele um carro de motor central-traseiro.
O motor em si já é uma obra-prima: V8, aspirado, 616 cv a 8.500 rpm e 53,7 kgfm. Somente 135 kg. Só isso já seria impressionante para um Porsche de motor central-traseiro. Mas, como se não bastasse, a Porsche ainda fez um dos motores elétricos o ajudar a mover as rodas traseiras com 156 cv extras, o que significa que o câmbio PDK que fica atrás do V8 recebe 772 cv.
Some aos 127 cv do outro motor elétrico, que impulsiona as rodas dianteiras, e você tem 899 cv e 130,3 kgfm para catapultar seu 918 Spyder aos 100 km/h em 2,5 segundos, aos 200 km/h em 7,2 segundos, aos 300 km/h em 19,9 segundos e seguir em frente até os 350 km/h. Ou completar uma volta em Nürburgring Nordschleife em 6:57.
Bonus-track: 911 RSR – desde 2017
Sim, ele é um carro exclusivamente de corrida, mas quem diria que um dia o 911 iria girar em 180 a posição do seu conjunto de motor e transeixo e se tornar um carro de motor central-traseiro, quebrando sua última tradição à qual era fiel desde 1963?
Pois era isso ou começar a tomar uma surra dos rivais nas pistas. E sendo um carro cuja história nas pistas precisa ser honrada, bem… danem-se as tradições; a sobrevivência é mais importante.
O 911 ganhou um motor central-traseiro no final de 2016, quando o regulamento da categoria LMGTE foi modificado e passou a tolerar mudanças mais extensas que permitiram que a Porsche invertesse o conjunto motriz. O motivo é que a concorrência estava cada vez mais acirrada e evoluída, com projetos modernos de aerodinâmica e o Porsche acabava limitado por seu layout clássico: o motor ocupava o espaço necessário para aumentar o difusor. Com isso, a capacidade de gerar downforce era limitada e dependente demais da asa traseira — que, por sua vez, adotava um ângulo de ataque agressivo demais, o que gera arrasto e reduz a velocidade em retas.
Por isso, a solução foi trocar o motor de lugar com o câmbio, liberando espaço para o difusor, o que permitiu à Porsche evoluir a aerodinâmica do 911 RSR. Apesar da mudança no carro de corrida, a Porsche jura que não irá fazer um 911 de rua com motor central traseiro. Será?