A palavra “arte” possui um significado muito amplo – e eu não me refiro apenas à clássica dualidade entre “arte de artista” e “arte de arteiro”, que aprendemos ainda crianças. Além da forma mais pura de expressão humana – o ato de produzir alguma obra, seja uma pintura, escultura, composição, poema, filme ou fotografia, para expressar um sentimento, uma ideia ou um traço de nossa personalidade –, a palavra “arte” também pode ser usada para falar de um trabalho minucioso, um processo longo e detalhado, de se fazer qualquer coisa.
É com base neste segundo significado que nós, entusiastas, usamos muito a palavra “arte” para falar dos carros. Pode ser a arte de um exímio piloto, claro, executando sua coreografia ao volante. Mas também pode ser a arte dos designers e engenheiros que projetam um automóvel. Carros são arte, de certa forma.
De vez em quando, porém, eles podem se transformar em arte de forma mais literal. E o exemplo mais famoso são, possivelmente, os Art Cars da BMW. E, em 2019, o mais marcante de todos eles completa 40 anos: o BMW M1 feito por Andy Warhol em 1979.
Também já fizemos um post sobre os Art Cars, há alguns anos. E, se você já o leu, vai lembrar que o primeiro Art Car da BMW é um pouco mais antigo, de 1975. Foi quando o piloto Hervé Poulain encomendou ao artista plástico Alexander Calder uma pintura especial para seu 3.0 CSL, com o qual correria nas nas 24 Horas de Le Mans daquele ano. Com seu body kit que lhe rendeu o apelido “Batmóvel”, o BMW 3.0 CSL já é um carro marcante por si só – e um carros de competição mais bem sucedidos de seu tempo, conquistando seis títulos no Campeonato Europeu de Turismo na década de 70. Com a pintura de Calder, porém, o carro de Poulain também se tornou um dos mais bonitos já feitos.
Poulain, acompanhado do americano Sam Posey e do francês Jean Guichet, não conseguiu terminar a prova – um problema no câmbio o forçou a deixar a corrida após nove horas. Mas o sucesso que o 3.0 CSL fez entre o público e a imprensa fez com que a BMW transformasse os Art Cars em algo mais oficial, e a própria fabricante começou a convidar artistas para pintarem seus carros.
Depois do 3.0 CSL colorido de Hervé Poulain, em 1976 houve outro exemplar, do mesmo modelo, decorado pelo ilustrador Frank Stella com um padrão quadriculado e traços geométricos, representando a beleza técnica da engenharia aplicada em sua construção. E, em 1977, um Série 3 E21 foi pintado por Roy Lichtenstein com linhas coloridas longitudinais, representando as estradas e paisagens pelas quais os carros passam – arrematado com os pontinhos típicos das histórias em quadrinhos.
O que os três primeiros Art Cars tinham em comum era o método de pintura: primeiro, a arte foi esboçada em miniaturas dos carros, ajustada, modificada e, quando ficou perfeita, foi reproduzida nos carros de verdade. Depois deles, a BMW passou direto por 1978 – talvez por que a fabricante estivesse preparando algo ainda mais especial para a temporada seguinte.
O ano de 1978 marcou o lançamento do BMW M1, conhecido por ser o primeiro superesportivo de motor central-traseiro feito pela BMW. Inicialmente um projeto para o Grupo 5 da FIA, que na época era o topo da cadeia alimentar para os carros de turismo – na verdade, os carros eram tão modificados que chegavam muito perto de se tornar protótipos. Só não o eram porque a porção central do monobloco era mantida.
Sem dúvida o Porsche 935 era o grande nome do Grupo 5 – com sua carroceria completamente modificada e um visual distinto que lhe rendeu o apelido Moby Dick, ele já havia conquistado o segundo lugar nas 24 Horas de Le Mans de 1974 e, depois disto, tornou-se um dos nomes mais fortes da categoria (vindo, eventualmente, a vencer a edição de 1979 da corrida na França). O BMW M1 foi criado especificamente para encarar o Porsche 935, e tinha a vantagem de ser um projeto já concebido levando em consideração o regulamento, sem adaptações posteriores. Ele tinha um chassi tubular projetado pela Dallara, carroceria de fibra de vidro em forma de cunha – assinada por ninguém menos que Giorgetto Giugiaro – e um seis-em-linha de 3,5 litros que, quando sobrealimentado, tinha potencial para encostar nos 800 cv.
O projeto para o Grupo 5 acabou abortado, como já contamos neste post – o regulamento mudou durante seu desenvolvimento, forçando a BMW a abandonar a categoria e a criar uma categoria monomarca especialmente para o M1, o Procar Championship. No entanto, para 1979, o M1 ainda conseguiu disputar as 24 Horas de Le Mans sob o regulamento da IMSA, novamente com Hervé Poulain no trio de pilotos, ao lado do também francês Marcel Mignot e do alemão Manfred Winkelhock. E mais: o M1 usado por ele era o primeiro e único Art Car feito por Andy Warhol.
Nascido em 1928, Andy Warhol já era um ícone da chamada pop art – movimento que se opunha ao elitismo da arte clássica, trazendo para baixo dos holofotes o banal, o comum, e subvertendo a estética tradicionalista através de colagens e re-interpretações de, bem, qualquer coisa. A arte de Warhol era uma verdadeira síntese da pop art, aproveitando elementos do cotidiano como uma lata de sopa Campbell’s, uma banana ou uma foto da Marilyn Monroe para criar obras marcantes, vibrantes e altamente apelativas.
O nome de Andy Warhol raramente é associado a automóveis – ele sequer tinha carteira de habilitação. Ainda assim, o artista os explorou como tema algumas vezes ao longo de sua carreira. Um de seus métodos favoritos era a interferência em fotografias, geralmente usando a técnica de silk screen. Abaixo, temos um exemplo interessante: uma pintura feita sobre o famoso anúncio Lemon da Volkswagen, um dos primeiros de sua revolucionária campanha publicitária.
Quando foi chamado pela BMW para pintar o M1, Warhol teve a chance de fazer algo diferente. E, ao contrário dos outros artistas, ele optou por aplicar a tinta direto no carro. Segundo o site Car Body Design, Warhol trabalhou no esportivo por apenas 23 minutos, usando um pincel e tintas de várias cores. O resultado era propositalmente rústico, com um padrão irregular de formas e tonalidades e marcas visíveis das pinceladas – no entanto, apesar de caótica, a pintura da carroceria era estranhamente harmônica.
A combinação de cores simplesmente funcionava, nenhuma delas parecia entrar em conflito com a outra e, por um momento, era possível esquecer as pinceladas aparentes e encarar tudo como uma coisa só. Como se a pintura tivesse sido impressa no carro, desde o início.
E, de acordo com o próprio artista, Warhol realmente entrou de cabeça na ideia de pintar um carro de competição. Depois de completar o trabalho – passando os dedos sobre a tinta fresca, deixando uma marca pessoal na carroceria, e assinando o para-choque traseiro – ele disse: “Eu amo esse carro. Ele ficou melhor que a própria arte.” E então, comentando o significado da pintura: “Eu tentei representar a velocidade como algo visual. Quando um carro está bem rápido mesmo, todas as linhas e cores se transformam em um borrão.”
Dá para perceber que Warhol não era tão ligado nos carros em si quanto na imagem deles – ele não o percebia como algo técnico, provavelmente não se importava com o que havia debaixo da carroceria. Para ele, “o carro era muito rápido”, e ele quis transformar este movimento em algo esteticamente agradável e marcante.
Ele conseguiu: o carro era belíssimo. E mais: ele até que se deu bem na corrida – foi o segundo colocado em sua categoria, e sexto colocado na classificação geral.
Depois da corrida, o M1 Art Car foi recolhido de volta pela BMW, permanecendo sob os cuidados da fabricante desde então – bem como todos os outros Art Cars feitos depois, que ocasionalmente são expostos em galerias e museus.
Andy Warhol morreu anos depois, em 1987, quando sofreu uma parada cardíaca causada por uma arritmia. Na época, ele estava trabalhando em parceria com a Mercedes-Benz, criando uma série de serigrafias chamada Cars, em comemoração aos 100 anos do primeiro automóvel, o Benz Patent-Motorwagen.