“Leo, quando você acha que os preços dos carros vão voltar ao normal?”, dizia a pergunta na caixinha. Bem… a resposta precisa de um pouco mais que alguns caracteres em redes sociais, então eu trago para cá. Primeiro, porque acho que ninguém está dando a devida atenção a isso. Existe uma maldição que abate o brasileiro, que nos faz endereçar todos os problemas do mundo — e suas soluções — a uma abstração chamada “governo”.
E nem venha tentar argumentar que “governo” é um negócio concreto. Se você não consegue apontar quais medidas devem ser tomadas, como elas devem ser implementadas, e por quem elas devem ser implementadas, então “o governo” é uma abstração que você criou como uma entidade mística sobrenatural e onipotente capaz de resolver os problemas com uma canetada mágica.
Mas esse não é o ponto principal. O ponto principal é que tem um monte de coisas acontecendo ao mesmo tempo no mundo inteiro, e que amarrou o rabo de todo o mundo no foguete que está levando os preços dos carros para o alto. Todo o mundo mesmo.
Na Alemanha, que é a potência da União Europeia, os preços subiram quase 15%. Nos EUA, os usados já subiram 25% e o preço médio dos carros novos atualmente é de US$ 41.400. No Brasil, os carros novos subiram 13% e os usados 20% — repare que a alta é semelhante nos países.
Uma coisa puxa a outra: os carros usados subiram, porque os carros novos estão em falta. Não dá pra fazer carro quando você não tem os insumos necessários para fazer carro. Não dá pra manter preço quando tudo o que envolve a fabricação de carros está mais caro — da energia elétrica até o aço. E todos os problemas têm a mesma origem: as paralisações e limitações da atividade econômica impostas pelas quarentenas.
Problemas em cascata
O primeiro alerta veio da indústria siderúrgica. O preço do aço começou a subir drasticamente em 2020, quando as primeiras quarentenas foram anunciadas. Falamos sobre isso na matéria dos semicondutores (que você deveria ler antes de prosseguir a leitura desta):
É por isso que o preço do aço subiu quase 200% desde março de 2020, quando a pandemia começou a frear a economia. Quando a OMS decretou a pandemia do novo coronavírus, muitas siderúrgicas interromperam a produção temendo uma grande recessão pela frente. Como a queda na demanda foi menor que o previsto, há escassez do insumo. Há também outros fatores como o fato de a produção de aço ser um duopólio, na prática, mas muito dos preços atuais do aço tem a ver com a redução da oferta — algo que, segundo os analistas, só irá normalizar ao longo de 2022.
O restante veio depois: o preço da energia elétrica subiu radicalmente nos países que usam usinas termelétricas, porque as usinas de gás natural também foram fechadas durante a pandemia. A energia elétrica, caso você nunca tenha percebido, é fundamental para o maquinário. É um pouco estranho ter que explicar isso — é como dizer para alguém que a grama é verde —, mas algumas pessoas não ligam as coisas. Além do maquinário, a produção de carros usa soldas elétricas, que consomem uma quantidade significativa de energia — é por isso que carros mais baratos têm menos pontos de solda.
Como a crise dos chips parou a indústria e aumentou os preços dos carros?
O problema dos microchips é o mesmo do aço: as fabricantes pararam, usaram o capital de giro que mantinha o ritmo de produção. Fábrica só se paga produzindo com força total. Quanto menos produz, mais prejuízo dá. E por alguns momentos de 2020 e 2021, elas não produziram absolutamente nada. E embora seja fácil falar “é só voltar a produzir”, a realidade é que a retomada será lenta, porque a máquina parou, então ela precisa recuperar o movimento. Só que agora há menos capital de giro para manter o movimento, então as fábricas precisam revisar suas estratégias para maximizar a lucratividade e poder normalizar a produção.
É por isso que algumas fabricantes de automóveis estão concentrando-se nos modelos de maior valor agregado, que são os modelos de topo de gama. Isso, além da escassez de insumos, claro. Como há poucos componentes, eles não podem produzir o mesmo tanto que produziam antes, mesmo se quisessem. Como há pouco dinheiro, o negócio é produzir um produto cujo custo não seja muito mais elevado, mas que tem potencial para margens são maiores.
Só que a indústria de automóveis é só a ponta de um setor maior. Eles usam borracha, plástico, vidro, aço e ligas metálicas. E todos estes segmentos foram afetados como as fabricantes de automóveis — o que significa que eles também estão com a capacidade produtiva reduzida e mais custosa, afinal, o problema da energia e da escassez de insumos também afeta os fornecedores.
O novo risco
Até aí tudo bem. A roda está girando devagar, mas está girando. O problema é que essa roda pode parar mais uma vez. Isso, porque a China está em meio a uma crise energética e solicitou que suas fábricas reduzissem a atividade para economizar energia elétrica. Como o mundo se tornou dependente da China, o país se tornou o maior fornecedor global de magnésio, controlando 85% do mercado do planeta. Isso significa que o beneficiamento de magnésio reduziu drasticamente na China, porque eles precisam economizar energia elétrica. Das 50 plantas de produção de magnésio, 35 estão paradas, e as outras 15 estão operando com metade da capacidade. Ou seja: não vai ter magnésio suficiente para 85% do mercado.
E o magnésio, embora pareça coisa de roda de liga leve dos anos 1960, é um componente fundamental das ligas de aço e alumínio usadas no setor automobilístico. Basicamente, todas as ligas das séries 5000, 6000 e 7000 usam magnésio. Sem ele, não dá para obter estas ligas. Sem estas ligas, não dá para fazer carrocerias, tanques de combustível, freios, blocos de motor, eixos, monoblocos, rodas, braços de suspensão e elementos de reforços estruturais. Ou seja: não dá para produzir carro.
Para piorar o problema, o magnésio tem uma oxidação relativamente rápida, o que impede a formação de grandes estoques. Com isso, se a China não voltar a produzir magnésio, a indústria europeia ficará sem o metal em novembro. E aí a produção de automóveis vai parar completamente mais uma vez. E você já sabe o que acontece quando isso acontece.
E se você quer mais uma pílula de tristeza nesta novela, aqui vai: o frete marítimo aumentou mais de 300% desde o ano passado. Ou seja: além de tudo custar mais caro, ficou mais caro transportar também. Em todo o mundo.
Os preços dos carros nunca mais vão voltar ao normal?
Bem… normal é aquilo que segue a norma. Esta situação em que o mundo se encontra no momento não é o normal, nem o “novo normal”. Por isso, todos os efeitos desta situação não são normais. Há analistas afirmando que os carros nunca mais voltarão a custar o que custavam, que este é o “novo normal” e que é melhor ir se acostumando com a realidade em que só gente rica tem carro.
A base para essa argumentação é que os fabricantes, com essa história de concentrar-se em carros de maior valor agregado, não vão reduzir os preços quando a situação voltar ao normal e a produção e a economia se estabilizarem. É verdade, sem concorrência não tem preço que baixe.
E é justamente esse o problema desse argumento. As fabricantes vão lucrar mais com meia-dúzia de carros caros e vão largar os outros segmentos? No momento pode ser. Mas quando o custo de produção voltar ao normal? Porque, afinal, ele não vai ficar alto para sempre. A concorrência, a busca por crescimento econômico, por mais lucro e mais tudo, irá fatalmente derrubar os preços. Quando isso acontecer, os preços dos carros continuarão altos? Faz sentido?
A questão aqui é olhar mais além. Hoje, como estão as coisas, neste anormal, os preços não vão cair mesmo. O risco de mais uma paralisação na produção global de automóveis esticaria a crise por mais alguns anos. Como atualmente os fabricantes trabalham com uma previsão de normalização para 2023-2024, essa retomada do normal seria adiada para a segunda metade da década. Os preços dificilmente voltarão ao que eram. Mas lá na frente, mais adiante, eles podem simplesmente parar de subir ou subir em uma razão inferior à da inflação, o que faria com que eles se tornassem efetivamente mais baratos.
É ruim para o consumidor? Certamente. Mas as consequências vão além de “pagar caro em um carro”. Uma paralisação pode colocar em risco cada elemento da cadeia de produção e distribuição. Da uma fabricante multinacional ao jardineiro da concessionária que pode fechar pela falta de carros para vender.