No auge dos meus 6 anos de idade, minha maior expectativa todos os dias era a chegada do ônibus escolar. Isso porque eu não pegava o mesmo ônibus todos os dias. Na maioria das vezes, o “busão” era um urbano tradicional, com bancos de fibra e assoalho de alumínio estampado. De vez em quando, pegávamos um clássico microônibus Mercedes-Benz 608 – o popular “Mercedinho”. O mais raro de todos era um ônibus rodoviário aposentado, grande, confortável, com bancos macios e aquele cheiro familiar de couro antigo – ele era usado uma ou duas vezes ao ano.
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Se eu tivesse crescido nos Estados Unidos isso não aconteceria. Isso porque (quase) todos os ônibus escolares americanos seguem o mesmo padrão: chassi de caminhão, frente “bicuda”, ampla área envidraçada e – talvez sua característica mais marcante – pintura amarela. E há um bom motivo para isso, que pode ser resumido em uma só palavra: padronização. Parece óbvio agora, não é?
Acontece que, em 1939, não era tão óbvio assim. Àquela altura, carros, caminhões e outros tipos de veículos já estavam mais que estabelecidos e – em grande parte graças a Henry Ford e seu Modelo T – era abundantes nas ruas e estradas dos EUA. Mesmo os ônibus eram invenção antiga: os primeiros veículos de transporte coletivo, ainda com tração animal, começaram a circular no começo do século 19. Por volta de 1830, já havia ônibus a vapor, enquanto os primeiros ônibus elétricos funcionais (os chamados trólebus) apareceram depois de 1880. Antes da virada do século 20, os primeiros ônibus com motor de combustão interna foram produzidos nos Estados Unidos.
Falando assim, parece até que foi uma evolução contínua, linear. Mas não – assim como ocorre em qualquer país, especialmente os de proporções continentais, as inovações tecnológicas chegam em alguns lugares antes que outros. Assim, enquanto as regiões mais ricas e com melhor infraestrutura adotaram logo os ônibus movidos a gasolina, partes mais distantes e cidades do interior continuaram valendo-se dos veículos a vapor, ou mesmo puxados por animais. Tanto para o transporte coletivo urbano, rural e rodoviário, quanto para os ônibus que levavam as crianças à escola.
E mesmo nos locais onde as coisas estavam mais avançadas, nem todo ônibus escolar era igual – alguns eram fabricados por empresas especializadas, outros eram improvisados colocando-se bancos e janelas nos baús dos caminhões. O importante era que fossem confiáveis e capazes de cumprir o mesmo trajeto de segunda a sexta-feira.
Mas nem todo mundo concordava com isso. Uma dessas pessoas era o educador Frank W. Cyr, que na época era professor na Universidade de Columbia, em Nova York. Em 1937, Cyr conduziu um estudo para descobrir como era o transporte das crianças à escola nos Estados Unidos – e não gostou do que viu. Para ele, era absurdo que em algumas cidades circulassem os ônibus mais modernos, e em outras ainda resistissem os veículos puxados por cavalos.
Esse era um tópico relativamente sensível para Cyr, que havia nascido no interior de Nebraska – ele próprio havia sentido na pele a dificuldade para ir estudar longe de casa, e passou a maior parte de sua carreira dando aulas em escolas na zona rural.
Foi por isso que, em 1939, Cyr organizou uma conferência com representantes de dez Estados diferentes com o intuito de estabelecer um padrão para os ônibus escolares. Quem também gostou da ideia foram as fabricantes de ônibus – que poderiam seguir um padrão e produzir os veículos em massa, o que tornaria o processo mais rápido e reduziria custos.
Assim foi feito. E o negócio era sério: a família Rockefeller cedeu US$ 5.000 (o equivalente a quase US$ 100.000 em valores atualizados) para a realização da conferência, que durou sete dias e só terminou quando os participantes chegaram a um total consenso.
Ainda que um total de 44 características padronizadas tenham sido definidas durante a conferência, Cyr deu especial importância à cor dos ônibus – que, afinal, era sua característica mais marcante, e a primeira coisa que se nota. Cyr levou diversas amostras de cor para que os participantes decidissem, em um espectro que ia do verde-limão ao terracota, passando por uma série de tonalidades de amarelo, laranja e vermelho.
Em uma entrevista concedida em 1989, Cyr lembrou que havia uma série de inconsistências nas cores usadas pelos ônibus escolares antes da reunião – e que um dos distritos escolares tinha pintado seus ônibus de vermelho, branco e azul para tentar inspirar “patriotismo” nas crianças. “Era como uma camuflagem, se você parar para pensar. Acho que a ideia foi movida por um sentimento patriota, o que é bem intencionado, mas tornava os ônibus muito menos visíveis. Além disso, não acho que as cores tenham mesmo contribuído para aumentar o patriotismo”, contou o educador.
A decisão final foi por um tom de amarelo quente, levemente alaranjado, que recebeu o nome oficial de “National School Bus Yellow Chrome” – uma referência ao cromato de chumbo, pigmento que era utilizado na fabricação da tinta. Atualmente, o nome oficial da cor é “National School Bus Glossy Yellow”.
A ciência por trás do “School Bus Yellow”
Um fato interessante: ainda que os participantes da reunião dificilmente tivessem levado isto em conta, a tonalidade amarela realmente era a mais adequada para um ônibus escolar, cientificamente falando. O motivo tem a ver com a forma como nossos olhos funcionam: para detectar o espectro de cerca de 10 milhões diferentes que conseguimos enxergar, os seres humanos têm três tipos diferentes de células – chamadas “cones”: um para detectar os comprimentos de onda longos, que nos fazem enxergar a cor vermelha; um para as ondas médias, que correspondem aos tons de verde; e um para as ondas curtas, que nos fazem enxergar tons de azul – com os três cones, conseguimos detectar os milhões de variações em tonalidades (curiosidade: algumas pessoas têm quatro tipos diferentes de cones e conseguem enxergar ainda mais cores, mas isso é bastante raro).
A cor amarela, por sua própria natureza, é mais fácil de ser vista – não apenas por ser uma cor vibrante, que chama atenção, mas porque seu comprimento de onda fica exatamente entre o vermelho e o verde, e ambos os cones são estimulados igualmente. Na prática, isto quer dizer que o estímulo que chega ao cérebro tem o dobro da intensidade, e a cor amarela é percebida e processada mais rápido.
Com isso, fica mais fácil para os motoristas dos outros veículos notarem os ônibus amarelos – algo para que também contribui seu tamanho, claro. A NHTSA (National Highway Traffic Safety Administration) não exige que todos os ônibus sejam amarelos – é apenas uma recomendação.
Fora a cor, existem também todas as características comuns aos ônibus escolares. Os já mencionados 44 itens padronizados em 1939 também diziam respeito às dimensões do veículo – não apenas as dimensões externas, como comprimento, altura e largura, mas também o a distância entre os bancos e a largura do corredor entre os assentos, por exemplo. Detalhe: os ônibus escolares não precisam ter cintos de segurança, pois foram especificamente projetados para mitigar os efeitos de uma colisão, e também para facilitar o evacuamento do veículo em situações de emergência.
O uso dos chassis de caminhão bicudo, por outro lado, não foi uma disposição definida pelo comitê especial, mas sim uma questão de conveniência e custos de produção. A fórmula não mudou muito de lá para cá – foram incorporadas luzes auxiliares na dianteira e na traseira e uma saída de emergência na traseira, além de uma placa de “PARE” escamoteável em cada uma das laterais (e é proibido ultrapassá-los quando a placa estiver à mostra). Mas as atualizações tiveram mais a ver com o projeto do veículo em si (motor, câmbio e aspectos técnicos) do que com as características próprias dos ônibus escolares. Os ônibus modernos, por exemplo, têm velocidade limitada eletronicamente a 80 km/h, o que só foi possível com a evolução dos powertrains.
De forma geral, os ônibus escolares seguem o mesmo padrão há mais de oito décadas, e ainda são considerados seguros o bastante. Então, não devem ficar muito diferentes nos próximos 80 anos.