A expressão “carro de corrida para as ruas” geralmente é usada para designar supercarros de altíssimo desempenho que, quase nunca, usam tecnologias de pista. O termo é quase um clichê que, curiosamente, não era tão frequente quando o mundo ainda tinha os especiais de homologação, que eram os verdadeiros carros de corrida para as ruas.
Um dos primeiros carros assim chamados foi a Ferrari F40, que não foi concebido para ser um carro de corridas e também não tinha um motor derivado das pistas, mas sua essência era 100% racer.
O carro de corrida para as ruas seguinte foi o McLaren F1, que tinha tecnologias trazidas diretamente das pistas como o efeito solo gerado por sucção e o motor V12 que acabou indo parar no protótipo de Le Mans da BMW anos mais tarde. Mas também não era exatamente um carro de corridas — ele era mais um grand tourer que tinha um enorme talento para o esporte.
Depois, em 1995, veio a F50, esta sim derivada dos monopostos da Ferrari na Fórmula 1, com direito a um conjunto de motor e câmbio como componente estrutural e derivados diretamente da Fórmula 1, bem como sua suspensão inboard.
Agora a Mercedes-AMG repete a receita da F50 colocando um motor de F1 em seu mais novo supercarro, o Project One. E quando falamos motor de F1, não estamos falando de um powertrain derivado da Fórmula 1, e sim do próprio 1.6 V6 turbo com um conjunto de motores elétricos, exatamente como os carros de Lewis Hamilton e Valteri Bottas. Seu desenvolvimento, aliás, é feito pelo ramo britânico da AMG, responsável pelos motores da F1. Não dá pra dizer que é uma mera derivação, como pensávamos no início.
Obviamente ele precisou de algumas modificações para ser usado como um carro de rua, que é ligado e desligado com frequência, que pode ficar preso em um congestionamento ou parado em um semáforo. A AMG não entrou em detalhes sobre as modificações, mas Tobias Moers já disse em outras ocasiões que o motor da F1 é mais robusto do que se imagina e que seria preciso apenas adaptar a faixa de rotações para o uso nas ruas. Na Fórmula 1 a lenta do motor fica na casa das 3.000 rpm e o limite em 15.000 (embora as equipes raramente passem das 13.000).
No carro de rua, essa faixa foi deslocada 2.000 rpm para baixo, o que significa que ele tem uma lenta “comum”, em 1.000 rpm, e seu limite de giros vai até 11.000 rpm, algo inédito em um supercarro produzido em série e que faz jus à afirmação de Lewis Hamilton sobre ser “um carro de corridas para as ruas”. Que clichê, Lewis!
Os motores elétricos também foram modificados. No Fórmula 1 são apenas dois — um conectado ao câmbio/virabrequim para auxiliar na entrega de potência, e outro conectado ao eixo da turbina para mantê-la girando nas desacelerações e, assim, eliminar o turbo lag.
No carro de rua são quatro motores elétricos — dois deles instalados como no carro de F1, com as mesmas funções, enquanto os outros dois estão ligados às rodas dianteiras para fornecer tração nas quatro rodas, e podem girar a 50.000 rpm. O câmbio também é derivado da F1, feito pela Xtrac, com oito marchas e embreagem hidráulica, e com modo manual ou automático. O conjunto todo pesa 520 kg, o que significa que ele terá mais que os 1.000 kg estimados inicialmente.
Esse layout, aliás, é o prenúncio de uma nova era na Mercedes-AMG, como disse o próprio presidente da Mercedes, Dieter Zetsche: “O futuro da AMG não depende do petróleo, mas também da hibridização e da eletrificação. Este carro mostra uma prévia do futuro da AMG. Nossa tarefa não é apenas reinventar o automóvel, mas também redefinir a mobilidade”. Nos próximos anos a Mercedes-AMG deverá lançar os modelos E50 e CLS50, com um seis-em-linha turbo combinado a um motor elétrico entre o câmbio e o motor e cerca de 450 cv.
Mas voltando ao Project One, o motor V6 produz sozinho 870 cv, enquanto o par de motores elétricos na dianteira são responsáveis por mais 326 cv e os motores elétricos auxiliares produzem 161 cv. Contudo, em um powertrain híbrido a potência total não se resume à soma das potências de cada motor — o conjunto de 161 cv, por exemplo, não envia sua força diretamente para as rodas.
Assim, o carro não terá quase 1.200 cv, e sim “mais de 1.000 cv”, segundo a Mercedes-AMG. Com esse potencial todo, ele será capaz de acelerar de zero a 200 km/h em menos de seis segundos e irá ultrapassar os 350 km/h de velocidade máxima. Os dados são assim imprecisos porque o Project One ainda não está pronto para entrar em produção; segundo Tobias Moers, chefe da AMG, o carro ainda tem 18 meses de desenvolvimento antes de começar a ser entregue aos clientes — o que acontecerá no início de 2019. É por isso que ainda não vimos o carro em testes de estrada, coberto por camuflagem pesada.
Além disso, o carro ainda não tem certificação de emissões e outros tipos de homologação, e só por isso é chamado de conceito. Moers, contudo, garante que o produto final será exatamente como este apresentado em Frankfurt.
Como um carro de corridas, o design do Project One foi fortemente influenciado pela aerodinâmica e pelo regulamento da F1 sobre o arrefecimento do powertrain. O monocoque também é de fibra de carbono, como nos F1, e todos os dutos e tomadas de ar foram desenvolvidos para produzir downforce, bem como a asa móvel traseira.
O visual tem as proporções do Sauber C9 e algo do C112, um dos supercarros esquecidos que a Mercedes nunca produziu em série. A dianteira lembra vagamente o McLaren F1 na posição dos faróis e no formato do bico e dos para-lamas. Parece até que algum photoshopper fez uma renderização usando como base o Macca. Poderia ter mais personalidade.
Já a traseira é seu melhor ângulo: o deck é alongado como em um protótipo do Grupo C, a barbatana aerodinâmica reforça a impressão de protótipo, as lanternas são agressivas, bem como o difusor imenso de dois andares, e as saídas de escape são as mesmas dos monopostos de F1, com duas saídas para a válvula wastegate e o duto principal vindo diretamente do turbo.
Embaixo do monocoque, entre o assoalho e os bancos, ficam as baterias de íons de lítio, que fornecem eletricidade suficiente para rodar 25 km usando apenas os motores elétricos da dianteira. A recarga pode ser feita por tomada ou pela recuperação de energia cinética acumulada durante as frenagens.
A suspensão usa um arranjo multi-link com pushrods na dianteira e na traseira — esta última com pontos de fixação na carcaça do câmbio e do motor, exatamente como no W08 da equipe de corridas. As rodas são de 19 polegadas na dianteira e 20 polegadas na traseira, e calçam pneus 285/35 e 335/30, respectivamente.
Ao abrir as portas tesoura (não dava pra fazer uma asa-de-gaivota, Mercedes?) você topa com um interior apertado, com bancos fixos, um volante multifuncional, e um quadro de instrumentos digital, exibido em uma tela TFT. Ele não tem retrovisor interno; como um protótipo LMP1 ele também usa um sistema de câmera e tela, que a Mercedes-AMG chamou de MirrorCam. Muito criativo.
Apesar de parecer complicado, Moers diz que o Project One é simples de guiar: “basta entrar, apertar o botão start e sair dirigindo”. Essa facilidade é reforçada pelo controle de estabilidade programável, com três modos: ligado, Sport e desligado e pelo sistema de vetorização de torque, ambos baseados nos motores elétricos dianteiros (e nos freios, no eixo traseiro). Os sistema já foi desenvolvido no SLS AMG Electric Drive, de forma que a AMG conseguiu usá-lo facilmente no Project One. Os freios usam discos de carbono cerâmica e pinças feitas especialmente para o hipercarro.
Apesar de custar 2,27 milhões de euros — cerca de R$ 8,5 milhões em conversão direta —, de exigir uma reconstrução do motor a cada 50.000 km e de ainda ter um ano e meio de desenvolvimento pela frente, a Mercedes diz que todos os 275 exemplares já têm dono. Mas isso já era esperado. A Mercedes só faz um desses quando há uma conjunção de forças cósmicas que iluminam algum alemão mais loucão em Stuttgart. Melhor arrematar um agora do que esperar mais 20 anos pelo próximo.