Ano novo, estatísticas de trânsito novas. Depois dos dados que denunciam a morbidez do trânsito nos feriados de fim de ano, é a vez dos números que denunciam a má formação dos motoristas enquanto enchem cofres públicos. Sim, estamos falando das multas e infrações. A Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) de São Paulo divulgou no final da semana passada o balanço anual de infrações de trânsito cometidas na cidade.
Como era de se esperar, o número de infrações aumentou — afinal, a frota da cidade aumentou 4%, as ruas receberam um arsenal de aproximadamente 400 máquinas de multar durante 2014 e não houve nenhuma melhoria na formação dos condutores brasileiros. O resultado foi um recorde de infrações registradas na capital: 10.608.695 multas, ou 20 multas por minuto. A arrecadação, contudo, não atendeu às expectativas da prefeitura, que falava em R$ 1,2 bilhão, mas ficou na casa dos R$ 856 milhões.
O “excesso de velocidade” foi novamente a infração mais flagrada em São Paulo, com mais de 3.100.000 autuações, e já está na mira da CET. O órgão ainda não divulgou o número de mortes no trânsito em São Paulo em 2014, mas no final do ano antecipou extra-oficialmente que o número havia aumentado. Esse aumento do número de mortes — ainda não divulgado — foi a justificativa da CET para a redução de limites de velocidade em diversos pontos da cidade, incluindo as Marginais Pinheiros e Tietê, duas vias expressas que atendem motoristas de outros estados, uma vez que o Rodoanel Mario Covas ainda não está completo.
Segundo a CET, o aumento do número de infrações (4,5% em relação a 2013) não tem relação com o aumento do número de radares — atualmente são cerca de 560 delas em operação na cidade —, mas simboliza um aumento proporcional ao aumento da frota, que cresceu 4% em 2014. Uma leitura dinâmica das estatísticas, ou uma conclusão precipitada diria que a velocidade é realmente um fator de risco e responsável pelas mil e tantas mortes no trânsito paulistano por ano e que reduzir ainda mais os limites irá resolver este problema. Será que vai mesmo?
Veja só: em 2014 houve menos motoristas em velocidade excessiva, mas assim mesmo o número de mortes aumentou em relação a 2013. Embora a redução do número de multas aplicadas seja inferior a 1% — foram somente 12.000 infrações a menos —, em 2013 havia menos carros fiscalizados.
Como acontecem as mortes no trânsito de São Paulo?
Segundo o relatório de 2013 da CET, as vítimas do trânsito são em sua maioria pedestres. Naquele ano, das 1.114 mortes, 514 foram por atropelamento e as vias onde mais houve mortes de pedestres foram as Marginais Tietê e Pinheiros — duas vias expressas que, por sua natureza prevista no Código de Trânsito, não deveriam ter fluxo de pedestres. Outras 35 mortes por atropelamento foram causadas em rodovias que cortam a cidade — um ambiente onde os motoristas não esperam deparar com pedestres, também pela natureza da via.
Ainda segundo este relatório da CET, as mortes por atropelamentos acontecem majoritariamente nos fins de tarde e durante a noite — ou seja, quando motoristas estão cansados e quando está escuro. Entre os causadores de atropelamentos estão os automóveis, que respondem por 46% desses acidentes, e as motocicletas, que causam 25,6% deles. Aqui um dado importante: em São Paulo há seis vezes mais carros do que motos. São pouco mais de 6 milhões de automóveis e 1 milhão de motos, o que significa que proporcionalmente motociclistas causam mais atropelamentos — algo que pode ser compreendido quando se considera o hábito de desviar automaticamente do trânsito parado, que é uma das grandes causas de acidentes sobre faixas de pedestres. A título de curiosidade, nem as bicicletas escapam da culpa: em 2013 duas pessoas morreram atropeladas por ciclistas.
Depois dos pedestres, as maiores vítimas do trânsito paulistano são os motociclistas. Foram 403 mortes em 2013 e o tipo de acidente que mais tirou a vida de condutores de motos foi a colisão com automóveis, seguido pelos choques contra objetos/elementos urbanos (quando o motociclista bate sozinho), e colisões com caminhões e ônibus — veículos com visibilidade limitada, especialmente de motociclistas. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 70% dos acidentes fatais os próprios motociclistas são os culpados. Um dado interessante: dos 403 mortos, somente 27 eram motofretistas, contrariando a noção preconceituosa de que são eles os causadores de acidentes.
Em terceiro lugar no número de mortes estão os motoristas e passageiros de automóveis: 200 pessoas perderam a vida a bordo de um carro em 2013. Essas mortes foram resultantes de choques e colisões com outros veículos (incluindo motos), e aconteceram em sua maioria nas madrugadas de sábados e domingos.
A velocidade é realmente um problema?
Rápido e direto: é parte dele. Mas não do jeito que os governos dizem. Sim, reduzir a velocidade diminui as chances de acidentes, da mesma forma que cortar uma perna reduz seu peso — você estará mais leve mas não significa que está magro. Da mesma forma, o trânsito não ficará necessariamente mais seguro com veículos andando mais devagar. Por quê?
Bem… se a frota está maior, a fiscalização aumentou e o número de multas caiu, pode-se pressupor com segurança que o motorista paulistano está andando mais devagar. Mas assim mesmo o número de mortes aumentou, segundo a CET. Que diabos está acontecendo, então?
Atropelamentos
Como vimos, os atropelamentos são a maior causa de mortes em São Paulo e poderíamos facilmente culpar os motoristas apressados por todas essas mortes, afinal, carros em velocidade alta demais são como armas, certo? Segundo a própria CET, a principal causa de atropelamentos é a “falha humana”, o que inclui a falta de atenção e/ou perícia dos motoristas, e a imprudência dos pedestres, que atravessam fora de faixas ou evitam passarelas ou ainda atravessam distraídos. Outro fator não mencionado, mas que pode ser observado com uma simples volta pela cidade são as faixas de pedestres mal iluminadas (lembra que os acidentes acontecem à noite?) e faixas apagadas ou mal conservadas, mais difíceis de ser vistas pelos motoristas.
A CET, logicamente, não tem como avaliar se houve excesso de velocidade em cada atropelamento, mas há um dado estatístico que pode indicar que os atropelamentos são causados em velocidades moderadas: o próprio número de mortes. Em 2013 aconteceram nada menos do que 6.590 atropelamentos em São Paulo e somente 514 deles foram fatais. Segundo estudos de segurança no trânsito, há 85% de chance de sobreviver a um atropelamento a 45 km/h, 55% a 50 km/h e 30% a 60 km/h. Se 6.076 pessoas sobreviveram a atropelamentos, podemos concluir que a maioria deles não foi causada por velocidade excessiva. Logo, é uma noção equivocada reduzir ainda mais os limites para salvar pessoas. A velocidade é só um elemento de risco a mais em um ambiente já inseguro — em parte devido à omissão do estado. Uma prova? A avenida de São Paulo mais letal para os pedestres tem faixas apagadas e calçadas estreitas…
Por último, veja o que concluiu o estudo de 1000 acidentes fatais realizado pela CET em 2012 em relação aos atropelamentos:
Os dois principais fatores que contribuíram para a ocorrência dos atropelamentos (fatais) são infrações gravíssimas: 55% por excesso de velocidade e 29% por desrespeito ao semáforo, totalizando 84%.
A cidade como um todo apresenta deficiência na iluminação pública, pois este fator representa 27% das ocorrências. Em 23% dos casos há indicação de falta de travessia regulamentada, existindo uma correlação direta com os 31% que atravessaram fora da faixa a mais de 50 metros. Os 23% da deficiência de sinalização representaram na maioria, a falta da sinalização horizontal, geralmente por estar gasta ou ter sido retirada devido a fresa do pavimento.
Motociclistas
No caso da morte dos motociclistas a velocidade tem, sim, seu papel, mas de um jeito diferente. Uma situação bastante comum no trânsito caótico das grandes cidades do Brasil é a seguinte: fileiras com dezenas (ou centenas) de carros quase parados em um congestionamento e motocicletas passando em disparada pelo corredor, como se ali fosse uma motofaixa exclusiva e inviolável — e absolutamente segura. O resultado não poderia ser outro senão o aumento expressivo dos acidentes ocorridos com motociclistas nos últimos anos: 36% dos acidentes fatais com motociclistas acontecem nessas condições.
Nesses casos a velocidade é um agravante, mas não pelo excesso. Melhor dizendo: não esse excesso de velocidade que os radares punem, mas sim um tipo que a maioria das pessoas nem percebe como excesso. Nos anos 1960 um pesquisador americano chamado David Solomon publicou um estudo sobre acidentes de trânsito que ficou famoso por sua conclusão, demonstrada pela “Curva de Risco de Acidentes”. Ela mostra que, quanto maior a diferença de velocidade entre um veículo e o restante do trânsito, maiores são os riscos de acidentes.
Quando uma moto está acelerando no limite de velocidade entre os carros parados, ela não está cometendo uma infração de trânsito, mas está em velocidade excessiva. Por quê? Porque todos os demais estão parados ou se movendo e fazendo manobras (e consequentemente reagindo) muito lentamente. O motociclista fica sem tempo hábil para evitar o acidente. Segundo a CET, a velocidade média dos carros entre 17h e 20 horas é 6,9 km/h (!). Nesse caso, quando um motociclista trafega pelo corredor a 60 km/h ele até pode estar dentro do limite, mas é evidente que estará rápido demais para as condições.
As outras causas de acidentes fatais com motociclistas são o desrespeito ao sinal vermelho (10%) e o tráfego pela contramão de direção (7%) — aquelas ultrapassagens curtas pela pista contrária e sobre faixa contínua.
Ocupantes de automóveis
Quanto às mortes de motoristas, a principal causa dos choques (quando o motorista bate em objeto parado) é o excesso de velocidade (75% dos casos) e alcoolemia (23%). De acordo com a CET, a maior parte dos acidentes fatais com motoristas e passageiros acontece nas madrugadas de sábado e domingo.
Os radares são mesmo a solução ou somente parte dela?
Até agora, os radares vêm cumprindo lentamente seu papel na redução da velocidade dos motoristas na capital paulista (e em todo o Brasil). Em 2014 foram 12.000 multas a menos, e 240.000 carros a mais. Mesmo assim, os acidentes fatais aumentaram e agora a CET pretende reduzir mais limites de velocidade para aumentar a segurança e preservar vidas.
Acontece que os limites de velocidade já foram reduzidos em relação a um passado, e o número de mortes voltou a subir. Seria realmente o caso de reduzir ainda mais, sem se preocupar com outros fatores? Como vimos, os atropelamentos são causados em faixas apagadas, pela falta de faixas e pela falta de iluminação adequada além do fator humano — problemas que exigem investimentos que não geram retorno financeiro — especialmente quando a arrecadação com multas ficou quase 30% abaixo do previsto. Seria o caso de forçar condições para que a estimativas sejam atendidas no futuro?
Já vimos anteriormente que o presidente do Observatório Nacional de Segurança Viária considerou a formação de condutores no Brasil como “adestramento”, e o próprio Denatran dispensou a obrigatoriedade dos simuladores nas aulas de direção, o que poderia contribuir para uma melhor formação de condutores. Será mesmo que a solução é reduzir ainda mais os limites a um ponto em que o “excesso” se tornará uma velocidade muito mais baixa do que já foi?
Foto: Autoentusiastas
Os radares são ferramentas excelentes para coibir os excessos e também como instrumentos de conscientização quando são visíveis e instalados em pontos que exigem de fato uma redução de velocidade — como escolas e outras concentrações de pessoas, ou cruzamentos e curvas perigosas. Eles fazem um trabalho que seria impossível por agentes ao mesmo tempo em que os liberam para o patrulhamento e orientação de outros fatores que hoje são ignorados pela fiscalização (basta comparar as infrações mais recorrentes com a lista de infrações graves ou gravíssimas do Código de Trânsito) ou até mesmo orientar pedestres para que não atravessem fora das faixas e passarelas ou com o semáforo aberto para os carros.
Mas o que está acontecendo, na prática, é que o estado culpa o motorista, se omite de suas responsabilidades, se isenta da culpa e ainda pune quem ele deveria proteger, que é o cidadão. A fiscalização eletrônica se tornou um aparelho de repressão.
Foto: R7
Contudo, o que estamos observando com mais frequência são limites artificialmente baixos, que levam os motoristas a dividir a atenção ao trânsito com o painel do carro, criando uma situação de risco e uma estatística ilusória, que “prova” que todos estão correndo demais e que essa é a causa de tantas mortes, quando esse excesso de velocidade não oferece um risco real ao trânsito. Ou ao menos não é o principal responsável pelas mortes, como os próprios dados oficiais mostram.