Em 2023 vimos um acontecimento raro na Fórmula 1: um piloto dominar a temporada vencendo quase todas as corridas do ano. Max Verstappen venceu 19 das 22 etapas, impondo sobre seus rivais um domínio inédito na história da Fórmula 1 — e que pode se repetir nesta temporada de 2024, se considerarmos o que aconteceu até agora nas três primeiras etapas do campeonato.
Além disso, Max também fez do RB19 um dos carros mais dominantes da história da Fórmula 1, igualando o recorde do McLaren MP4/4 em 1988. Note, contudo, que o MP4/4 venceu 15 de 16 corridas, enquanto o RB19 venceu 21 de 22 corridas. Nesse caso, quem fica com o recorde?
Os estatísticos de plantão certamente sugeririam verificar o índice de aproveitamento do carro, afinal, ele faz uma proporção exata das vitórias. No caso do RB19, 100% de aproveitamento seriam 22 vitórias, então cada vitória corresponde a 4,54% de aproveitamento. Como ele venceu 21 vezes, seu aproveitamento foi de 95,34%. Em 1988, 100% de aproveitamento seriam 16 vitórias, então cada vitória corresponde a 6,25% de aproveitamento. Com 15 vitórias, o carro teve 93,75% de aproveitamento.
Conclui-se daí que o RB19 foi um carro mais dominante, afinal, ele tem um aproveitamento maior em valores absolutos, e também precisou de mais vitórias para obter esse aproveitamento.
Os mais observadores, contudo, notaram um problema nesse método: o MP4/4 sequer teria como superar o aproveitamento do RB19 porque cada corrida corresponde a 6,25% de aproveitamento. Sendo assim, cada corrida que ele vence, vale mais que uma corrida do RB19. Mas cada corrida que ele deixa de vencer também vale menos. Além disso, por causa da proporção, para que ele tivesse um aproveitamento de 95,34% como o RB19, ele teria que vencer 15,25 corridas — e não dá para vencer um quarto de corrida.
E aqui voltamos novamente ao problema de se comparar eras diferentes da Fórmula 1 em busca da resposta definitiva sobre quem foi o melhor de todos os tempos. Até por que o MP4/4 não foi o primeiro a vencer todas as corridas da temporada exceto uma.
Antes dele outros dois carros dominaram a Fórmula 1: o Alfa Romeo 158 e a Ferrari 500.
O Alfa Romeo 158 foi o carro da equipe na temporada de 1950 da Fórmula 1, a primeira do Campeonato Mundial. Ele usava um oito-em-linha de 1,5 litro sobrealimentado por um compressor tipo Roots para produzir 350 cv a 8.600 rpm e nas mãos de Giuseppe Farina e Juan Manuel Fangio venceu seis das sete provas da temporada inaugural da Fórmula 1 — Farina levou os GP da Grã-Bretanha, Suíça e Itália, enquanto Fangio ficou com os GP de Mônaco, da Bélgica e da França. A única corrida que o Alfa 158 não venceu naquela temporada foi a Indy 500 — que a maioria das equipes europeias sequer disputava.
Com a Ferrari 500 foi a mesma história, mas dois anos mais tarde, em 1952. Naquela temporada (e na de 1953) o Mundial de Fórmula 1 correu sob o regulamento da Fórmula 2, com carros consideravalmente menores, menos potentes e mais leves que os Fórmula 1. Foi assim que a Ferrari 500 entrou em cena. Ela tinha um motor de quatro cilindros e dois litros (sim, uma Ferrari de corrida com quatro clindros), com 185 cv a 7.500 rpm e pesava só 560 kg, como todo F2 da época.
Ela não precisou de mais que isso para conquistar sete das oito corridas da temporada. Novamente a única corrida que não foi vencida foi a Indy 500. A Ferrari até disputou a prova com Alberto Ascari, mas não ao volante da 500, e sim da 375 Indianapolis, um carro adequado ao regulamento da Indy.
E aqui vem a questão filosófica sobre “o carro mais dominante da história da Fórmula 1”. Estatisticamente, Alfa Romeo 158 e Ferrari 500 não têm 100% de aproveitamento. Eles sequer chegam aos 90% como McLaren MP4/4 e Red Bull RB19. Mas como eles poderiam ter se a Indy 500 era disputada sob um regulamento diferente, mesmo estando no calendário da Fórmula 1?
Os dois carros venceram 100% das corridas disputadas sob o regulamento da Fórmula 1. A única corrida da temporada que eles não venceram, foi justamente aquela em que eles não tinham chance de competir por serem carros de categoria diferente — na época os carros da Indy corriam com motores sobrealimentados de até 3 litros e aspirados de até 4,5 litros, em qualquer caso sem limite de peso. É por isso que as equipes europeias não se davam o trabalho de ir aos EUA. Também é por isso que os americanos não disputavam os GP europeus; eles sequer tinham carro para isso.
Diante disso, deixo a pergunta: não faria sentido considerar o Alfa Romeo 158 e a Ferrari 500 mais dominantes que McLaren e Red Bull? Afinal, eles venceram tudo o que podiam vencer, diferentemente dos dois monopostos modernos, que não apenas tinham condição de disputar 100% das corridas da temporada (que eram todas realizadas sob as mesmas especificações), como também as disputaram e não venceram.
Pare de comparar estatísticas da Fórmula 1 para saber “quem é melhor”
Se o MP4/4 era superior ao RB19 ou vice-versa, é outra questão. O MP4/4 era um carro analógico, sem telemetria, que disputou 16 GP em uma época na qual as quebras eram mais frequentes. Enquanto o RB19 correu em uma época onde os adversários não têm espaço para alterações no carro visando melhorar a competitividade. Ao mesmo tempo, o McLaren precisou correr apenas 16 vezes, enquanto o RB19 teve de correr 22 etapas sob um regulamento que limita testes e trocas de motores e câmbio.
Como comparar os dois carros? Ou melhor: é possível comparar os dois carros? E vou além e deixo a questão: é necessário comparar os dois carros?
O mesmo vale para o recorde pessoal de Max Verstappen, que se tornou o piloto mais dominante da Fórmula 1 em uma temporada, já que ele não venceu somente três etapas. Alberto Ascari disputou sete das oito etapas do mundial de 1952 — ele ficou fora apenas do GP da Suíça, mas participou da Indy 500, que corria sob outro regulamento.
Nesse caso, ele ganhou tudo o que disputou sob o regulamento da F1. E na única corrida que não venceu, ele sequer participou. Ou seja: das corridas sob o mesmo regulamento, ele só não venceu uma. E das que ele participou, também só não venceu uma. Dá para comparar seu desempenho em 1952 com o de Max em 2023?
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