Você já ouviu falar que a história acontece em ciclos que se iniciam e se encerram e se repetem consecutivamente? Esta é uma das teorias mais antigas sobre o desenvolvimento das sociedades — elas são conhecidas como as “teorias dos ciclos”. Há uma base muito sólida de estudos que abordam esta teoria mas, como seu próprio nome diz, ela não é uma certeza, e sim uma teoria. E ela concorre com as teorias da evolução sociocultural, que se baseia na ideia de que o desenvolvimento da sociedade ocorre de forma linear, modificando-se ao longo do tempo, formando estruturas diferentes das anteriores.
Não existe uma teoria certa ou errada. Cada uma tem abordagens particulares e variações da teoria principal. Diferentemente do que nos ensinaram na escola, a ciência não é feita de certezas, mas de evidências.
Essa teoria dos ciclos me veio à mente no início desta minissérie sobre o fim dos muscle cars. Eles estavam lá, queimando gasolina e borracha como se não houvesse amanhã quando uma tempestade perfeita se formou no horizonte e eles foram pegos sem a menor chance de resistir a ela. Emissões, consumo alto, segurança… tudo o que eles não tinham começou a ser exigido pelo governo ou desejado pelo público.
Em 1973, quando a Crise do Petróleo fez disparar os preços dos combustíveis, ela também deu a estocada fatal nos muscle cars. Alguns ainda foram feitos até 1974, mas a maioria já havia dado lugar a modelos mais compactos, mais racionais, mais leves, e bem menos potentes. As exceções, claro, eram o Corvette e os modelos full-size de luxo, especialmente da Cadillac.
Apesar do clima de fim de festa, a “malaise era” conseguiu render alguns bons frutos quando se fala de muscle cars e esportivos americanos. Dois deles, aliás, driblaram as adversidades e se tornaram ícones inquestionáveis da cultura automobilística americana. Se eu falar do Pontiac Firebird, você pensará neste carro…
… ou neste carro?
Tenho certeza de que praticamente todos pensaram não apenas no carro, mas também em Burt Reynolds ao volante dele, no papel de Bandit. O carro fez tanto sucesso e é tão valorizado até hoje que ele nem parece um carro feito em um dos períodos mais monótonos da indústria americana.
O Firebird foi lançado junto do Camaro, no final dos anos 1960, mas ele nunca foi tão famoso quanto o primo de gravata — até que, no início de 1977, o diretor de cinema Hal Needham viu um anúncio do novo Pontiac Firebird e foi correndo tentar um acordo com a fabricante. Ele sabia que aquele era o carro perfeito para o personagem Bandit.
Em toda a sua história o Trans Am foi um pacote mais esportivo do Firebird, equipado com suspensão mais firme, freios maiores, diferencial mais curto e motores mais potentes. Ele também ganhava modificações estéticas — geralmente um capô exclusivo, spoilers na dianteira e na traseira, rodas especiais e luzes auxiliares próprias. Seu nome é inspirado pela categoria Trans Am, que ele disputou em 1969 com um motor de cinco litros que nunca foi oferecido ao público.
O primeiro Trans Am chegou em 1969, baseado na primeira geração do Firebird. O motor 6.6 (400ci) era da própria Pontiac — o que o tornava um carro bem diferente do Camaro, apesar do parentesco próximo — e era oferecido em duas configurações: uma com 335 cv e outra com 345 cv — a diferença se dava pelo tipo de admissão instalado no motor e pelo comando de válvulas combinado à admissão otimizada.
No ano seguinte ele já ganhou uma nova geração, novamente compartilhando a plataforma com o Camaro, e novamente com um motor da própria Pontiac. Era o mesmo 400 V8 (6,6 litros) da primeira geração, porém agora com 340 cv na versão básica, e 375 cv com o motor opcional.
Em 1971 a Pontiac deu a ele um novo motor, ainda maior: era o Pontiac 455 HO, de 7,5 litros e 300 cv. Parece menos potência, mas naquele ano os fabricantes passaram a informar a potência líquida dos motores. Em 1974 a mudança na legislação americana exigiu mudanças no Trans Am: os para-choques retráteis, capazes de suportar impactos de até 5 mph. A dianteira deixou de ser verticalizada e o carro ganhou um bico proeminente, mantendo a grade dupla e os faróis circulares em um arranjo parecido com o do Chevette 1978. Com o novo design, Pontiac voltou a oferecer o antigo 6.6, agora com apenas 180 cv.
O ano de 1974, efetivamente o primeiro da malaise era, foi o ponto de virada para o Trans Am. O modelo se tornou o último muscle car a resistir no mercado e suas vendas finalmente embalaram, passando de 10.000 unidades anuais pela primeira vez. Aquele e também foi o último ano do motor 7.5 com 300 cv, a partir de 1975 ele passaria a ter apenas 200 cv, enquanto o 6.6 passou a desenvolver 185 cv.
Além da redução da potência, a Pontiac mudou de novo o visual do Trans Am, instalando um para-brisa traseiro mais envolvente, começando a dar a forma com a qual o carro se tornaria um ícone. O restante das modificações veio em 1976, quando a Pontiac completou 50 anos e, como presente de aniversário, criou o 50th Anniversary Trans Am. Como ele era?
Bem, era preto com detalhes em dourado — incluindo o pássaro de fogo, a fênix, que vive em seu capô. A carroceria foi modificada pela Hurst, que desenvolveu um teto targa, com um painel removível sobre cada um dos dois assentos e um suporte central ligando o quadro do para-brisa dianteiro ao quadro do para-brisa traseiro.
Era exatamente a descrição do carro que seria usado em “Agarra-me se Puderes” (Smokey and the Bandit) em 1977. Foi ainda no final de 1976, contudo, que o diretor Hal Needham bateu os olhos na nova versão do Pontiac, que manteve a pintura preta e dourada do especial de aniversário, mas ganhava uma nova frente mais distinta do Camaro da época.
Os motores, contudo, mudavam completamente. Para substituir o antigo 6.6 de entrada, agora havia um V8 da Oldsmobile, ainda com 185 cv. O motor 7.5 deixou de ser oferecido na linha 1977, e em seu lugar veio um novo 6.6 da Pontiac, com 200 cv.
Eram apenas 200 cv a 3.600 rpm, mas 44,8 kgfm a 2.200 rpm. Por isso, ele conseguia acelerar de zero a 100 km/h em 8,1 segundos, cobria o quarto-de-milha em 16 segundos, mas ficava nos 195 km/h de velocidade máxima. Os números não eram grande coisa para um muscle car, mas considerando em 1977 isso era o possível a se fazer, ele até que se saiu bem.
Needham não esperou muito para chamar a Pontiac e conseguir o acordo: a fabricante forneceria quatro Trans Am 1977 e dois Pontiac Le Mans quatro-portas. O Trans Am, contudo, tinha um tratamento especial: o diretor o considerava um personagem do filme.
“Agarra-me se Puderes” é um dos clássicos dos anos 1970, e conta a história de Bo “Bandit” Darville, um motorista que é contratado por um milionário texano para contrabandear uma carga de cerveja Coors para Atlanta, onde acontecerá uma corrida patrocinada por eles. A única exigência é que a cerveja fosse despachada de Texarkana, entre os estados do Texas e Arkansas, e chegasse em Atlanta em 28 horas.
Para conseguir atravessar o país com uma carga ilegal de cerveja, Bandit chama seu amigo Cledus “Snowman” Snow para dirigir o caminhão enquanto ele, com seu Pontiac Trans Am vai na frente atraindo a atenção das autoridades de forma que o caminhão acabe despercebido. O resto você já imagina como é.
Os carros do filme, contudo, eram modelos 1976 modificados para se parecerem 1977, ganhando a nova dianteira e o novo conjunto de adesivos que foi usado a partir daquele novo ano-modelo — em especial o deslocamento de 6,6 litros indicado no scoop da admissão, que não era usado na versão de 200 cv.
Os quatro carros foram destruídos na produção do filme — um deles foi usado apenas para o pulo sobre a ponte desmanchada: o carro foi equipado com propulsores de foguete como os usados por Evel Knievel em suas manobras. O próprio Hal Needham foi o dublê de Reynolds naquela cena.
Quando as gravações terminaram, os carros sobreviventes estavam muito destruídos e os outros carros já haviam se tornado doadores de peças — é por isso que o filme tem tantos erros de continuidade na perseguição.
O filme foi um sleeper — no cinema, sleeper tem conotação semelhante à dos carros: um filme que, no começo, parecia sem muita chance de sucesso, mas, depois de algum tempo e repentinamente se torna um sucesso de bilheteria. A estreia aconteceu em maio em Nova York e foi modesta. No mês seguinte, contudo, o filme chegou aos cinemas do sul dos EUA e começou sua escalada de bilheteria. No primeiro fim de semana ele rendeu pouco mais de US$ 2.600.000 em 386 salas. Até o fim daquele mês, a bilheteria já somava US$ 11.900.000. Em julho a fita foi para o norte e lá ele explodiu. Com um orçamento de apenas US$ 4.300.000, ele arrecadou US$ 126.737.428 somente na América do Norte, e se tornou a segunda maior bilheteria global de 1977, perdendo apenas para o fenômeno Star Wars.
Imagine isso: em plena “malaise era”, um filme estrelado por um carro em alta velocidade se torna a segunda maior bilheteria em todo o mundo. O Pontiac Trans Am entrou instantaneamente para o imaginário popular, tornando-se “o carro do Bandit” — como é visto até hoje. As vendas do Firebird superaram a do Camaro pela primeira vez e chegaram a 155.735 exemplares em 1977, dos quais 68.745 eram Trans Am. Em 1978 foram 187.294 unidades do Firebird, das quais 93.445 eram Trans Am. Em 1979, a Pontiac vendeu mais Firebirds do que nunca: foram 211.454 unidades, das quais 117.108 eram Trans Am.
Faça as contas: graças ao filme a Pontiac vendeu quase 375.000 unidades em apenas três anos — novamente: em plena “malaise era”. Hal Needham e o Pontiac Trans Am salvaram os anos 1970.
Em 1980 ele tentou repetir a dose e a Pontiac, claro, embarcou no projeto. Desta vez, Burt Reynolds iria dirigir um Trans Am Turbo 1980, a versão reestilizada em 1979, sem grade frontal, mas com a mesma pintura, equipada com um V8 turbo de 4,9 litros e 210 cv feito pela própria Pontiac. Desta vez, contudo, o filme custou mais caro: foram investidos US$ 17.000.000, mas o filme só arrecadou US$ 66.000.000.
Burt Reynolds e o Pontiac, contudo, permaneceram associados pelo resto da vida do ator — que se tornou um colecionador do modelo, em especial.
A Pontiac ainda tentaria emplacar o Trans Am nas telas mais uma vez. O modelo, já em sua terceira geração, foi a base para o icônico KITT, a Super Máquina do seriado de TV — que foi um dos mais populares dos anos 1980. Mas naquela época a “malaise era” já tinha passado, então vou deixar essa história para a próxima.