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Car Culture

Qual a receita de um “esportivo de verdade”?

Faz quase 20 anos. Eu passava todos os dias pela rua de trás em direção ao ponto de ônibus que me levaria ao departamento de trânsito, onde eu trabalhava na época. No caminho, todos os dias eu espiava um Gol GT prata impecavelmente original guardado debaixo de uma garagem feita de madeira e zinco. Era 2004 ou 2005, eu já tinha a vontade de dirigir um carro velhinho por aí, afinal, eu era mais um moleque entusiasmado com “60 Segundos” e aquela primeira onda da moda retrô.

O antigomobilismo não era popularizado como hoje, e ninguém chamava qualquer Fusca bem-conservado de “relíquia”, nem vendiam-se colônias de Clostridium tetani fingindo que era um carro “para restaurar”. Era mais fácil para um moleque de 18 anos sonhar com um clássico.

Um dia minha chefe me chamou e disse que eu precisaria organizar o arquivo-morto do nosso setor. “Ok, onde fica?”, perguntei. “No pátio”, respondeu. Era o pátio onde ficavam os carros apreendidos em operações de fiscalização.

Era uma oportunidade e tanto. Pátios de carros apreendidos não são acessíveis por qualquer pessoa e tendem a ter muitas coisas legais. E o melhor é que eu poderia anotar a placa dos carros para descobrir os contatos. Eu admirava o Gol GT diariamente, mas o carro que estava no meu radar naquela época era mesmo o Opala SS. Qualquer um, menos o modelo 1980. Eram carros razoavelmente baratos, mesmo considerando a inflação nesses anos todos. Um SS impecável da fase mais valorizada, anterior a 1976, era facilmente encontrado por R$ 7.000 ou R$ 8.000. Era como comprar um desses por R$ 25.000 hoje. Bons tempos.

Chegando no pátio dei uma olhada-farejadora e me enfiei no arquivo morto. Caixas intermináveis e empoeiradas de ofícios, protocolos, guias de recebimento e dezenas de documentos, que serviam apenas para ocupar espaço, me aguardavam para colocá-las em ordem cronológica. Por sorte eu sou bom nesse negócio e terminei antes da hora. Saí e comecei a procurar algo de bom no meio das tranqueiras.

Dei uns vinte passos antes de encontrar meu mini-graal: um Opala SS 1974, amarelo, todo original. Imundo, com bancos um pouco rasgados, vidros riscados, pintura opaca, rodas originais, volante original. Era um sonho que, talvez, poderia se tornar realidade. Ao menos é o que eu achava com a ingenuidade/estupidez de todo moleque de 18 anos. Eu só precisaria localizar o dono e fazer a proposta indecente que, basicamente, consistia em oferecer uma mixaria e argumentar que se o carro fosse a leilão, ele seria incluído na Dívida Ativa da União e morreria pagando o débito.

O problema é que o Opala estava no pátio fazia mais de três anos. Foi apreendido por falta de licenciamento e já tinha multas. Se não me engano, na época a diária do pátio era algo em torno de R$ 11. Fiz uma conta rápida e me decepcionei. O carro estava no pátio havia mais de 1.000 dias. Seriam mais de R$ 11.000 somente em diárias — em valores da época, hoje seria algo como R$ 30.000. Sem contar o guincho, os licenciamentos, as multas e a manutenção que ele precisaria para voltar a funcionar. Infelizmente o carro acabou vendido como sucata. Com sorte, suas peças ainda estão por aí em outros Opala SS.

 

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Chegamos a 2017. O up! TSI não se revelou o esportivo que esperávamos que ele fosse. O Gol GT apresentado no Salão do Automóvel no ano anterior também não saiu do papel e o Peugeot 208 GT ainda não tinha data para chegar. Havia o Golf GTI e o Civic Si, claro, mas isso lá na casa dos R$ 120.000. Mas havia o Sandero RS, uma surpresa que eu jamais imaginaria ver no mercado brasileiro. O carro era um hot hatch europeu à moda antiga: motor de um modelo maior, câmbio esportivo, suspensão recalibrada, freios redimensionados, direção mais direta. Era como o Peugeot 205 GTI, o Fiesta XR2i, o Citroën AX, o Clio Williams, só que feito no Brasil.

Era, de longe, um dos melhores esportivos que ousaram vender nesta terra. Mas como estamos na era da internet, das opiniões fáceis sem consequências, o carro foi alvo de críticas pelos entusiastas acometidos pela Síndrome da Era de Ouro. Você sabe: aquele transtorno cognitivo que faz com que a pessoa pense que o passado era melhor e mais brilhante e que hoje tudo é muito chato.

As críticas eram infundadas. Não era uma questão de gosto. Muita gente adorou o carro, claro — os números de vendas e os encontros em Interlagos guardaram para a posteridade o relativo sucesso que esse carro foi.

Mas muitos críticos concentraram-se em argumentos banais como “ele usa motor de Duster”, ou “ele não é um verdadeiro esportivo”, enquanto mantinham embaixo do braço o “Código Técnico dos Esportivos” que nunca foi escrito. Não eram críticas subjetivas, ligadas ao visual do carro e questões em que o gosto pessoal fala mais alto. Eram argumentos falaciosos: parecem lógicos, mas são frágeis como as bieletas de um Peugeot 206.

Esse panorama deu início a uma conversa entre a equipe do site — que é unânime sobre as qualidades do Sandero RS — e que resultou em uma série de posts com as receitas dos esportivos brasileiros do passado. Você sabe: os esportivos “de verdade”, os esportivos “raiz”. Não um Dacia com motor de SUV de shopping.

E com muita sutileza, os textos mostraram que as receitas do passado não eram assim tão diferentes do que a Renault fez com o RS. Algumas, aliás, eram bem mais modestas que as modificações do esportivo da Renault — caso do Dodge Charger R/T, que diferenciava-se mecanicamente do Dart pela taxa de compressão mais elevada (identificada pela famosa pintura dourada do motor), e também do Opala SS 76, aquele que virou sucata, que usava o mesmo conjunto mecânico do Comodoro, porém com suspensão mais firme.

A receita clássica era praticamente a mesma: uma carroceria “popular” com um motor mais potente — fosse ele uma versão preparada do original ou um motor exclusivo do esportivo, cedido por um modelo maior da fabricante — rodas maiores ou mais largas, adesivos/grafismos, elementos como saias e spoilers, interior exclusivo, molas e amortecedores com mais carga, uma transmissão mais esperta e nada muito além disso.

Quer dizer, esta é a receita básica de um carro esportivo acessível. Mas, por alguma razão, parte do público a aceita no passado, mas não em carros modernos.

O que nos traz ao Polo GTS. Não acho que ele tenha sido batizado com esta sigla por acaso. A Volkswagen não poderia batizá-lo com a sigla GTI porque ele claramente não seria um GTI — com exceção do Gol GTI 8v de segunda geração e do Golf GTI Mk3 8v, a Volkswagen aparentemente sempre teve o cuidado de não banalizar sua valiosa sigla esportiva. Por outro lado, ela não poderia simplesmente batizá-lo de GT como fez em 2008 para criar seu esportivo de adesivo porque ele seria mais que isso. Sobrou a sigla GTS.

Diferentemente da GTI, a sigla GTS é historicamente associada a modelos com receita mais comportada. Volte para 1984 e pense na receita do Gol GT — aquele pelo qual eu babava no início dos anos 2000 (e no início deste texto). Era uma carroceria pequena e leve com o motor do sedã médio da VW, recalibrado com o comando 49G, decoração esportiva, um conjunto mais firme na suspensão, interior exclusivo, câmbio com 4ª e 5ª marchas mais curtas, discos e pastilhas de freio maiores e rodas exclusivas de maior diâmetro.

Em 1987 o Gol GT virou GTS e manteve a receita, mas ficou mais próximo do GL a partir de 1988, quando a versão comportada ganhou o motor 1.8 “manso”, que não usava o comando 49G e não tinha as melhorias dinâmicas do esportivo. Mas tudo bem, porque ainda no final daquele ano veio o GTI com o motor 2.0 injetado, com 120 cv e todas as mudanças que já conhecemos no câmbio, alimentação, suspensão, freios, decoração etc. O GTS se tornou o meio termo entre o GL e o GTI. Um carro menos comprometido esportivamente, mas não totalmente careta.

Com o Passat GTS não foi diferente: ele compartilhava o motor 1.8 com o Passat Plus quando foi lançado — o 1.8S com o comando 049G chegou em 1985 e foi compartilhado com o Passat Flash dois anos depois. Claro, havia o câmbio, freios e todo o acerto, mas eram as únicas diferenças em relação a estas versões não-esportivas.

Nesse sentido, é razoável que a Volkswagen tenha adotado o nome GTS para o Polo esportivo porque houve uma preocupação em torná-lo um pouco mais empolgante que o Polo 1.0 TSI, ainda que ele seja equipado com câmbio automático e não tenha altura de rodagem rebaixada ou freios exclusivos. Parte da receita dos GTS do passado está lá: o motor do modelo maior (o 1.4 do Jetta), o acerto dinâmico exclusivo, a transmissão reprogramada.

Não é o ideal, mas ainda é um meio-termo entre o Highline e o GTI que nunca teremos. Não é como o Ka Sport da segunda fase da segunda geração, que só tinha o motor 1.6 como elemento “esportivador”, ou como o Gol e o Golf GTI dos anos 1990, que tinham o mesmo conjunto do GLS e do GLX, respectivamente —  e assim mesmo são admirados pelos saudosistas.

Claro, o Polo GTS tem vários pontos de crítica — é caro demais, poderia ter câmbio manual opcional, molas do GTI —, mas optei por usá-lo como exemplo porque não acho que ele não deva ser considerado um esportivo pelos mesmos motivos que fazem considerar o 208 GT um esportivo: houve uma preocupação em tornar o carro mais comunicativo, mais envolvente, mais dinâmico e, claro, mais rápido e veloz.

Mais recentemente, o mesmo tipo de crítica foi direcionada aos novos Fiat Abarth. A marca do escorpião, que chegou ao Brasil no Stilo e se repetiu no 500 Abarth, de repente “enfeitava” um SUV. Curiosamente, um SUV que foi criticado por não ser SUV suficiente, por ser muito parecido com o hatchback do qual ele deriva. A receita da Fiat para os novos Abarth — tanto o Pulse quanto o Fastback — não deve nada à receita dos medalhões do passado.

Os dois têm calibragem específica da suspensão, direção e freios, e, no caso do Pulse, um motor exclusivo da versão. E ainda terá algo que só o Maverick GT teve no Brasil: um “stage 2”, para aumentar ainda mais o desempenho (estou falando do kit Quadrijet do Maverick, caso você não tenha notado). Não dá pra dizer que os dois não são esportivos. Você pode dizer que não são esportivos do seu gosto, fica mais preciso.

“Se é SUV, não pode ser esportivo”: o Mitsubshi Pajero Evolution discorda com veemência

O problema é que a esportividade tem uma definição muito ampla: um Morgan 3-Wheeler é um esportivo. Um Saab Sonet é um esportivo. Um Lamborghini Diablo é um esportivo, um Sandero RS e um Kadett GS também são. Um Mitsubishi Pajero Evolution, uma Toyota Hilux GR e uma F-150 Raptor também. Não é apenas uma questão de números e receitas.

No fim das contas, arrisco dizer que uma versão esportiva se define — além da capacidade de andar mais rápido que seus semelhantes — pelo envolvimento do motorista e por sua capacidade de se permitir ser levado aos limites e, principalmente, de ser controlado no limite. Se ele será melhor ou pior que um esportivo rival, bem, isso faz parte do jogo desde que o segundo carro foi inventado, não?