Há 50 anos, 400.000 pessoas se reuniram em uma fazenda ao norte da cidade de Nova York para “três dias de paz, amor e música” – era este o lema do Woodstock, que aconteceu entre os dias 15 e 17 de agosto de 1969. O Woodstock não foi o primeiro grande festival de música realizado nos EUA (esta honra cabe ao Magic Mountain Music Festival, realizado na Califórnia dois anos antes), mas certamente é o mais conhecido – e certamente foi o evento que pavimentou o caminho para eventos como o Lollapalooza, o Coachella e o Burning Man, só para citar alguns.
Idealizado pelos produtores musicais Michael Lang e Artie Kornfield, o Woodstock aconteceu, na verdade, em uma propriedade a 70 km da cidade de Woodstock, e é considerado um marco na história da contracultura dos anos 60. Alguns dos maiores nomes do rock se apresentaram ao longo daqueles três dias, incluindo Joe Cocker, Santana, Grateful Dead, Creedence Clearwater Revival, Janis Joplin, The Who, The Band, Jimi Hendrix e Crosby, Stills, Nash & Young, em shows que se tornaram antológicos – como a apresentação de Jimi Hendrix e sua versão psicodélica do hino nacional dos Estados Unidos.
Se você já está se perguntando o que isto tem a ver com carros, fique tranquilo – já vamos chegar lá. O caso é que é preciso entender o que foi o Woodstock antes disto. Estamos falando de um dos mais emblemáticos eventos da década de 1960 – uma celebração ao modo de vida alternativo que pode ter sua origem traçada nos anos 1950, com o movimento beat liderado pelos escritores Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William S. Burroughs.
A chamada Geração Beat começou com um movimento literário anti-establishment, cujos elementos centrais eram a rejeição das normas vigentes na literatura, a busca por uma conexão espiritual consigo mesmo, a exploração de culturas e religiões de outras partes do mundo e a rejeição pelo materialismo e a exposição da frágil e imperfeita condição humana. Mas, acima de tudo, liberdade e autoconhecimento. Veio dos beats o uso do termo hip, que era usado para se referir a algo que estava em evidência no momento – e deu origem à palavra hippie.
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Também eram traços muito fortes da geração beat, porém, a experiência com substâncias psicoativas, em especial maconha, anfetaminas e LSD, e a exploração da sexualidade. Inspirados pelos beats, os jovens da década de 1960 começaram a procurar formas de se conectar consigo mesmos e a seus iguais por meio da literatura, da música e das drogas. Era uma forma de protestar contra o que era considerado nocivo na cultura mainstream da época e contra a ilusão do American Dream. Alguns chegaram a formar comunidades que, na contramão do que era visto como “natural” nos Estados Unidos, recusavam-se a viver em busca do sucesso e da prosperidade financeira.
Com o envolvimento dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã, o movimento hippie também tomou caráter político, com jovens se recusando a atender o chamado para servir ao exército e realizando protestos por todos os EUA.
No meio deste bolo cultural estava a Volkswagen Type 2 – nossa conhecida Kombi, que os americanos chamam de VW Bus. Não é difícil entender como um carro pode se tornar o símbolo de uma cultura anti-consumo – ou como um veículo nefastamente associado ao regime nazista alemão pode ter caído nas graças da geração paz-e-amor. A Kombi era claramente não-americana, com suas linhas simples e simpáticas, seu perfil de pão-de-forma, seu motor boxer arrefecido a ar na traseira e seus parcos 30 cv. Ela era vista como o oposto das banheiras norte-americanas – custava pouco, bebia pouco, e exigia pouco em termos de manutenção. O Fusca também era simpático, barato e econômico, mas a Kombi tinha uma vantagem: ela era grande o bastante para levar uma banda toda e seus instrumentos, ou mesmo para morar.
Hoje em dia, o termo hippie van é usado para falar das Kombi pintadas com temas psicodélicos que se tornaram comuns na década de 1960 – e inspiraram até mesmo a Disney a colocar uma Kombi hippie nos filmes da série “Carros”.
A ideia de um festival em uma fazenda, com música rolando por três dias e diversas possibilidades de expandir a mente soava absurdamente atrativa aos hippies. Não foi à toa que o público total foi pelo menos oito vezes maior que o previsto – os organizadores estimavam que não mais que 50.000 pessoas assistiriam aos shows. Engarrafamentos quilométricos tomaram as estradas ao redor da fazenda na cidade de Bethel, onde ficava a fazenda do Woodstock, e foi declarado estado de emergência. Os fazendeiros dos arredores processaram os organizadores do festival, e a cobertura da mídia enfatizava os aspectos negativos do evento – algo que foi contornado, em parte, pelos próprios frequentadores, que ligavam para suas famílias para deixar claro que as coisas não estavam tão feias como a TV e os jornais mostravam.
A grande mídia, aliás, não cobriu de perto o festival – o que se tinha eram relatos de quem estava lá e de quem não queria que o festival estivesse lá. Contudo, alguns fotógrafos documentaram o Woodstock e produziram imagens emblemáticas. Como a foto do casal abraçado, que se tornou a capa da trilha sonora do filme produzido sobre o festival.
Outra foto icônica foi feita por um fotógrafo da Rolling Stone: uma Kombi com motivos psicodélicos pintados na carroceria e duas pessoas sentadas no teto. A foto foi amplamente divulgada nos veículos da época, e a Kombi ficou famosa.
O dono da Kombi era Bob Grimm, guitarrista de uma banda chamada “Light”, de Baltimore, Maryland. Bob e seus colegas de banda foram rodando por mais de 400 km até o Woodstock e, em seu site, ele conta um pouco mais a respeito da van.
Nossa Kombi era um trabalho muito inspirado, cheio de símbolos místicos e esotéricos, e a gente achava que ela estaria muito bem acompanhada pelos heróis musicais de nossa geração. O artista, Bob Hieronimus, tinha feito planos para comparecer ao Woodstock, mas sua agenda cheia o impediu. A “Light Bus” deixou sua marca na cena musical e artística da época, e mais tarde naquela ano acabou aparecendo na Rolling Stone, tornando-se um dos ícones da era hippie.
As pessoas em cima da Kombi eram o baterista e a vocalista de sua banda. Depois do festival, Bob Grimm voltou a Maryland e vendeu a Kombi a seu xará, Bob Hieronimus, antes de se mudar para a Inglaterra a fim de seguir sua carreira como músico.
E foi com o segundo Bob que a Kombi continuou sendo usada intensamente por mais alguns anos – Bob era dono de um centro de estudos esotéricos, e a Kombi foi usada por vários membros de sua comunidade. Em novembro de 1972, já bastante judiada, ela foi aposentada. E simplesmente desapareceu.
Há três anos, Hieronimus decidiu, décadas depois, procurar a famosa “Woodstock Bus”. Hoje com 73 anos de idade, ele continua fascinado pelo símbolos místicos e ganha a vida como artista, sendo também especialista em estudos paranormais, criptozoologia (o estudo de criaturas fantásticas como alienígenas ou o Monstro do Lago Ness, por exemplo) e pesquisas sobre o sobrenatural.
Ele escreveu um apelo em seu site, contando a história da Kombi e pedindo a quem tivesse informações que entrasse em contato. Depois de seis meses sem qualquer pista, Hieronimus se contentou em criar uma réplica.
Uma campanha no Kickstarter foi aberta para ajudá-lo a comprar uma Kombi 1963 e financiar sua restauração e decoração. O objetivo era arrecadar US$ 70.000 até o fim de 2017, conseguindo assim uma boa janela de tempo entre o início do projeto e o aniversário de 50 anos do Woodstock, em 15 de agosto de 2019.
A campanha foi bem sucedida, arrecadando US$ 90.000. Depois de restaurada, a Kombi foi entregue a Hieronimus, que passou seis semanas pintando a van por fora e por dentro com a ajuda de seis outros artistas.
A Kombi ficou praticamente idêntica à original do Woodstock, e foi revelada no último fim de semana durante um evento em Long Beach, na Califórnia. Agora, a nova “Light Bus” fará uma turnê pelos Estados Unidos, e deverá comparecer à edição comemorativa de 50 anos do festival, a ser realizada em Watkins Glen, nos EUA, nos dias 16, 17 e 18 de agosto.