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Car Culture

Ícones dos anos 2000: Saleen S7

Uma característica interessante dos americanos costumava ser o pragmatismo. Seus carros esporte, por exemplo, costumavam ser sempre sobre números de desempenho, e preço. Olhe a ficha técnica e o preço e ache um carro melhor, segundo eles: um Corvette anda mais que um 911 pela metade do preço? Por que raios alguém compraria um 911?

Nuance e experiência ao volante eram coisas que escapavam a eles. Na verdade, mais que isso: veja o interior do carro que é tema da matéria de hoje, o Saleen S7: parece algo feito com peças compradas na loja de acessórios de esquina. Compare isso com, sei lá, um Alfa Romeo dos anos 1970. Menos que isso: compare com um Mazda RX7 que seja. Quando performance é só o que importa, esse tipo de coisa é deixada solenemente de lado. Goste ou não desta atitude a respeito de carros, temos que respeitar a filosofia no mínimo. Pelo menos, não é cópia do vizinho: é uma forma de pensar. Não gostou? Paciência…

O Saleen S7 nasceu da cabeça de um piloto de corrida aposentado, Steve Saleen. Uma coisa que não é muito comentada por aí, mas me parece claro como água, é como piloto profissional acaba pensando a respeito de automóveis em termos de uma ferramenta. Sim, ferramenta: assim como sua esposa, que quer apenas conforto, espaço e o desenho externo SUV para usar o carro como uma ferramenta, o piloto só quer saber de resultado e mais nada. A parte artística lhe escapa e não lhe interessa: é “bobagem”. É mais rápido, então claramente é melhor.

1973: primeira vitória em pista de Steve Saleen. De Mustang, claro.

Aqui uma rápida divagada para não perder o costume: é por isso que pilotos famosos não fazem bons avaliadores de automóveis (com algumas exceções para comprovar regra, claro). Tem o respaldo de sua habilidade ao volante e fama: as pessoas querem saber o que ele acha. Mas nunca se tornam avaliadores populares, e o motivo, acredito, seja esse. Claro que é uma grande generalização que faço falando isso: tem gente de todo tipo na profissão de piloto, e nem todos são assim. Mas geralmente, principalmente nos pilotos de grande sucesso, acredito ser uma generalização bem válida. E antes que alguém pense isso, não digo isso para puxar brasa para a minha sardinha também: é uma sardinha bem fuleira a minha, e não merece brasa nenhuma, a miserável. Falo dos grandes avaliadores mesmo; tirando um Paul Frére e um Phil Hill, a maioria não foi piloto profissional.

O primeiro Mustang Saleen, 1985

Mas enfim. Voltando ao que interessa, Saleen nos anos 1980 era já um pai de família careca, de óculos e bigode: estava claro que não seria o próximo Senna, e resolve fazer outra coisa da vida. Como tinha décadas de experiência em competição com carros americanos, principalmente Mustangs, resolve aplicar este know-how fazendo Mustangs especiais. Em 1985 aparece o primeiro Saleen Mustang, e daí em diante, grande sucesso na empreitada.

Avancemos agora para os anos 1990: Saleen cria oito carros de corrida; tinham aparência de Mustang, mas só os vidros vinham dele: todo o resto, do chassi tubular à carroceria em fibra de carbono, tinha sido criada por Saleen. Ele anunciou que faria uma versão de rua para ele, o Saleen Street SR, mas nunca chegou a fazer isso. Na verdade, pensou: se eu não usei nada de Mustang quase nesse carro, por que não ir adiante e fazer um carro inteiro, do zero? Nascia o “projeto Molly”, nomeado em homenagem a sua filha, que culminaria no S7.

O Street SR

E como um sujeito com uma oficina de preparação e construção artesanal no sul da Califórnia faz um carro validado, legal, e com VIN próprio nos anos 2000? Engraçado você perguntar; ia mesmo explicar isso.


O Saleen S7

O plano de Saleen era tudo menos humilde. Basicamente criar o carro mais veloz do mundo, e cobrar caro para ele; planejando direito, lucro era possível, apesar de seu preço alto. A McLaren tinha provado que este conceito era possível, ainda que a empresa acabasse vendendo menos carros que planejara. A nova Bugatti faria isso de novo com o Veyron em 2005. Saleen estava entre os dois, mostrando seu primeiro carro em 2000.

Outra coisa que Saleen sabia bem era trabalhar com fornecedores. Versado na prática da indústria de massa, fazia contratos com especialistas como Monroe em amortecedores, e por aí adiante; como na indústria de massa, Saleen especifica os parâmetros de performance, peso e preço; os especialistas desenham os componentes.

Steve Saleen conceitua o esquema básico do carro; pretendia desempenho de Mclaren F1, mas usando uma engenharia mais simples, tornando o carro mais barato para se construir e de se manter. Por isso o chassi não era em carbono, mas aço mesmo: uma estrutura tubular em aço (4130), com alguns componentes em honeycomb de alumínio para reforço. Mas os painéis externos de carroceria seriam todos em fibra de carbono, única parte do carro fabricada fora dos EUA, pois a fibra inglesa era mais leve, mais barata, e de melhor qualidade.

O carro era para ser um supercarro totalmente americano, a primeira vez que isso aconteceu de verdade; o Vector dos anos 1970 nunca aconteceu de verdade; e os Mosler ainda muito esquisitos e específicos para serem colocados nesta categoria; só o posterior MT900 foi um supercarro de verdade, mas também não de muito sucesso.

Embora o S7 tenha sido concebido e estilizado nos EUA, grande parte do seu desenvolvimento, principalmente o chassi, foi realizado também no Reino Unido, pela Ray Mallock Limited, uma empresa especializada em carros de competição. À primeira vista, e especialmente quando visto de frente, o S7 tinha fortes conotações do McLaren F1; no interior, o banco do condutor foi deslocado para o centro do carro para uma distribuição de peso ideal, embora não fosse montado centralmente.

Para motor, Saleen de novo mergulhou em tecnologia artesanal de competição. O motor foi criado pela Saleen um motor próprio, mas basicamente, é um Ford V8 351 Windsor. Sim: não há uma peça sequer comum com o motor Ford, apenas a arquitetura e desenho básico.

O bloco é em alumínio, e todos os componentes internos são exclusivos. O cabeçote era derivado do desenho do 351 Cleveland, com válvulas em ângulo semi-Hemi, mas também é desenho exclusivo, e em alumínio. Saleen dizia que a arquitetura Ford fazia economizar em componentes como juntas de cabeçote, e poder usar a tecnologia de preparação aftermarket de seu país em bombas de água e coisas do gênero.

Deslocando sete litros (104,8 x 101,6 mm; 7008 cm³), aspirado e OHV, com injeção eletrônica multiponto, era ainda assim compacto, e com cárter seco, e montado muito baixo no carro. A tolerância de construção era mínima para este motor, e tudo do melhor era usado: as sedes de válvula, por exemplo, eram de berílio. Era também uma fera: 558 cv a 5900 rpm, e 72,6 mkgf a 4000 rpm. O limitador cortava a 6500 rpm, dando uma faixa bem grande de uso, e o transeixo traseiro, fabricado por um fornecedor no Texas, era manual de seis marchas.

Para manter o motor baixo, o volante/embreagem era de dimensões pequenas; o câmbio era pesado nos engates e a embreagem, segundo a Road & Tarck, “é pesada, e a janela de engate pequena e difícil de operar sem tranco”. As suspensões eram também de tecnologia de competição: duplo A sobreposto nas quatro rodas. Mas simples em execução também: feita toda em tubos de aço soldado, apenas cubos de roda de alumínio forjado exigiam ferramental para produção. A direção era pinhão e cremalheira com assistência hidráulica, com a bomba acionada por um motor elétrico, e não pelo motor.

O carro era extremamente baixo, largo e comprido; media 4.775 mm em um entre-eixos de 2700 mm, e quase dois metros de largura. Ainda assim, e com pneus e rodas 275/30 R19 e 345/25 R20 (frente e trás), e enormes discos de freio ventilados de 15 e 14 polegadas, pesava apenas 1300 kg em ordem de marcha.

Com apenas 1300 kg e 558 cv de um V8 de sete litros aspirado, e câmbio manual, o desempenho, claro, era avassalador. Disse a R&T: “se acessa toda a potência do motor numa reta grande o suficiente, e rapidamente se passa dos 265 km/h, velocidade onde os 1300 kg do carro são dobrados pelo downforce aerodinâmico da carroceria. E, incrível, tem mais força se você cravar mais o pé. Não há motivos para duvidar da velocidade final declarada de 320 km/h. O som também é completamente inebriante, com 7,0 litros de V-8 de alumínio fazendo a transição de um ruído rouco para um grito maníaco a cada passeio até a linha vermelha de 6.500 rpm. Esse treco se move de verdade, e faz curva como se travada em um slot à altas velocidades.”

O desempenho medido era o maior já obtido pela revista até ali, junho de 2003. O 0-96 km/h se deu em 3,3 segundos, a caminho de um quarto de milha em 11,8 segundos. “A embreagem pesada do Saleen S7 requer alguma familiarização. Coloque muito acelerador e as rodas traseiras lutarão pela tração; muito pouco pedal e o carro morre. Uma vez posto em movimento, o S7 acelera com imensa potência.” Disse a revista de como esses números foram atingidos. Estimou a velocidade máxima em 354 km/h.

Twin Turbo!

O carro custava nos EUA em 2003 a bagatela de US$ 395.000. Nada barato, claro, mas ainda assim, menos da metade do preço do então descontinuado McLaren F1. Um McLaren F1 de pobre? Maldade, gente!

Mas não foi só isso. Como bom americano, em certo ponto Steve Saleen achou que isso aí não era suficiente. Em 2005, aparece o S7 Twin-Turbo. O motor recebeu uma dupla de turbos Garrett, soprando 5,5 psi (0,38 bar) admissão abaixo; o resultado foi 760 cv a 6300 rpm e 95 mkgf a 4800 rpm. A empresa dizia que agora o 0-96 km/h era em 2,7 segundos, e o quarto de milha em 10 segundos. A velocidade máxima? 399 km/h.

Twin-Turbo!

Existiu também uma versão de corrida, o S7R. Correram no FIA GT, ALMS, Grand-Am, European Le Mans e nas 24 horas de Le Mans Series, e tiveram uma carreira razoável, com  27 voltas mais rápidas, 29 pole positions e vários pódios, incluindo 19 vitórias. Mas esse sucesso nas pistas não se traduziu em vendas extras para o S7 de rua, que permaneceu cada vez mais raro.

S7 com Competition Package

No ano seguinte, o “Competition Package” tinha redondos 1000 cv, além de mudanças na suspensão, um difusor dianteiro e traseiro revisado e um pacote aerodinâmico opcional com spoilers dianteiros e traseiros de fibra de carbono. Mas no fim, em 2009, a produção cessa com menos de 100 veículos construídos. Uma história parecidíssima com a da McLaren F1, neste ponto. O carro seria ressucitado brevemente em 2017 com S7 LM, com 1300 cv ou 1500 cv opcionais; mas apenas sete carros foram feitos.

S7 LM: poucos existem

Um carro deveras interessante, mas que perdeu a atual leva de bilionários orientais que compram tudo desse tipo e os guardam em garagens gigantescas ar-condicionadas. Um supercarro largamente esquecido hoje em dia, mas realmente interessante. Quase esquecido hoje, mas ainda assim, definitivamente um ícone da década de 2000.