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Automobilismo

O novo comercial da Heineken para a F1 é uma bela homenagem à história de Sir Jackie Stewart

Se você der uma olhada nas fotos e vídeos da Fórmula 1 dos anos 1970, 1980 e 1990, irá topar com dezenas de marcas de bebidas alcóolicas e cigarros. Juntas, a indústria tabagista e a indústria das bebidas despejaram milhões de dólares todos os anos em troca da exposição de suas marcas nos carros, macacões e paineis nos circuitos.

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Mas então o tempo passou, o cigarro se tornou mais perigoso que políticos corruptos e as pessoas decidiram que a publicidade tabagista deveria ser banida. Sem ela, os recursos financeiros das equipes e pilotos foram reduzidos drasticamente.

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Já a publicidade de bebidas alcoólicas, que combinam tão bem com carros quanto gasolina batizada, continuaram liberadas, porém sempre de forma discreta. Se no passado a publicidade associava a bebida aos prazeres da vida explicitamente, hoje ela trabalha conceitos que se relacionam de forma muito subjetiva a estilos de vida e estereótipos. A Johnnie Walker, por exemplo, já explorou a bravura e a perfeição técnica dos pilotos e, mais recentemente, associou seu slogan “Keep Walking” com “ir mais longe” em um vídeo com Jenson Button e Mika Häkkinen, um Honda S600 chegando perto das 10.000 rpm em uma estrada perfeita ao som da escrachada e acelerada”Ça Plane Pour Moi” do belga Plastic Bertrand:

É uma tentativa de associar o prazer de dirigir e os momentos de diversão ao famoso uísque escocês. Tudo muito conceitual e até difícil de entender se você não é muito afeito à semiótica.

Isso não é uma exclusividade da Johnnie Walker. Se você pegar cinco ou seis comerciais de marcas diferentes eles seguirão este mesmo roteiro que mistura sensações positivas à marca em questão. Foi a solução que os publicitários encontraram para divulgar bebidas alcóolicas em tempos “socialmente responsáveis”. Mas essa, na verdade, é a solução fácil.

A solução difícil — e até ousada — foi o que a Heineken fez em seu primeiro comercial em parceria com a Fórmula 1. Em junho deste ano a tradicional cervejaria holandesa anunciou uma parceria de longo prazo com a categoria, e no início desta semana começou a veicular seu primeiro comercial, colocando como estrela da peça ninguém menos que Sir John Young Stewart, mais conhecido como Jackie Stewart, tricampeão de Fórmula 1.

Sim, é uma propaganda de cerveja pedindo para que você não beba antes de dirigir. Todas fazem isso, mas apenas na assinatura final. Já este comercial da Heineken é todo baseado na renúncia ao álcool: Stewart recusa a cerveja durante o comercial inteiro! É basicamente uma marca de cerveja pedindo para que você não consuma o produto deles. Uma anti-propaganda.

Mas não é por isso que decidimos falar dela. E nem é por sua ousadia que ela é brilhante.

A genialidade desta propaganda está na escolha de Sir Jackie Stewart como protagonista. Sem ele, este vídeo não teria o impacto que teve. E nenhum outro piloto poderia substituí-lo neste papel.

Se hoje a Fórmula 1 é um esporte infinitamente mais seguro do que há 50 anos, é graças aos esforços deste homem nos anos 1960 e 1970. Sir Jackie bateu de frente com o mundo todo — pilotos, patrocinadores, organizadores e imprensa — para tornar o automobilismo mais seguro em uma época em que o risco de morte era romantizado como um elemento que engrandecia a bravura dos pilotos.

Tudo começou no chuvoso GP da Bélgica de 1966, em Spa-Francorchamps, no dia seguinte ao 27º aniversário de Stewart. Logo na primeira volta Jackie Stewart perdeu o controle de seu BRM e saiu da pista a cerca de 265 km/h, batendo em um poste telefônico e em um barracão antes de parar no terreno de um fazendeiro local.

No acidente a coluna de direção se quebrou e perfurou sua perna, impedindo-o de sair sem ajuda. Como se não bastasse, os tanques de combustível se romperam e despejaram toda a gasolina no cockpit. Não havia fiscais de pista, nem ferramentas adequadas no local. Stewart estava literalmente em uma banheira de gasolina com um motor quente na traseira.

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Ele ficou nesta situação por 25 minutos. Vinte e cinco minutos encharcado por gasolina e com uma barra de direção cravada na perna. Também não havia nenhum médico ou estrutura de emergência para socorrer os pilotos. Stewart foi salvo por Graham Hill e Bob Bondurant, que também haviam acabado de abandonar a prova, e apareceram com uma chave inglesa emprestada por um espectador que, por acaso, estava com sua caixa de ferramentas.

O escocês então foi colocado na caçamba de uma picape e levado até um pequeno posto de primeiros-socorros, onde esperou a chegada da ambulância em uma padiola apoiada no chão sujo e cheio de pontas de cigarro – ainda com seu macacão encharcado de gasolina. Quando a ambulância chegou, Stewart foi encaminhado ao hospital de Liège, porém a ambulância se perdeu no caminho, em um momento em que os enfermeiros já suspeitavam que ele tivesse sofrido uma lesão na coluna. No fim das contas Stewart foi levado de avião para o Reino Unido, onde descobriu que não havia sofrido nada muito sério — além do trauma psicológico, claro –, mas ninguém sabia disso até ele ser atendido no hospital britânico.

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“Percebi que o melhor que tínhamos [em caso de acidente] era algo terrivelmente errado: a pista estava errada, os carros, o lado médico, o combate a incêndios e as equipes de emergência. Também havia bancos de grama que serviam como plataformas de lançamento, coisas para atravessar, árvores desprotegidas e por aí vai. Os jovens de hoje não compreenderiam. Era ridículo”, disse Stewart a Jon Gaunt no livro “Gaunty’s Best of British”.

Depois desse pesadelo digno do seriado “The Twilight Zone”, Stewart iniciou uma campanha ao lado de  Louis Stanley, seu chefe na BRM, exigindo melhorias nos serviços de socorro e mais barreiras de segurança nos circuitos. Enquanto seu ativismo não surtiu efeitos, ele contratou um médico particular para ficar de prontidão em cada Grande Prêmio e passou a levar uma chave inglesa presa na barra de direção do seu carro, caso passasse por uma situação daquela novamente.

Stewart lutou pela obrigatoriedade dos cintos de segurança e capacetes fechados para os pilotos, e pressionou os administradores dos circuitos a modernizar as pistas por meio de boicotes ao GP da Bélgica de 1969, ao GP da Alemanha de 1970 e da Holanda em 1972, até que barreiras, áreas de escape, equipes de bombeiros e instalações de socorro médico foram melhorados ou construídos.

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Logicamente Stewart não mudou o mundo sem fazer inimigos. Na época alguns pilotos e jornalistas achavam que as melhorias na segurança desqualificavam o esporte, enquanto os administradores dos circuitos e organizadores dos Grandes Prêmios reclamavam dos custos a mais. Sir Jackie nunca ligou para isso. “Eu teria sido um campeão muito mais popular se tivesse sempre dito o que as pessoas queriam ouvir. Eu estaria morto, mas seria muito mais popular”, disse Stewart a Robert Phillip, autor do livro “Scottish Racing Legends”.

Nós respeitosamente discordamos de Sir Jackie pois sua popularidade e seu legado são inquestionáveis. Além disso… onde estão mesmo aqueles caras que discordaram dele há 45 anos?