Existem certas verdades que nos incomodam apenas como lembramos delas. A ausência da Mazda no Brasil, por exemplo – a última concessionária da marca em nosso País fechou as portas em 2000, há exatos 20 anos. Presente no Brasil por menos de uma década, a Mazda não conseguiu criar raízes no Brasil como fizeram Honda e Toyota, e seus carros nunca atingiram a mesma popularidade no Brasil. Por isso, sua ausência não é tão sentida… até pensarmos a respeito.
Isto porque a pegada da Mazda sempre foi a de uma empresa entusiasta. O MX-5 Miata é considerado um dos carros mais divertidos de dirigir que existem, o RX-7 fez história com seu motor Wankel biturbo de quase 300 cv, o 787B foi o primeiro protótipo japonês a vencer as 24 Horas de Le Mans… não faltam predicados.
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É o tipo de coisa que agrega valor à marca e inspira consumidores a procurar seus produtos – como o que acontece quando algum admirador do Honda NSX compra um Civic, por exemplo. Já os fãs brasileiros da Mazda não podem fazer o mesmo.
Lá fora, porém, a Mazda segue firme. Modelos como o Mazda3 e o Mazda6 são bem avaliados e populares, e o centro de pesquisa e desenvolvimento da fabricante segue procurando formas de criar motores mais eficientes e econômicos neste momento de ascensão dos elétricos. A Mazda é uma companhia entusiasta.
Contudo, recentemente veio a notícia de que sua divisão esportiva, a Mazdaspeed, vai fechar as portas. Modelos como o Mazdaspeed3 e o Mazdaspeed6 agora fazem parte do passado, e mesmo séries especiais do Miata agora não terão mais o sobrenome Mazdaspeed. A Mazda garante que é só uma mudança de nome, e que o departamento continua na ativa. Só que, ainda assim, trata-se de uma mudança simbólica, mostrando que alta performance não é mais tão importante quanto ter carros limpos e “verdes”.
Fazendo uma analogia, a Mazdaspeed era para a Mazda o que a linha RS é para a Ford, a divisão M para a BMW, ou a divisão N para a Hyundai. A Mazdaspeed já fez versões especiais do MX-5, do RX-8 e do kei car AZ-1, além dos já citados Mazda3 e Mazda6. Mas a divisão também é responsável pelos esforços nas pistas, organizando campeonatos monomarca para proprietários de modelos da Mazda – em especial o Miata, que é um dos esportivos mais populares em competições regionais mundo a fora por seu baixo preço, sua dinâmica acessível e sua receptividade a modificações.
É apropriado pois, embora tenha começado a preparar as versões esportivas da Mazda só nos anos 1990, a Mazdaspeed tem suas origens na década de 1960, quando era uma equipe de corrida quase independente, a Mazda Sports Corner – que é um nome muito bacana, diga-se.
Equipe de fábrica
A Mazda Sports Corner foi fundada em 1967 por Takayoshi Ohashi, dono da distribuidora Mazda em Tóquio. A história diz que alguns funcionários da concessionária eram entusiastas de corpo e alma – além de trabalhar vendendo e consertando carros da Mazda durante a semana, aos fins de semanas eles participavam de corridas. O que a história não diz é se eram apenas corridas organizadas em autódromos ou se eles também davam suas esticadas nas touges das montanhas e nas longas rodovias intermunicipais, as wangan, mas isto é só um detalhe.
Aparentemente o que motivou a criação da Mazda Motorsports Corner foi o lançamento de um dos carros mais emblemáticos dos anos 1960: o Mazda Cosmo 110S, primeiro automóvel da marca a utilizar o motor rotativo Wankel. O Cosmo era um carro absurdamente bonito, com inspiração nos esportivos europeus da época, porém cheio de personalidade; e também extremamente competente em sua proposta. O motor Wankel é conhecido por sua alta potência específica, e o Mazda Cosmo era um ótimo exemplo: com apenas 982 cm³ de deslocamento (menor que o 1.0 do meu Uno Mille), o motor de de dois rotores entregava 110 cv.
O pessoal na Mazda Auto Tokyo, que era a maior concessionária da marca no Japão, ficou verdadeiramente impressionado com o novo esportivo e decidiu que era hora de ir para as pistas. Além de obviamente divertida, a empreitada seria uma ótima maneira de aplicar a lógica do win on Sunday, sell on Monday – vencer corridas nos finais de semana e colher os louros da vitória (ou seja, o aumento nas vendas) de segunda a sexta-feira.
O lançamento do Mazda Cosmo era a oportunidade perfeita para dar início ao plano. Ao mesmo tempo, a própria fabricante estava interessada em divulgar o novo esportivo – afinal, o motor Wankel rompia drasticamente o conceito estabelecido do que era um motor de combustão interna: em vez de pistões e bielas, rotores triangulares; em vez de válvulas, janelas. Não havia sequer bloco e cabeçote separados – os rotores triangulares ficavam dentro de uma câmara oval. Será que aquilo daria certo mesmo?
Sucesso nas pistas
Pois… deu. Já em 1968 a Mazda Auto Tokyo e a matriz juntaram forças para colocar o Cosmo nas pistas. E o local escolhido para a estreia foi a corrida mais desafiadora possível. As 24 Horas de Le Mans? Que nada: estamos falando da Marathon de la Route – também conhecida como “As 84 Horas de Nürbugring”.
Não, não foi um erro de digitação: eram mesmo 84 horas de corrida. Três dias e meio, sem parar. A Marathon de la Ruote começou na década de 1930 como um rali de regularidade disputado na França e na Itália – saindo de Liège, na França; indo até Roma, na Itália, e depois voltando a Liège. Depois, o roteiro passou a incluir Spa, na Bélgica e Sofia, na Bulgária. Em 1965 o evento migrou para Nürburgring, na Alemanha – todos os 28,3 km do circuito, incluindo o Nordschleife e o extinto Südschleife.
Sendo uma prova de regularidade, porém, as 84 Horas de Nürburgring não eram uma corrida tradicional. Os pilotos não disputavam diretamente entre si, mas contra o relógio, e cada carro tinha um tempo limite de volta pré-estabelecido de acordo com o deslocamento do motor e a quantidade de assentos no interior. Era preciso respeitar este tempo – caso contrário, sofria-se duras penalidades.
Por incrível que pareça, os dois exemplares do Mazda Cosmo levados à Alemanha pela Mazda Sports Corner tinham poucas modificações – em essência, o motor recebia um novo coletor de admissão e uma nova câmara de combustão feita de alumínio, projetados pelos engenheiros Kunio Matsuura e Takaharu “Koby” Kobayakawa. Com isto, a potência passava de 110 cv para 130 cv. E era isto, basicamente – o objetivo, afinal, era demonstrar a qualidade do produto que era vendido nas concessionárias, e afastar-se muito dele não faria muito sentido.
O resultado deve ter surpreendido até mesmo aos envolvidos: o Mazda Cosmo foi o quarto colocado na Marathon de la Route – em um grid com 44 carros, incluindo Porsche 911, Mini Cooper, Lancia Fulvia, BMW 2002 e outros carros que, décadas mais tarde, tornariam-se verdadeiros medalhões. E o novo coletor de admissão projetado pela Mazda Sports Corner foi tão eficaz que a fabricante passou a utilizá-lo no Cosmo.
Com o passar dos anos, a Mazda Sports Corner consolidou-se como a equipe responsável pelo carros de corrida da Mazda, entre corridas de longa duração e provas mais convencionais. Em 1969 o pequeno Mazda R100 conquistou o quinto e o sexto lugar nas 24 Horas de Spa, atrás apenas de quatro Porsche 911. Em 1973 o Mazda RX-2 venceu sua primeira corrida nos EUA – uma prova em Lime Rock Park, Connecticut, organizada pela IMSA (International Motor Sport Association).
Em 1976, o dono de uma concessionária Mazda chamado Ray Walle dirigiu seu Mazda RX-5 modificado por mais de 1.000 km, saindo de Princeton, Nova Jersey, até Daytona, na Flórida. Lá, ele participou das 24 Horas de Daytona, venceu a corrida na categoria Turismo até 2,5 litros, e voltou dirigindo até Nova Jersey. O carro, que só tinha freios preparados, escape menos restritivo e gaiola de proteção, foi o 18ª na classificação geral, de 72 carros no grid. Realmente impressionante.
Na década de 1980 foi a vez de o Mazda RX-7 brilhar: o esportivo mais emblemático da fabricante japonesa foi o vencedor em sua categoria em todas as dez edições das 24 Horas de Daytona realizadas entre 1982 e 1992 – e ainda venceu oito vezes consecutivas o campeonato IMSA GT, na categoria até dois litros, entre 1980 e 1987.
Paralelamente, em 1983, o QG da Mazda Sports Corner foi transferido de Tóquio a Hiroshima, como uma forma de ficar mais perto da matriz. Foi quando a preparadora passou a se chamar Mazdaspeed.
A consagração e a mudança de foco
Foi em 1991 que a Mazdaspeed atingiu o auge enquanto equipe de corridas. Em 1991, pelo Grupo C de endurance, a Mazda levou para as 24 Horas de Le Mans o incrível 787B, protótipo movido por um Wankel de quatro rotores chamado R26B – que, com apenas 2.622 cm³ (arredondando, 2,6 litros) e nenhum turbo, entregava mais de 700 cv. Superando os também icônicos Jaguar XJR-12 e Sauber Mercedes-Benz C11, o 787B laranja-e-verde conduzido por Volker Weidler, Johnny Herbert e Bertrand Gachot venceu a corrida na França – e, até a vitória do Toyota TS050 Hybrid, era o único carro japonês na história a vencer em Le Mans.
O desempenho do Mazda 787B foi tão impressionante que a FIA decidiu banir os motores Wankel da competição. Como consequência, em 1992 a Mazdaspeed optou por uma parceria com a Jaguar, que forneceu o monocoque de um de seus antigos protótipos, o XJR-14, aos japoneses, que instalaram nele um V10 de origem Judd e o rebatizaram como Mazda MXR-01. Depois de conquistar o quarto lugar com ele em Le Mans – um desempenho respeitável, considerando a natureza improvisada do carro – a Mazdaspeed decidiu tirar o time de campo, abandonando o WSC.
Logo em seguida a Mazdaspeed decidiu a focar-se no desenvolvimento de componentes de preparação para os carros de rua da Mazda – coletores de admissão e escape, freios, componentes de suspensão, turbocompressores e afins. A manobra foi formalizada em 1999, quando a fabricante assumiu o controle sobre as operações da equipe, que tornou-se oficialmente sua preparadora de fábrica, posição que foi mantida por 21 anos.
Ao longo deste tempo, a Mazdaspeed apresentou alguns conceitos interessantes e usou sua experiência para criar as versões esportivas do Mazda3, do Mazda6, do MX-5 e de alguns modelos com mais mercado na Ásia, como o Demio e o Mazda2. É realmente uma pena que estes carros jamais tenham chegado perto de serem vendidos no Brasil.