FlatOut!
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Pensatas

Por que o Dodge Challenger (ainda) é um dos carros mais importantes em produção atualmente?

Dizem que os anos 1960 foram mesmo muito loucos. Olhando apenas para a indústria automobilística, foi quando os italianos colocaram o motor de seus supercarros na traseira, quando os britânicos acharam que seria uma boa ideia estatizar suas fabricantes, quando os franceses não estavam nem aí para ergonomia e padrões de design, quando os alemães criaram seus super-sedãs, quando o Japão foi inventado e quando os americanos chutaram o balde fazendo hot rods de fábrica com seus muscle cars.

A Chevrolet nem se importou em colocar um motor de corrida no Camaro para fazer o ZL1. A Ford também não viu problemas em colocar um motor de 7 litros no Mustang para homologar uma versão de pista, e a Dodge não estava nem aí para o que iriam dizer de um carro com um diabo fofinho colado na traseira. Além disso, eles também inventaram nomes de cores e trocadilhos que nos fazem questionar se era mesmo água, café e cigarros que eles consumiam durante o expediente.

Mas aí veio a crise do petróleo e todos foram obrigados a ficar caretas. Depois vieram os anos 1980 e 1990, a concorrência estrangeira era acirrada e já não permitia apostas ousadas. Aí entramos no século 21, tivemos uma revolução tecnológica que nos colocou além dos 400 km/h, mas, logo em seguida, a humanidade decidiu que precisa se salvar de si mesma, o que refletiu na forma que pensamos, dirigimos, nos carros que compramos e na forma que e eles são desenvolvidos.

Eu sei que você pensou “ah, o mundo está chato”. Mas eu não vou dizer isso.

Porque eu acho que ele nunca foi tão bom para quem curte carros e porque eu acho que não é o mundo que está chato; a chatice é apenas  uma opção feita por muita gente. Veja a Ford. Eu não a culpo por abandonar o Focus, o Fiesta, o Fusion/Mondeo para apostar nos SUV e crossovers. Money talks. As pessoas querem isso, eles precisam entregar isso ou fecham as portas. A Mercedes, que produz verdadeiros “muskelwagen” com a AMG, já tem planos de encher seus carros de eletricidade porque é o que a Europa decidiu.

Mas sempre haverá os nichos. Lembra do disco de vinil? No início dos anos 1990 todos os lançamentos tinham sua versão “em CD, LP e K7”, como diziam as propagandas. Em 1999 os discos e fitas já haviam morrido. Agora, 20 anos depois, os discos de vinil continuam nas prateleiras dos audiófilos, enquanto a molecada que ouvia CD no discman consome música por streaming no celular.

Da mesma forma, nos anos 1960, enquanto você podia comprar carros com centenas de cavalos-vapor de potência com o dinheiro de meia-dúzia de pizzas (nos EUA, que fique claro), ainda havia gente que preferia comprar o Fusca, que ainda nem tinha os motores 1500 e 1600 que viriam na década seguinte.

Você vai se surpreender com a quantidade de Fuscas nessa imagem

Eu falei isso tudo porque acabamos de descobrir que o Dodge Challenger é o único dos muscle cars com vendas estáveis nos últimos quatro anos, superando o Camaro nas vendas anuais, e acelerando na contra-mão, enquanto o Chevrolet e o Mustang viram seus números encolherem neste mesmo quadriênio. A situação do Challenger não chamaria a atenção se não fosse um detalhe: tecnicamente ele ainda é o mesmo carro de 2008!

O modelo 2008…

Ele ainda é baseado na plataforma LX, desenvolvida na época da DaimlerChrysler usando como base a plataforma W211 da Classe E com elementos da Classe S. Ok, a Chrysler diz que agora ela se chama LD, mas na prática ainda é a mesma. Por isso ele é o mais pesado do trio americano, chegando às duas toneladas no caso do Hellcat, enquanto o Camaro não passa dos 1.710 kg e o Mustang chega aos 1.720 kg, no máximo.

… e o modelo 2018

O Challenger também contraria a ideia de que um carro precisa de um visual sempre atualizado para se tornar interessante. Há outras formas de fazer isso e a Dodge soube identificá-las e explorá-las como ninguém. Afinal, é fácil ser ousado quando todos são ousados, como era nos anos 1960. É até uma questão de oportunidade. Mas quando todos adotam uma postura parecida isso intimida quem pensa em agir diferente, quem pensa em ousar.

Mas foi o que a Dodge fez.

Sem um carro leve e ágil como o Camaro e o Mustang — e nem um sucessor no horizonte —, eles decidiram fazer o que tantos entusiastas fazem hoje em dia: olharam para trás. E foi por isso que, nestes tempos em que se fala em eficiência energética, emissões, consumo, eletrificação, pneus verdes, coeficiente aerodinâmico, motores turbo downsized, a Dodge simplesmente apertou o botão do “f8da-se” e enlouqueceu de novo.

Quando a Ford deu ao Mustang um motor 2.3 turbo e Chevrolet deu ao Camaro um 2.0 turbo que deveria estar no Cruze Sport6, a Dodge nem cogitou seguir seus rivais com uma versão turbo politicamente correta do Challenger. Eles fizeram exatamente o contrário: pegaram um compressor maior que os motores turbo dos rivais e o colocaram no meio do seu V8, fazendo o Challenger beber ainda mais combustível, emitir ainda mais CO2 e produzir ainda mais potência. Assim nasceu o Hellcat, com 717 cv.

E como se não bastasse, dois anos depois eles arrancaram todos os bancos “supérfluos” do Challenger, colocaram um compressor ainda maior no V8, modificaram o sistema de alimentação, desviaram o ar-condicionado para o intercooler, instalaram pneus ainda mais aderentes, pioraram o arrasto aerodinâmico do carro e ainda por cima o batizaram de “demônio”!

E quando achávamos que eles iriam tirar o pé, eles aceleraram ainda mais, como todos os muscle cars dos filmes dos anos 1970. Aumentaram a potência do Hellcat para 747 cv e criaram uma versão de 800 cv —  para um muscle car mais pesado que um apartamento japonês e aerodinâmico como a Muralha da China. E está funcionando.

Funciona porque o Dodge Challenger não é apenas um carro. Ele é uma declaração. Produtos como o Challenger não são apenas produtos. Eles têm uma função simbólica.

Toda revolução é marcada pela ruptura, por uma situação na qual o novo toma o lugar do antigo, sem avisar nem pedir licença, e o relega às sombras do passado. Nos últimos 20 ou 30 anos o mundo passou por diversas revoluções que dizimaram, inviabilizaram ou obsolesceram coisas que as gerações anteriores aprenderam a valorizar ou a almejar. É como se você fosse Truman Burbank (aquele do Show de Truman), descobrindo que seus amigos, sua família e seus vizinhos são atores.

E nesse contexto o Dodge Challenger é um pedaço dessa cultura inviabilizada. É uma máquina do tempo, que nos leva para aquele período louco do final dos anos 1960, para os filmes de muscle cars dos anos 1970, para a cultura de preparação dos anos 1990 e 2000. Ele é uma ligação concreta com o passado, porém com toda a conveniência trazida por essas revoluções dos últimos anos — o que é irônico, no fim das contas.

Como os tantos restomods e clássicos eletrificados, o Challenger (e seu sucesso) só é possível porque temos o passado como referência, e a cultura moderna para viabilizaralgo tão insano como ele. No fim das contas, mesmo sem downsizing, sem alívio de peso, sem hibridização, sem pneus de baixo arrasto ou preocupação com consumo e emissões, o Dodge Challenger é um carro de seu tempo. Do nosso tempo.