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Huracán Performante é o novo recordista de produção em Nürburgring Nordschleife. Mas algo parece estranho

As redes sociais, os entusiastas e a imprensa internacional estão fervorosos. Entre declarações de amor à Lamborghini e provocações à Porsche – cujo 918 Spyder amargou mais de cinco segundos de intervalo –, o fato é que neste momento, não se fala outra coisa senão o esmagador novo recorde do Lamborghini Huracán Performante (veja aqui o nosso “tudo o que sabemos sobre ele”) no Nürburgring Nordschleife: 6:52,01. No instante em que soube deste feito, fiz exatamente como as recomendações que a gente passa pra vocês quando tem um vídeo muito bacana. Desliguei o celular, peguei um café quentinho, aumentei o som, reclinei na poltrona e maximizei a janela.

Estava me mordendo de curiosidade: como é possível um superesportivo aspirado, com supostos menos de 700 cv, tenha destroçado o tempo dos três hipercarros do apocalipse? Estava arrepiado, com a mesma sensação de 24 de setembro de 2014, quando o Viper ACR destruiu o recorde do GT-R e de todos os Porsche de rua já feitos. E todos nós temos um grande carinho pela Lamborghini. Mesmo que tecnicamente ela seja uma marca a serviço da VW atualmente, para nós ela sempre será a Lambo dos Miura, Countach, Diablo, de Valentino Balboni. Em muitos sentidos, mais italiana que a própria Ferrari.

Ao dar “play”, contudo, em menos de um minuto tive uma sobrecarga de informações que me deixaram com um gosto amargo na boca.

 

O polêmico on board

Abaixo temos o vídeo que o canal oficial da Lamborghini compartilhou ontem no YouTube, acompanhado da declaração: “No dia 5 de Outubro de 2016, o Huracán Performante cravou um novo recorde de veículos de produção com 6:52,01 no Nürburgring Nordschleife, com o piloto de testes da Lamborghini Marco Mapelli”.

Há muito o que se esclarecer e provavelmente tal luz só virá bem depois da apresentação no Salão de Genebra. Ou seja, depois que toda a publicidade do feito estiver consumida – isso se ela vier. Acompanhe.

1) O carro está aliviado em relação à configuração de fábrica: se a ideia é declarar o carro como recordista de produção, o mínimo que se espera é que ele esteja em sua configuração de fábrica. Mas temos um carro (1) sem banco do passageiro (2) sem forrações no teto e no assoalho e portas com todos os acabamentos removidos (confira a 1:50 do vídeo) e possivelmente sem a folha interna (3) painel sem forração (4) com banco de competição e roll cage e (5) sem comandos do sistema multimídia e sem sistema de ventilação – seria ingênuo acreditar que este carro está carregando os alto-falantes e todo o sistema de ar condicionado como peso morto.

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Não foi à toa que a Lamborghini colocou no destaque principal uma bumper cam e deixou o on board que interessa como thumbnail. Este carro é inclusive diferente dos outros modelos disfarçados que foram apresentados para alguns veículos da imprensa, como a alemã Sport Auto (veja aqui e confirme todos os detalhes de acabamento presentes), ou seja, o carro da volta de Nürburgring é uma unidade específica que foi aliviada e preparada a ponto de estar muito mais próximo a um veículo de competição que um de rua. Com tantas modificações visíveis, penso em tudo o que pode ser feito e que não está à mostra (veja penúltimo parágrafo deste texto).

Se os pontos 1, 2, 3 e 5 são autoexplicativos para qualquer leigo, você talvez se pergunte por que uma gaiola (roll cage) faria um carro mais rápido. Qual seria a vantagem de se adicionar peso, não é mesmo? A questão é que o roll cage é o fim da cadeia dos processos. Acompanhe o tópico seguinte.

2) O comportamento dos pneus não parece normal para um R compound de rua: todo fã de track days sabe bem o que significam siglas como R888, A048 e Trofeo R – é o nirvana da dinâmica automotiva, o mais próximo de slicks de competição que um pneu legal DOT pode ser. Mas ainda assim, há um sólido degrau separando-os de slicks de competição de nível internacional. Diferenças que não apenas são claras no cronômetro, mas também no comportamento e na experiência sonora: slicks permitem uma velocidade de entrada bem mais agressiva e soam de uma forma muito diferente. Em ritmo de pista, slicks não cantam frente à aderência lateral, no máximo murmuram um chiado de média frequência (só cantam numa travada de frenagem, com um timbre menos encorpado e escandaloso que pneus de rua).

Acima temos o teste da Sport Auto com o Lamborghini Huracán em Nürburgring, calçando justamente os Pirelli Trofeo R – o pneu de rua mais agressivo que a Pirelli vende hoje. Note o cantar que acontecem em algumas frenagens e em quase todos os passos de curva e a atitude diferente nas entradas de curva se comparado ao vídeo da Huracán Performante deste post, que não canta e apresenta uma aderência em curvas de baixa que não parece ser condizente com um R compound de rua. Só que, no melhor cenário em termos de performance, este seria o pneu que o Performante está usando.

Agora, compare com o som e a dinâmica dos slicks da Ferrari 599XX. Além do som, procure observar as velocidades mínimas nas curvas de baixa. O máximo que você irá ouvir é algo como no trecho Adenauer Forst (2:02). Em condições normais de tocada de pista, não se ouve praticamente nada.

Curiosamente, no outro on board oficial da Lamborghini, do Aventador LP 750-4 SV (abaixo), a marca declara que o modelo está calçando um jogo de P Zero Corsa – pneu inferior ao Trofeo R em termos de aderência lateral. Só que o comportamento e sonoridade deste on board também remete a slicks.

Respondendo a uma pergunta lá de cima: uma gaiola pode, sim, fazer um carro mais rápido, mesmo adicionando peso. Para isso acontecer, é preciso que haja uma cadeia de processos: pneus que gerem muito mais aderência que o projeto original, exigindo em decorrência amortecedores e molas com carga exponencialmente maiores (com mais aderência, a carroceria rola mais). Esta carga extra de suspensão é repassada diretamente à carroceria, que flete e torce com a sobrecarga, afetando diretamente a geometria da suspensão e, em decorrência, limitando a aderência lateral dos pneus. O roll cage assegura a estabilidade da geometria da suspensão, permitindo cargas agressivas de barras, molas e amortecedores.

 

Entre o preto e o branco, muito cinza

Vale lembrar que em 2013, o Pagani Huayra foi envolvido em uma polêmica quando cravou o recorde da pista do Top Gear, destroçando o tempo até mesmo do Ariel Atom V8. O site Jalopnik (olá, ex-colegas!) descobriu, por meio de fotos divulgadas pelas redes sociais do próprio Top Gear, que o Huayra usava slicks de competição do Zonda R, com sulcos feitos à mão (veja aqui a matéria). A Pagani deu uma resposta diplomática e pouco objetiva: no fundo, saiu pela tangente. Além do indicador de desgaste na banda de rodagem, característico de slicks, a própria metodologia de dimensões mostrada no flanco eliminava qualquer sombra de dúvida: 265/645 R19. O “645” é o diâmetro em milímetros: apenas pneus de competição usam este padrão – pneus de rua, incluindo semi-slicks, exibem em seu lugar a porcentagem da largura que representa a altura (flanco) do pneu.

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No caso do Huracán Performante, jamais chegaremos a conclusão alguma. A única possibilidade de sabermos a verdade é se alguém – de fora do staff da Lamborghini ou de seus parceiros – conseguiu fotografar os pneus no dia do teste.

Na matéria “A importância real de se obter o recorde de Nürburgring – e como este feito ficou tão relevante” deixamos claro uma série de fatores e brechas que abrem uma enorme área cinza sobre esses recordes de Nürburgring. Estes tempos de volta não são fiscalizados por nenhum órgão como a FIA e a ADAC, ficando totalmente dependente da ética das equipes de engenharia envolvidas no feito. Então, dissemos que não havia como se fiscalizar “painéis de carroceria de fibra de carbono, pneus encomendados à fabricante com compostos especiais, cargas de suspensão customizadas, motor preparado especialmente para a volta em Nürburgring, relação de diferencial mais curta, combustíveis de competição e reforços estruturais localizados”.

Os recordes de Nürburgring há muito tempo deixaram de ser ferramenta de desenvolvimento da engenharia para se transformar em uma das mais poderosas ferramentas da publicidade no meio dos esportivos. Virou uma corrida sem fiscalização em que cada marca pode se declarar vencedora tendo um vídeo para mostrar. Começamos assistindo ao vídeo de hoje na esperança de celebrar e comentar a dinâmica do carro que destruiu a já quase-impossível marca do Porsche 918 Spyder, mas terminamos receando pelo começo do fim da credibilidade das voltas no Nordschleife.