Neste último fim de semana nós brasileiros aproveitamos o feriado prolongado para pegar a estrada e visitar a família, curtir a praia ou o campo, ou simplesmente conhecer um novo destino. Quem viaja com frequência e já tem alguma quilometragem de estradas sabe que nessas datas é preciso redobrar os cuidados ao volante. As estradas estão mais cheias e há todo tipo de motorista dividindo aquele pedaço de asfalto que liga uma cidade a outra — gente prudente, gente apressada, gente irresponsável e até gente que detesta dirigir e gente sem habilitação. Parece o cenário perfeito para o caos motorizado, não?
Pois é mesmo, de certa forma. A Polícia Rodoviária Federal procurou cumprir sua função e preparou uma operação intensiva para fiscalizar e garantir a segurança pública nas estradas. A chamada Operação Finados durou três dias — começando sexta-feira (30) às 23:59 e se estendendo até as 23:59 da segunda-feira (2) — e nesta última terça-feira (3) divulgou o balanço do feriado nas rodovias federais. Foram 1.141 acidentes que resultaram em 1.066 pessoas feridas e 84 mortes. Não houve comparação com o ano passado, pois o feriado aconteceu em um domingo — o que, na prática, o tornou um fim de semana comum.
Eu, Leo, estava entre os motoristas que pegaram a estrada nesse feriado. Foi uma viagem curta, coisa de 500 km, mas como vocês bem sabem, essas viagens sempre permitem um momento mais introspectivo, no qual você pensa calmamente em assuntos diversos. Em um desses momentos eu passei por um radar perdido no meio do nada, longe de cidades e em um trecho reto em declive. Foi esse declive acentuado que levou as autoridades de trânsito, no caso o Departamento de Estradas de Rodagem de SP, a instalar um radar.
Mas o radar não era sinalizado. Ele ficava na distância máxima permitida da placa de limite de velocidade, sem nenhuma luz ou qualquer outro objeto que permitisse identificá-lo. Foi quando comecei a pensar na verdadeira função daquele radar.
A engenharia de tráfego preza que quando há a necessidade de uma redução de velocidade que pode não ser percebida naturalmente pelo motorista, devem ser adotados elementos viários para que ele perceba ou para que ele adote velocidade compatível. Essa é a função das lombadas (sejam físicas ou eletrônicas) e outros elementos redutores de velocidade em curvas acentuadas, arredores de escolas etc. Você está rápido, reduz a velocidade, garante a segurança e vai embora.
Mas aquele radar não tinha essa função. Ele era pouco visível durante o dia e invisível à noite. Ao passar por ele em uma velocidade inadequada para aquele trecho, o motorista é punido dali a 30, 40 dias, mas só isso.
Esse motorista em velocidade excessiva continuou sendo um elemento de risco, com um comportamento de risco naquele trecho. Ele não reduziu a velocidade pois não viu o radar, logo, o radar não serviu como redutor de velocidade. E se não causou a redução de velocidade, não garantiu a segurança desejada pelas autoridades. Sendo assim, aquele radar não é um instrumento de segurança viária. Ele é uma máquina de multar motoristas que passam por ele a 118 km/h ou mais. Uma fiscalização burra, portanto. Afinal, segundo a rigidez da programação eletrônica, um motorista a 116 km/h não é perigoso, mas um motorista a 118 km/h é. Da mesma forma um caminhão bitrem a 115 km/h nesse declive acentuado não seria perigoso, mas um Volkswagen up! a 120 km/h sim.
O que mata mais?
Este foi mais um exemplo para corroborar nossos argumentos já mencionados aqui no FlatOut, de que a fiscalização de trânsito no Brasil é ineficaz para disciplinar motoristas e evitar mortes e acidentes. Atualmente, ela se concentra intensamente no “excesso” de velocidade — um conceito vago e que, por isso preferimos chamar de “velocidade inadequada” aqui no FlatOut. Prova disso é a adoção crescente de radares e dispositivos semelhantes pelas três esferas do poder público. Hoje nenhum prefeito, nenhum governador, nenhum secretário e nenhum ministro fala em trânsito sem relacionar reduções de limites de velocidade a supostas reduções de mortalidade e prometer aumento da fiscalização de velocidade como se estes fossem os dois únicos fatores variáveis no trânsito.
Na verdade, a velocidade inadequada (ou “excesso” de velocidade) não é sequer a maior causa de acidentes fatais no trânsito brasileiro. Ao menos é o que dizem os relatórios produzidos por órgãos oficiais, como a CET de São Paulo ou a Polícia Rodoviária Federal. Na capital paulista, a maior causa de mortes no trânsito são os atropelamentos após às 18 horas, enquanto nas rodovias federais, são as colisões frontais.
E aqui voltamos àquela operação da PRF citada nos primeiros parágrafos deste texto: a Polícia Rodoviária Federal sabe que a principal causa dos acidentes fatais são as colisões frontais e também sabe que elas são causadas por ultrapassagens proibidas/forçadas. Na verdade, isso é tão notório que há exatamente um ano, em novembro de 2014, o Congresso aprovou a lei que prevê punições mais severas para motoristas que fazem ultrapassagens forçadas, com multa de quase R$ 2.000 e suspensão da CNH por 12 meses.
Ao chegar em casa depois do feriado, topei com uma publicação da PRF/SC no Facebook que fazia o balanço da Operação Finados naquele estado: 13 mortes nas rodovias federais. Como os acidentes foram causados? Todos, sem exceção, por colisão frontal decorrente de ultrapassagens proibidas.
Diante disso, decidi pesquisar sobre as mortes ocorridas nas rodovias federais ao longo do feriado.
No Rio Grande do Norte houve sete mortes em acidentes nas rodovias federais: quatro em colisões frontais, causadas por ultrapassagens indevidas, duas em quedas de moto (uma delas com três ocupantes) e outra por atropelamento. Em Minas Gerais foram 10 mortes causadas “principalmente por colisões frontais”. No Paraná foram cinco mortes, sendo quatro em colisões frontais e uma colisão lateral de um caminhão com um motociclista. No Rio Grande do Sul houve apenas uma morte — um motociclista não habilitado foi atingido por um carro ao cruzar a pista em local proibido. Em São Paulo foram 19 mortes, e ao menos uma delas causada por colisão frontal.
Em Goiás, a notícia é que o “excesso de velocidade” marcou o feriado, mas houve duas mortes e as duas foram causadas por colisão frontal — uma delas envolvendo um ciclomotor (uma mobilette “cinquentinha”) que estava na contramão. No Ceará um acidente entre dois caminhões que levavam romeiros na caçamba matou quatro pessoas. No Distrito Federal a única morte foi causada por uma colisão contra uma árvore, mas ainda não se sabe a causa do acidente. No Mato Grosso a única morte foi o atropelamento de um ciclista à noite. Todos esses dados foram divulgados pela Polícia Rodoviária Federal.
A PRF também divulgou o número de infrações flagradas nesses três dias de operação: foram 45 mil multas por “excesso” de velocidade, e 25 mil multas pelas demais irregularidades.
A infração “infiscalizável”
Sim, você poderia argumentar que os motoristas estão rápidos demais, mas estes 45 mil motoristas não reduziram a velocidade onde era necessário reduzir e mesmo assim houve “somente” 1.141 acidentes em todo o Brasil. Mas o que interessa nessa estatística é o que não foi evidenciado pela polícia e por nenhum veículo de comunicação: a fiscalização de ultrapassagens proibidas. Claro, é impossível controlar cada trecho de faixa contínua das rodovias federais, mas as autoridades trabalham com estatísticas, eles sabem onde estão os pontos críticos. Você também deve saber qual o ponto mais perigoso daquela rodovia pela qual você viaja com frequência.
Antes de seguir é importante dizer que esta não é uma crítica direcionada à instituição Polícia Rodoviária Federal, mas sim um exemplo de como as autoridades brasileiras — aquelas que estão acima dos agentes e que raramente pisam no asfalto das ruas e rodovias do país — encaram a fiscalização de trânsito. Atualmente, a única forma de punir um motorista por ultrapassagem irregular é flagrando o ato — é permitido que eles sejam fiscalizados por câmera de monitoramento, mas de forma diferente da fiscalização dos motoristas que furam pedágios ou caminhoneiros que passam direto por balanças e postos fiscais. Sem a presença de um agente de trânsito no local ou diante do monitor da câmera, um motorista que força uma ultrapassagem continuará impune até ter o “azar” de topar com a fiscalização ou, na pior das hipóteses, sofrer um acidente.
Além disso, o ostensivo para realizar estas fiscalizações é insuficiente. As equipes de cada posto policial são pequenas e os recursos são limitados. E aqui chegamos a outro “paradoxo” da fiscalização de trânsito brasileira: o dinheiro arrecadado com infrações de trânsito pode ser destinado unicamente a ações e programas educativos para o trânsito ou… mais fiscalização. Mas, na prática, esse aumento da fiscalização está se resumindo a mais radares de velocidade, que não têm mostrado resultado prático em termos gerais, como mostram as estatísticas de mortes no trânsito brasileiro nos últimos anos: foram 35.000 mortes em 2004 e 52.000 em 2014 — número que nos coloca no quarto lugar do ranking mundial de mortes no trânsito.
Fiscalização humanizada
No fim das contas, o que pretendemos com todos estes dados é mostrar que a fiscalização de trânsito parece estar concentrada nas causas erradas. Não há fiscalização para coibir um motorista “costureiro”, como o Jeep Grand Cherokee que me passou pela direita quando eu cedia passagem para o cara de trás e poderia ter causado um grave acidente, caso eu não tivesse um mínimo de experiência com esses caras. Não há fiscalização para coibir um cara como esse caminhoneiro:
A insistência no “excesso” de velocidade só está produzindo estatísticas irreais, avolumadas por infrações em que o excesso é o menor possível — aquelas multas de 67 km/h em locais com limite de 60 km/h ou as multas de 119 km/h em locais com limite de 110 km/h. A fiscalização com agentes à vista patrulhando um trecho perigoso é mais eficaz que qualquer radar ou máquina programada para multar. É só ver a reação dos motoristas ao avistar uma viatura parada no acostamento ou circulando em meio aos demais carros. Além disso, há o fator constrangimento: uma bronca bem dada por um policial tem efeito mais educativo que o de uma multa. Quando comecei a dirigir e ainda era um motorista desmiolado como quase todos somos aos 20 anos, eu tinha por hábito entrar em uma determinada rua sem frear para embalar a subida… até o dia em que um agente me parou e perguntou se eu não havia visto a pré-escola que havia naquela rua. Lição aprendida e lembrada até hoje.
Recentemente tem se falado muito em humanizar o trânsito. Nós achamos que o trânsito já é humano — afinal é feito de pessoas — e que é preciso humanizar a fiscalização. Precisamos deixar de lado o pensamento automático e colocar a capacidade humana de julgamento, de raciocínio e de tomar decisões a serviço da segurança do trânsito. É cômodo (e rentável) colocar máquinas para cuidar do trânsito e fingir que se está resolvendo o problema. Mas fazer isso é como colocar uma máquina para cuidar de doentes, de bebês ou de qualquer outra condição humana que requer cuidados especiais. Quando as máquinas substituem os cuidados humanos o resultado não pode ser diferente do caos violento do trânsito brasileiro.