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Car Culture

Ícones dos anos 2000: Alfa Romeo 8C Competizione

Toda vez que uma empresa diz que vai fazer uma homenagem ao passado, e gente deveria tomar a afirmação com certa reserva. Pois normalmente as empresas nunca conseguem repetir o que fez o carro original grande e memorável a ponto de ser “recriado”. A maioria das vezes a recriação é estética somente, e os componentes mecânicos, reutilizados de carros quaisquer já existentes, para segurar os custos de projeto.

Filosoficamente, todo carro recriado é tudo menos o que o tornou famoso. O Mini original é famoso, bem, por ser “mini”. Pequeno, minúsculo por fora, mas ainda assim enorme por dentro e tão útil quanto um carro grande. O atual é um carro esporte de tração dianteira que é grande por fora, pequeno por dentro, mas decorado como se fosse a visão psicodélica-futurista dos anos 1960. E esse é uma das recriações mais bem-sucedidas.

Não entenda mal; algumas delas são até legais como automóvel. Mas particularmente eu não consigo passar por este fato e analisá-los friamente. Há gente bonita fazendo cosplay de personagens famosos de quadrinhos e cinema; mas ninguém deixa de perceber que é imitação. Por algum motivo, em carros, a imitação é mais caricatura que cosplay: exagera detalhes característicos do original a porto de hipertrofia. Não dá para não perceber.

O Alfa Romeo 8C Competizione não é recriação de nenhum carro específico. Mas é, segundo a Alfa Romeo na sua época, uma homenagem ao passado da empresa. O nome 8C é uma lembrança da era de ouro dos 6C e 8C de Jano, quando a Alfa Romeo era o que hoje é a Ferrari. Ou pelo menos, o que era a imagem que a Ferrari criou nos anos 1950, de criadora de carros de corrida, que podiam também ser vendidos para as ruas. E o desenho, embora calçado nos 33 Stradale dos anos 1960, era diferente, para um carro de motor dianteiro.

É um carro criado para ser o flagship da empresa, algo excepcional para lembrar a todos que a empresa ainda estava viva, e queria um futuro maior para si. Algo que tentara antes em 1989 com o SZ, com algum sucesso, e repetia aqui então. Afinal de contas, em 1987 a Fiat comprou a Alfa Romeo, e o SZ era sua forma de dizer que a “Alfa está de volta”.

Nos anos 2000, porém, depois da explosão de investimento da Fiat nos anos 1990, a marca estava de novo com problemas, essencialmente falida se não fosse parte da Fiat. Com Maserati, Lancia, e acima deles Maserati e Ferrari, parecia então, como parece agora, muita coisa para um balaio só.

Mas também era um balaio cheio com muita coisa disponível para usar. E não há algo mais comum na indústria que repetição de algo que deu certo; se o SZ tinha sido um sucesso em chamar atenção para a Alfa, dez anos antes, por que motivo algo parecido não seria agora?

Bom; o SZ era um Alfa Romeo; um cupê exótico com desenho novo, mas baseado no sedã 75. Deu certo por o 75 ser especial para um sedã de alta produção: transeixo traseiro, motor dianteiro V6 girador. Uma base boa para desenvolvimento de um carro esporte. Em 2003, já não existia mais Alfa Romeo de tração dianteira. O novo cupê especial de alto desempenho e preço seria baseado, então, num Maserati.

Neste ponto de sua história a Alfa Romeo está abaixo da Maserati em preço e sofisticação; um Maserati com roupa Alfa Romeo será um grande Alfa Romeo, pensou a direção da Fiat.

O Maserati

A Maserati que conhecemos hoje apareceu depois que Alejandro De Tomaso vendeu a empresa para a Fiat em 1993. Em 1997, a empresa é movida abaixo da Ferrari no organograma da Fiat. Filosoficamente um ponto importante: tradicionalmente eram concorrentes, mas agora, e desde então, Maserati se tornou uma “Ferrari júnior”. Sim, a possibilidade real de competir com Ferrari esvaia-se desde os anos 1980 com a era ‘Biturbo”, mas passar a ficar embaixo dela trava até possibilidade futura disso. Mesmo hoje, separada dela, a Maserati não consegue mais fugir deste estigma. As famílias Orsi e Maserati devem ter passado uma semana chorando.

Mas o fato é que em 1998 aparece um novo cupê: o 3200 GT. Combinava o V8 biturbo do Shamal com um novo cupê de motor dianteiro que seria o principal produto da empresa até hoje, chamado de Granturismo e Gran Cabrio. Não, o carro de hoje nada tem a ver com o de 1998; mas é ainda um cupê GT de motor dianteiro.

Em 2001, o 3200 GT vira 4200 GT justamente pela adoção de um motor importante aqui para a nossa história: o V8 Ferrari de código F136. Criado para ser usado em Maseratis com virabrequim crossplane, e virabrequim plano na Ferrari, sempre aspirado, é uma família que culminaria no Ferrari 458 speciale com 605 cv.

O motor é um V8 de alumínio a 90°, DOHC/32 válvulas com variador de fase nos comandos. Na esteia em 2001 no 4200 GT, tinha 390 cv a partir de 4,2 litros. Mas o carro que seria transformado em 8C Competizione não é o 4200 GT; é o novo coupé Maserati, lançado em 2007, e que ficou em produção até 2019.

Criatividade para nomear carros não era o forte da nova Maserati; o 4200 GT oficialmente se chama Maserati Coupé. Chamar um coupé Maserati de Maserati Coupé é pouco criativo, então resolveram mudar o nome na nova geração de 2007. Agora este sensacional GT se chamava… Maserati GranTurismo.

Mas enfim. Era de qualquer forma um caro sofisticadíssimo: suspensões independentes nas quatro rodas por meio de duplo A sobreposto de alumínio, transeixo traseiro, enormes freios a disco. Nunca teve câmbio manual, porém; primeiro um automático ZF de seis marchas, depois um manual automatizado da Graziano. Media 4,9 metros num entre-eixos de 2,94 metros, e pesava 1880 kg.

Alfa Romeo 8C Competizione

Pois bem. O Alfa Romeo 8C Competizione seria então nada mais nada menos que um Maserati GranTurismo, mas com carroceria Alfa Romeo. Nem mais, nem menos. Um grande e belo carro seria, mas um que parecia estranho. Hoje nos acostumamos com isso: o novo 33 Stradale é um Maserati MC20 in alfa drag. Mas então, tal promiscuidade era inédita. Tenho que confessar ter colocado um pouco de lenha nessa fogueira na época: batizei-o de 8C Enganazione.

Mas não era exatamente um Maserati, apesar de levar toda sua mecânica e ser produzido em Modena, na fábrica com um tridente em cima. Era um carro menor: o entre-eixos foi reduzido para 2.646 mm, e o comprimento total, para 4.381 mm. O chassi era exclusivo, portanto, tubular como o do Maserati, fabricado pela empresa italiana ITCA.

Junte isso o fato de que a carroceria, produzida pelo ATR Group, era toda em fibra de carbono, e se tem uma considerável redução de peso. O 8C pesava 1.585 kg, quase 300 kg a menos que o Maserati. Mesmo o posterior 8C Spyder, conversível com teto de lona, pesava bem razoáveis 1.675 kg.

O motor era o do Maserati GranTurismo S, a versão mais atualizada do V8 Ferrari/Maserati.  Tinha agora 4,7 litros (4.691 cm³), e mesmo mais simples que os Ferrari com cárter úmido e virabrequim de dois planos, e ser aspirado, era uma fera: 450 cv a 7.000 rpm e um torque máximo de 49 mkgf a 4.750 rpm. Todas as versões deste motor são incríveis, e esta não deixa de ser:  80% do torque, coisa de 40 mkgf, está disponível já a 2.500 rpm, e o motor só corta a injeção a 7600 rpm.

A transmissão é o mesmo transeixo Graziano desenvolvido para a Ferrari F430, aqui apenas separado do motor lá na frente. Tinha seis velocidades e era um câmbio manual normal, automatizado, comandado por borboletas no volante (mas presas na coluna de direção e não no volante), já que isso é antes da popularização dos câmbio DCT. Mas não espere um Easytronic aqui: a caríssima caixa Graziano pode trocar de marcha em 175 milissegundos quando o modo Sport é selecionado. O diferencial traseiro é autoblocante.

Os pneus são enormes, em aro de 20 polegadas, e especialmente desenvolvidos para o carro: 245/35 na dianteira e 285/35 na traseira. Os freios são unidades de carbono-cerâmica Brembo.

A revista Road & Track chamou esses freios de “fenomenais”. Mas a resposta da imprensa internacional seria sempre marcada pela opinião do Orangotango-Rei, Mister Jeremy Clarkson himself. Na avaliação para o Top Gear, então em seu auge, Clarkson adorou o carro, mas como arte: belo a ponto de dor física, mas não tinha uso real, sendo excepcionalmente ruim de curva, segundo ele.

Suspensão mole (“feita de velhos saquinhos de chá usados”), transmissão ruim, pouco espaço entre pedais, pouco espaço para malas, foram algumas das reclamações de Clarkson; todas ecoadas pelo resto da imprensa então. Mas para dar crédito a ele, disse também que não ligava para nada disso; que comprar ele por suas habilidades dinâmicas era o mesmo que “assistir pornografia por causa da história”. Que era arte.

Muita gente desde então diz que não era bem assim; que a suspensão suave e o câmbio menos rápido não incomodavam no mundo real, fora das pistas. Ou que não eram tão importnte quanto o desempenho, o motor, e a beleza do veículo, o que, no final das contas, ecoa Jeeza. E veloz ele realmente era: a Alfa Romeo dizia final de 292 km/h e 0-100 km/h em 4,2 segundos.

O carro apresentado como conceito em 2003; o anúncio da produção limitada foi feito durante o Salão de Paris de 2006, e na ocasião a Alfa Romeo recebeu mais de 1.400 encomendas ali mesmo. No fim das contas se decidiu por 500 exemplares a um valor de € 130.000 cada. Uma Ferrari F430 custava, na época, € 170.000.

A versão 8C Spider foi confirmada no fim de 2007, com teto de tecido de duas camadas e acionamento elétrico. Nela, a estrutura do para-brisa é feita de fibra de carbono para tentar manter uma distribuição de peso de 50/50; os freios são unidades de carbono-cerâmica Brembo, para reduzir peso. A Alfa Romeo afirma que a velocidade máxima do 8C Spider é de 290 km/h, um pouco mais lento que a versão cupê.

O plano era fazer mais 500 unidades, a € 165.000 cada, mas o carro foi lançado depois do crash de 2008; no fim, apenas 329 unidades encontraram donos. No fim, o 8C fez algo de importante: trouxe a Alfa Romeo de volta aos EUA, e às manchetes mundo afora; o próximo carro da marca, o menor mais ainda exótico 4C de motor central, pretendia continuar o embalo.

Mas sua resposta não foi boa suficiente na imprensa; história para outro dia. O que interessa aqui é que no fim, o 8C foi arauto de… nada. A Alfa Romeo voltaria de verdade em 2015 com o Giulia, mas ainda, até hoje, luta para se manter viva.