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Mercado e Indústria

O que esperar do novo plano para os carros populares?

Se você perguntar a um americano o que é um carro popular, ele dirá que é um carro que foi bem-sucedido em vendas. O Ford T, por exemplo, foi um carro popular, assim como o VW Beetle (ele é americano, lembra?), o Ford Mustang ou o Honda Civic. Todos foram grandes campeões de venda nos EUA. Logo, são populares.

Para um japonês, a ideia de “carro popular” é diferente: um carro popular é um keijidōsha, uma categoria de carros criada pelo governo nos últimos meses dos anos 1940 para tornar o automóvel tão acessível quanto uma moto. Foi a institucionalização do carro popular, a primeira vez que um governo decidiu criar uma categoria especial para baratear os preços dos carros. Deu certo. Funcionou tão bem que essa categoria existe até hoje: keijidōsha é o nome japonês dos “Kei Cars”. Não foi por espaço em um país que tem 125.000.000 de habitantes em uma área do tamanho do Mato Grosso do Sul. Foi para tornar os carros acessíveis para a maior parte da população.

A ideia não era nova. O chanceler alemão dos anos 1930 — você sabe quem — queria fazer um volks wagen que seria comprado pelos trabalhadores por um sistema de caderneta de poupança. Não deu certo porque o sujeito resolveu mostrar suas verdadeiras intenções em setembro de 1939, os soviéticos decidiram confrontá-lo junto com os britânicos, os italianos se uniram aos alemães, os japoneses erraram o lado da guerra e explodiram uma base americana, e aí você já sabe o que aconteceu.

O volks wagen nunca foi vendido por caderneta, nem foi institucionalizado como os keijidōsha japoneses seriam — o que não o impediu de ser extremamente popular, afinal, era um carro simples, com baixo custo de produção e venda, obra de Ferdinand Porsche.

O nascimento do Fusca: como um militar inglês criou a Volkswagen após o fim da Guerra

No Brasil, o conceito de carro popular foi institucionalizado pela primeira vez nos anos 1960, quando a Caixa Econômica Federal criou uma linha de crédito para carros populares, que previa juros subsidiados de 1% ao mês e prazo de 48 meses para pagamento. A condição é que os veículos populares fossem mecanicamente idênticos aos modelos de entrada, “despidos apenas dos acessórios considerados ‘de luxo’”, segundo noticiado no jornal Correio Braziliense de 3 de junho de 1965. Foi quando surgiram os modelos ultra-espartanos que tivemos na época no Brasil, começando pelo DKW Pracinha e Willys Teimoso (originalmente “Planalto”) e, mais tarde, o Fusca “Pé-de-Boi”, e o Simca Profissional.

O número de carros era limitado pelo número de financiamentos concedidos pela Caixa Econômica Federal e, embora seja comum atribuir o fim do programa à baixa demanda popular, os jornais da época relatam que em junho de 1966 foram vendidas, em todo o Brasil, 14.000 unidades apenas do DKW Pracinha e Willys Teimoso — 6.000 do DKW e 8.000 do Willys —, embora a entrega destes carros tenha demorado até seis meses.

Pé de Boi: os depenados populares dos anos 1960

Note que no caso do Japão, na Alemanha pré-Guerra o no Brasil, o incentivo ao carro popular foi uma medida para alavancar a indústria e a economia em períodos de desenvolvimento. A Alemanha do pós-Guerra ainda passaria por uma forte escalada de desenvolvimento sob o comando do chanceler Konrad Adenauer, que resultaria na prosperidade econômica que o país atingiu nos anos 1970 — e que durou até este ano, visto que a Alemanha dá sinais de estar entrando em uma recessão.

No caso do Japão ocorreu o mesmo: os keijidōsha incentivaram a indústria e o mercado de carros, que resultou em um forte crescimento nos anos 1960 e explodiu para valer nos anos 1970, quando a crise do petróleo fez crescer a demanda por carros mais eficientes — algo que os japoneses faziam como ninguém. Hoje os keijidōsha existem por outras razões — os carros mais vendidos no Japão são maiores e mais caros.

Já o Brasil não conseguiu decolar. Depois do programa do carro popular dos anos 1960 — uma ação pontual que durou uns poucos meses, como vimos —, o Brasil atravessou os anos 1970 com inflação de até 110% ao ano e aí fomos ladeira abaixo nos anos 1980, quando acumulamos singelos 38.112.868% de inflação ao longo da década. Nem mesmo a proibição das importações ajudou a impulsionar a indústria brasileira.

Em agosto de 1990, o então presidente Fernando Collor chamou os carros brasileiros de “carroça” e, depois de abrir o mercado aos importados, ainda reduziu a alíquota do IPI de 37% para 20% para os carros que tivessem motorização de até 999 cm³. A Fiat e a Gurgel foram as beneficiadas em um primeiro momento, mas, nos anos seguintes, quando a alíquota foi reduzida para 8% e, temporariamente, para 0,1%, todo mundo entrou na onda do carro popular 1.0.  No final dos anos 1990, 55% do mercado era formado por esse tipo de veículo.

Foi quando o carro popular realmente pegou no Brasil — e foi quando o governo começou a trabalhar com isenções e reduções de IPI para incentivar as vendas e/ou produção industrial. Quando mais da metade da produção/vendas de veículos no Brasil correspondia aos carros enquadrados na faixa de alíquota mais baixa, claramente houve um problema tributário para o Ministério da Fazenda: no fim dos anos 1990, os carros populares (999 cm³) pagaram entre 5% e 7% de IPI, dependendo da época. Os demais carros, tinham a alíquota baseada na potência: se tivesse até 127 cv, a alíquota seria de 17%. Se tivesse 128 cv ou mais, a alíquota seria de 35%.

Para resolver essa distorção tributária de se misturar cilindrada e potência (e recuperar a arrecadação), em 2001 o IPI foi simplificado: carros de até 999 cm³ teriam 10% de IPI, o resto teria 25%. O resultado: carros populares ficaram mais caros e carros de luxo, mais baratos. Uma nova distorção que levou a uma nova forma de cobrança do IPI — e que permanece até hoje: carros de até 999 cm³ têm alíquota de 7%, carros de 1.000 cm³ a 2.000 cm³ recolhem 11% se forem flex, e 13% se forem a gasolina. Carros com mais de 2.000 cm³ têm IPI de 18% (flex) ou 25% (gasolina).

Esse sistema chegou a ser revisado em 2018, quando se percebeu o anacronismo de se basear o imposto na capacidade volumétrica dos motores, afinal, a era do downsizing já havia começado e muitos carros nada populares usavam motores 1.0 turbo de quase 130 cv. É esse anacronismo, por exemplo, que permite a estratégia das fabricantes de se concentrar em modelos de maior valor agregado, afinal, a alíquota é a mesma.

Como exemplo hipotético rápidoi, imagine um carro que custa $ 15 e é vendido por $ 20, e um outro carro que custa $ 20, mas é vendido por $ 30, ambos com alíquota de IPI de 7%. O primeiro irá pagar $1,4 de IPI, o lucro seria de $ 3,6 — um retorno de 24%. O carro de $ 30 irá pagar $ 2,1 de IPI e o lucro seria de $ 7,9 — um retorno de quase 40%.

Por que os carros populares não têm impostos populares?

Foi desse tipo de distorção que nasceu nosso questionamento sobre o imposto dos carros populares (esse aí acima): se eles são populares, eles precisam ter impostos populares. O downsizing tornou anacrônica a alíquota do IPI baseada na cilindrada. Hoje um Porsche Boxster T paga a mesma alíquota de IPI que um Fiat Argo 1.3, afinal, ambos têm entre 1.000 cm³ e 2.000 cm³. Claramente há algo errado.

E isso nos traz às medidas anunciadas (superficialmente) pelo governo para tentar reduzir o preço dos carros populares — afinal, “R$ 90.000 não é popular”.

 

O novo plano para os carros populares

O plano do governo para os carros populares foi parcialmente anunciado na última quinta-feira, 25 de maio, Dia da Indústria. As medidas envolvem descontos progressivos de acordo com o valor do carro, sua eficiência em termos de emissões e nacionalização da produção, e serão aplicados somente nos carros que custam atualmente até R$ 120.000 — há 33 modelos até esta faixa de preços no Brasil.

Ainda não há regras e detalhes definidos — eles deverão ser anunciados nas próximas semanas —, mas já se sabe que a redução final no preço dos carros irá variar de 1,5% a 10,96%, sendo que os carros mais caros terão menos descontos/isenções e os carros mais baratos terão mais descontos/isenções. Na prática, os carros populares, aqueles que hoje custam R$ 70.000, poderão chegar a menos de R$ 60.000.

O critério anunciado faz sentido — é muito mais adequado à realidade que o atual sistema de alíquotas do IPI. Afinal, ele considera o valor do carro para conceder os descontos no IPI. Considera também itens relevantes para o mercado/indústria no momento, como a eficiência e a nacionalização.

O desconto por valor, por exemplo, eliminaria a distorção de se pagar a mesma alíquota de IPI em um Renault Kwid e em um Fiat Pulse 1.0 Turbo, enquanto o índice de nacionalização ajuda na movimentação da indústria, que opera com 50% de sua capacidade produtiva — algo que foi o grande motivador dessa discussão. Aqui é importante notar que a produção reduzida significa menor volume para bancar os custos, o que afeta as margens de lucro — fábricas têm custos fixos que independem do volume de produção. Se o volume é baixo, é preciso aumentar a margem para bancar o custo, resumindo de forma simplista.

Por outro lado, a ideia de se bonificar o carro por sua eficiência parece equivocada. Todo automóvel vendido no Brasil precisa atender a fase L7 do Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores, o Proconve. Foi o que tirou de produção os motores 1.6 8v da Volkswagen e levou a Fiat a revisar a calibragem do motor FireFly — desenvolvimento que aumenta o custo da produção do automóvel.

Como todos os carros já atendem a atual fase do Proconve, qual será o critério avaliado na concessão de descontos que não resultará em um maior custo de desenvolvimento do motor? Faria sentido um eventual aumento de custo de desenvolvimento de motores em um carro popular que está recebendo concessões para ficar mais barato e que já atende satisfatoriamente as normas vigentes?

Por último, temos o prazo do plano: inicialmente falava-se em um ou dois anos, mas agora o governo trabalha com “meses” e neste ano. Se o objetivo é movimentar a indústria e tornar acessível o automóvel popular, é evidente que o programa precisa de um prazo mais alongado. O carro popular é voltado à classe trabalhadora, que precisa de um planejamento ponderado para encarar um endividamento de 48 a 60 meses como é a maioria dos financiamentos de automóveis atualmente. E este é um ponto crítico pois, como apontou uma pesquisa de 2012, a compra de um automóvel como a “principal razão do alto endividamento da classe C”.

Foi também o que causou a crise iniciada em 2014 e que persiste até hoje: o endividamento dos consumidores significou a impossibilidade de se comprar carros novos. O resultado foi o envelhecimento da frota: em 2013 a idade média da frota era de 8,5 anos, hoje ela é de 10 anos e três meses, depois de chegar aos 10 anos e sete meses, maior idade média desde 1995.

O governo federal ainda estuda descontos no PIS/Cofins e negocia com os estados descontos do ICMS — um dos impostos críticos na composição dos preços dos carros pois, como já mencionado anteriormente, ele incide sobre outros impostos como o IPI e o PIS/Cofins, resultando na chamada cobrança “em cascata”.

É preciso aguardar os detalhes no novo plano para o carro popular, mas o que foi apresentado até agora passa uma impressão de algo feito pela metade, que ajuda, mas não resolve — o popular “chove, mas não molha”. De um lado, o plano mostra que o governo tem ciência de que o modelo do IPI é anacrônico e que os modelos populares precisam de impostos populares. Também mostra que o governo tem ciência de que o ICMS em cascata é um problema, e que o preço do carro é caro para a maioria dos trabalhadores brasileiros.

Produção de carros no Brasil: o boom e o marasmo em gráfico — 1998 foi o primeiro, recuperação só em 2005; 2014 foi o segundo, mas ainda não nos recuperamos – e isso é o que preocupa governo, consumidor e indústria

Por outro lado, o caráter temporário do programa repete os erros do passado: ele movimenta o mercado pelo endividamento, mas sem baratear o custo dos produtos, nem enriquecer a população, nem barateando o custo do dinheiro (taxa de juros).

O que acontece nestas situações? O mesmo que aconteceu na virada dos anos 1990 para os anos 2000 e nos anos 2010: um boom de vendas seguido de um longo marasmo devido ao endividamento do consumidor. E isso resulta na instabilidade da indústria, que tem um pico de produção seguido de uma redução drástica na operação. Foi o que aconteceu a partir de 2014.

Qualquer estímulo às vendas e reduções de preços é positivo, mas parece que, neste caso, o que teremos é um pequeno suprimento de ar para garantir a sobrevivência neste momento. Ajuda, mas não resolve. De novo?


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