FlatOut!
Image default
História

Ícones dos anos 1990: Ferrari F50

Hoje o Ferrari F40 é uma unanimidade. Somando uma pitada suficiente de modernidade (a/c, injeção, tratabilidade, fibra de carbono e pneus de perfil baixo) com tudo de bom dos carros esporte de outrora, o F40 representa uma encruzilhada na história do automóvel, um ponto perfeito de inflexão onde o envolvimento na direção ainda não era anátema à modernidade.

Mas isso hoje; no seu lançamento muita gente o via como um caça níquel; o 288GTO de 1984 pode ter sido eclipsado pelo super-tecnológico Porsche 959, mas ao contrário da Porsche, que perdeu dinheiro em cada 959 vendido, a Ferrari lucrou bastante com seu novo GTO. E, pelo preço que eles atingiam no mercado de segunda-mão, parecia que poderia ter ganho ainda mais. O F40 parecia, para alguns, uma forma de ganhar um dinheiro fácil: apesar de mais potente e mais depenado em relação ao GTO, e baseado nele, era bem mais caro. O fato de que quase 1500 F40 foram feitos (contra 400 GTO), corrobora com esta teoria.

Mas ganhar dinheiro não é pecado, e se a Ferrari ganhou algum com o F40, foi merecido. Hoje vemos o quanto: é um carro tão sensacionalmente entusiasmante, e ainda assim dócil se assim se deseja, que muita gente o coloca no topo da pirâmide dos carros esporte. Como substituir algo assim?

Luca de Montezemolo, o novo presidente da Ferrari desde 1991, sabia como. A pessoa certa no lugar certo, Montezemolo foi o homem forte que preencheu o vácuo deixado pela morte do Commendattore, em 1988. Montezemolo aumentou o nível da engenharia e da qualidade da Ferrari, atendendo os anseios da imprensa então, que parecia ter perdido o amor pela marca. Exigia-se agora que os Ferrari fossem tão usáveis e práticos como um Honda, e carros como o 456GT e o 550 Maranello atendiam este desejo, enquanto os carros de motor central-traseiro, seriam os carros esporte de verdade da marca.

Para chamar a atenção a esta nova fase, e também ligar a marca de novo diretamente às competições, onde um novo esforço na F1 em breve a colocaria no topo novamente, tem a ideia de fazer um substituto do F40 que usasse o máximo de tecnologia da F1. Esporte era a real paixão de Montezemolo, e a Ferrari F1, seu maior amor. Queria mostrar a todos que os Ferrari ainda eram, no cerne, carros de corrida para as ruas, como no seu início.

O mundo do automóvel é cheio de contradições divertidas, e não poderia ser diferente na Ferrari. O novo F50 seria baseado em tecnologia de F1, mas era um carro de rua e nada mais que isso; o F40, que se desprezava por ser um carro espartano demais, um carro de corrida sem categoria para competir, era na verdade derivado de um carro de corrida de verdade, o 288GTO, criado para homologação no grupo B da FIA. Pode nunca ter corrido, mas era em seu cerne um carro de competição; o F50 seria no seu cerne um carro de rua como pedia a crítica e o público então, mas usando componentes de carro de corrida. Filosoficamente, não podiam ser mais distantes.

O F40 era feito apenas para o prazer ao volante tradicional, também, enquanto o F50 é criado como um artigo de luxo para milionários: muito mais seguro em comportamento, teto conversível, acabamento com mais cromados e decorações aparentes. Refletia uma mudança que hoje é bem mais evidente, em carros como os Bugatti: os compradores de carros deste tipo procuram apenas um artigo de luxo para adicionar a tantos outros que já tem; não precisam necessariamente serem divertidos ao volante. Apenas velozes, fáceis de dirigir, e seguros em comportamento. De novo, uma mudança filosófica importante. Não é a toa que no mercado de clássicos o F40 permaneça o mais procurado (e o mais valioso, como consequência).

Mas isto não quer dizer, claro, que o F50 não seja um carro fantástico. Como vamos ver hoje, é também o seu momento próprio e único na história do automóvel, uma obra-prima de engenharia italiana, um carro que não falha em gerar descargas de adrenalina capazes de acordar até defuntos. Afinal de contas, olhando somente dados e papel, parece mais interessante que o F40: um V12 aspirado de alto giro, câmbio ainda manual tradicional, mais potência.

O F50 na verdade foi mais longe em algo que muitos imaginaram, mas poucos fizeram; nem mesmo Murray com seu carro de posição central de dirigir (e nomeado, coincidentemente, F1) tentou, focado como é em fazer carros usáveis: O F50 é o mais próximo que chegamos de uma Fórmula 1 para as ruas. Se o F40 é a última expressão da antiga Ferrari, o F50 é o primeiro da moderna.  F40 é Enzo, e F50, Montezemolo.

 

Um motor de F1

Para contarmos propriamente a história do motor que acabou no F50, temos que voltar um pouco mais no tempo, para sua origem conceitual. Que ocorre em 1986, quando, sabendo que em breve a Fórmula 1 reverteria para motores de 3,5 litros sem turbo, a Ferrari começa a trabalhar em seu novo motor para a categoria.

F1 para as ruas: F130B

A marca diz que seus estudos indicavam que a melhor opção era um V12. O que prova novamente que “estudos indicam” o que quer que você queira que eles indiquem: lógico que a oportunidade pedia um V12. Projetado por Giorgio Quattrini e o francês ex-Renault Jean-Jaques His, esta volta ao V12 tinha agora 65° entre bancadas, e não os usuais 60°, para dar mais espaço para o desenho da admissão e dos cabeçotes.

Outra grande novidade era o bloco, não em alumínio, mas sim em ferro fundido! Com ajuda da Teksid, uma subsidiária da Fiat com anos de pesquisa em fundição, foi criado um método de fundir a liga especial de ferro fundido em paredes finíssimas, o que dava muito mais rigidez ao bloco, e pouca desvantagem em peso. A técnica foi inaugurada nos V6 da era turbo, e fora usada também pela Honda. Media 84 x 52,8 mm, para um total de 3498 cm3.

Outra esquisitice, inaugurada por Forghieri no passado para reduzir atrito, era o uso de apenas quatro mancais, ao invés de sete. Com comandos acionados por correia dentada, e versões de quatro e cinco válvulas por cilindro, o este motor, chamado tipo 035, dava inicialmente 600 cv, girava até 13000 rpm, e pesava 141 kg. Ganhou sua primeira prova, o GP do Brasil de 1989, mas o resto da temporada foi decepcionante. Ganha uma nova versão 036 em 1990, que chega a 680 cv a 12750 rpm. Em seguida é extensamente redesenhado, se tornando o 037, o primeiro motor aspirado a chagar acima de 200 cv/litro.

Em 1992, a Ferrari dizia que este motor (agora já na designação tipo 040), com taxa de 13,3:1, já dava nada menos que 740 cv a 15000 rpm, agora com fechamento pneumático das válvulas, e 88 x 47,9 mm, para um total de 3499 cm3. E foi este motor que a Ferrari usava como base para o seu “F1 para as ruas”, o F50.

Chamado de F130B, tinha um bloco diferente, mas fortemente baseado na tecnologia de corrida: a mesma distância de 94mm entre os centros de cilindro, a mesma tecnologia de fundição em FoFo e paredes finas, 65° entre bancadas. Os cabeçotes eram os mesmos da F1, apenas sem o fechamento pneumático: cinco válvulas por cilindro todas inclinadas, fazendo uma câmara hemisférica, o que pedia lóbulos cônicos nos comandos. As válvulas de admissão (três) mediam 26,7 mm e as de exaustão (duas), 28,6 mm. As bielas eram forjadas, Pankl, em titânio, e mediam 126 mm de comprimento, e os pistões eram Mahle forjados em alumínio. Com 85 x 69 mm, dava um total de 4699 cm3.

Os comandos eram acionados por correntes duplas, uma para cada bancada, e a admissão tinha doze borboletas individuais, e um injetor debaixo de cada uma delas. Capaz de girar até 10000 rpm, o V12 do F50 dava 520 cv a 8500 rpm, com taxa de 11,3:1. O torque era de 48 mkgf a 6500 rpm, e o motor completo pesava apenas 210 kg.

 

333SP

Mas antes de chegar ás ruas no F50, este motor encontra um lugar especial só seu em competições: a volta da Ferrari às competições de carros esporte. Tudo porque com a morte de Enzo em 1988, Piero Lardi Ferrari se tornava o  herdeiro da parte do comendador na empresa, e com isso, ganhava também algum poder e influência. Piero, antes o “filho bastardo” com a amante Lina Lardi, era amigo de Gianpiero Moretti, o fundador da fábrica de volantes Momo, e ávido “gentleman driver”( um piloto que banca sua participação em corridas profissionais). Moretti ansiava a volta da Ferrari às provas de carro esporte, e como tinha o ouvido de Piero, faz acontecer.

O resultado é o 333SP: um carro com chassi e motor desenhados e fornecidos pela Ferrari, e o resto pela Dallara. Usava, como pedia o regulamento da IMSA americana, um motor baseado em carro de rua: o da F50. Sim, ela ainda não tinha sido lançada, mas enfim…

Com o curso reduzido para 58,7mm, para ficar dentro do limite da categoria (4 litros), taxa elevada para 13:1, válvulas maiores, e sistema de cárter seco tirado direto do motor de F1, dava 675 cv a 11000 rpm. O 333SP (333 era a capacidade de cada cilindro, uma piscadela ao passado da marca, e SP, Spider Posteriore), apesar de ser um filho meio bastardo e esquecido como Piero, teve muito sucesso: o longo de sua carreira conseguiu 56 vitórias, 69 poles, cinco campeonatos de pilotos e três de construtores.

 

O Ferrari F50

Enquanto isso, finalmente na segunda metade de 1995, aparecia o Ferrari F50. Era um carro que, como seu motor, simulava muito de perto a tecnologia corrente da F1 de então. É baseado em um monocoque de fibra de carbono, que segura a suspensão e direção na frente, forma o compartimento dos passageiros e a cavidade onde vai a célula de combustível, e só. Atrás da parede corta-fogo, não há mais estrutura: o motor e o câmbio, aparafusados a ela, fazem esta função. O carro, portanto, como um F1, é naturalmente aberto: um para-brisa e teto removível concessões ao uso em rua apenas. Também não há espaço para malas: se deseja viajar, mande o mordomo adiante com o Range-Rover cheio de malas.

 

E mordomo deve ser algo natural para um dono de F50: custava nada menos que 475 mil dólares, a 25 anos atrás, algo em torno de oitocentos mil dólares em dinheiro de hoje. Mas o que você recebia por seu dinheiro valia a pena: um artigo de luxo, no topo da tecnologia, e criado para o prazer à direção. E exclusivo: apenas 349 seriam fabricados, mais de quatro vezes menos que o F40.

A suspensão por exemplo, era de desenho perfeito teoricamente. Longos braços em A, pivotados em buchas sólidas, com mola/amortecedores acionados por alavancas como na F1. Atrás, eram montados no transeixo manual de seis velocidades. Freios Brembo ventilados nas quatro rodas, enormes (14 pol na frente, 13,2 pol atrás), mas com algumas coisas legais vistas de hoje: os discos de freio são de ferro fundido (a F1 já usava carbono, mas a tecnologia ainda não era dominada para uso nas ruas), e não há ABS, e nem muito mesmo assistência alguma. A direção, também, era por pinhão e cremalheira com relação rápida de 14:1, sem assistência alguma. O volante, um belíssimo Momo, sem nenhum deselegante airbag para atrapalhar.

Os cubos de roda eram de titânio, e seguravam rodas fundidas em magnésio de 18 polegadas, calçando pneus especialmente desenvolvidos para o carro, chamados Goodyear Fiorano, na medida 245/35 R18 na frente, e 335/30 R18 atrás.

O carro tinha ar condicionado, mas nenhum radio ou sistema de navegação: o sistema de entretenimento estava, afinal de contas, aparafusado às costas do motorista. Pesava, em ordem de marcha, apenas 1230 kg. O carro foi, é claro, extremamente bem recebido pela imprensa internacional. O que mais espantava é a facilidade e tranquilidade para dirigi-lo: o F40, com sua patada característica dos turbo, era bem mais nervoso e exigia mais habilidade no limite. O F50, com a progressividade aspirada, era bem mais tranquilo.

Também ajudava um ajuste de suspensão extremamente seguro, provocando inclusive subesterço como a principal característica em curvas fechadas, o que fez muita gente estranhar: um carro com todo peso atrás não devia se comportar assim. Mas a Ferrari de 1995 já pensava nos clientes de artigos de luxo: o comportamento benigno e tranquilo é o que permeia a experiência.

Mas de qualquer forma era um carro incrivelmente interessante: a pedaleira, um belíssimo conjunto de 3 pedais fabricados em alumínio, era também perfeito, pivotado no assoalho e próximos um do outro. Reporta-se que todos os comandos são leves, mesmo a direção sem assistência, mas o freio, sem booster, é firme: ótimo para fazer o punta-tacco com a pedaleira perfeita. Ajuda também o famoso câmbio manual, com a belíssima alavanca fina cromada com a bola em cima, e a grelha metálica embaixo. Junte isso ao volante Momo comandando a precisa e rápida direção sem filtro, e se tem um verdadeiro Nirvana.

Ainda mais empurrado pelo V12 de corrida amansado lá atrás. Esticar aquele motor acima dos 9000 rpm em cada marcha deve ser realmente uma experiência sem par. O desempenho ainda é impressionante, mesmo 25 anos depois: a Road & Track, sempre conservadora em seus números, mediu 0-96 km/h em 3,6 segundos, e estimou final em 305 km/h, apesar da Ferrari declarar 325 km/h.

Era, no frigir dos ovos, um carro bem mais domesticado que a besta-fera adorável chamada F40. Benigno, tranquilo, sem nunca te dar susto, era um companheiro, não algo a se domar, onde o piloto precisa igualar sua fúria e vontade à do carro. Por isso, e só por isso, por vir em seguida a um dos maiores carros esporte da história, sua fama é menor que a dele. Também muito de sua fama foi apagada por outro contemporâneo famoso: o McLaren F1. Mas certamente merece seu lugar no panteão dos grandes. Em isolamento, hoje, parece algo realmente incrível e único. Se fosse lançado hoje, colocaríamos ela num pedestal acima de todos, maravilhados com uma configuração que simplesmente não existe mais. O que é algo, definitivamente, para se pensar.