Vira e mexe você topa com essa expressão, seja em revistas e sites automotivos, seja em releases e manuais feitos pelos fabricantes. Muita gente sabe que é algo importante, mas não consegue explicar o que é – muito menos falar sobre como a sua falta pode afetar o comportamento do carro. Então, que tal jogarmos uma luz nesse assunto? Puxe uma cadeira e se sirva de uma gelada!
O que é torção estrutural?
O automóvel é uma estrutura apoiada no solo por apenas quatro pontos (bem, ignore o Morgan 3 Wheeler por alguns instantes): os pneus. Ligando eles à carroceria, temos o conjunto de suspensão: mangas de eixo, braços (ou bandejas), molas, amortecedores, buchas, etc.
Curvas, obstáculos (lombadas, buracos, etc), frenagens e acelerações causam transferências de peso que se convertem em forças verticais. Elas são captadas pelos pneus e rodas, transmitidas à suspensão e finalmente são repassadas à carroceria pelos pontos de fixação da suspensão. Cada componente absorve um pouco desta energia, especialmente os mais flexíveis, como os pneus, buchas de suspensão, molas e amortecedores.
Na imagem abaixo, o carro está parado. Não há nenhuma força adicional agindo senão o peso do próprio carro. Para este exemplo, ignore a distribuição de peso típica dos Porsche 911.
Agora, se ele estiver fazendo uma curva para a esquerda em alta velocidade (imagem abaixo), o peso é transferido para a direita. Os pneus do lado direito recebem muito mais carga, ela é repassada pela suspensão e transmitida para a carroceria. Note como os vetores (hipotéticos) de força se tornam desiguais: é esta diferença de torque aplicado na carroceria que causa a torção. E olha que o exemplo abaixo nem é dos mais extremos – pelo contrário, representa a situação dinâmica ideal: uma curva constante. Se há frenagem ou aceleração combinados na curva, cada um dos quatro vetores ficaria com um tamanho – afinal, frear e acelerar causam transferências longitudinais de peso, que se transformariam em diagonais nestas circunstâncias.
Para você entender a torção de forma fácil, pegue uma folha sulfite e cole nela quatro dedos seus com fita crepe, um em cada vértice, simulando os pontos de apoio da suspensão. Agora, force o papel para cima com estes dedos, fazendo múltiplas combinações: apenas um, em duplas, cruzados, só de um lado, só de outro. Você vai ver que a folha flete em vários sentidos. É lógico que a carroceria não dobra desta forma, mas a força atua da mesma forma.
Mas dá pra ficar pior. Bem pior. O exemplo abaixo é extremo: um teste com pontos de apoio cruzados e desiguais. O pneu traseiro direito está no solo, o esquerdo está a caminho de subir a rampa. No eixo dianteiro, o lado direito está totalmente sobre a rampa e o esquerdo está no ar, sem apoio algum. Argh! A torção é completamente visível: compare a linha de base do vidro traseiro com o topo da tampa da caçamba!
Ainda que em escala menor, os carros são submetidos à tensões deste tipo todos os dias: aquela rampa de estacionamento que subimos em curva, valetas, lombadas, buracos, crateras, abismos, wormholes do asfalto brasileiro. De fato, passar por obstáculos de forma cruzada causa tensão estrutural maior, mas os carros são projetados para lidar com isso sem problema algum: é deformação elástica, vai e volta, sem perda das propriedades dos materiais.
No exemplo acima, a picape da esquerda tem rigidez à torção menor. Na rua, isso tende a causar ruídos e rangidos pela movimentação dos elementos da carroceria e, em casos extremos, pode trincar o para-brisa e dificultar a abertura e fechamento das portas. Na pista, os tempos de volta vão lá para cima porque uma estrutura que torce causa alterações na geometria da suspensão, que acaba não funcionando como deveria. A explicação detalhada desta última parte está no fim deste post.
Detalhe importante: não podemos confundir rigidez à torção com capacidade de absorção de impactos em acidentes. Primeiro porque uma batida é uma força exercida em sua maioria na horizontal, enquanto as tensões que causam as torções são verticais. A estrutura de um automóvel é algo extremamente complexo, que envolve múltiplos materiais, com múltiplas espessuras e desenhos de perfis. Todo carro possui uma zona de deformação programada na dianteira, na traseira e nas laterais – e isso não afeta praticamente em nada a rigidez à torção, cuja estrutura “que interessa mesmo” está quase toda entre os eixos. É como comparar pele e músculos aos ossos: o gordinho tem ossos tão duros quanto os de um magrelo.
Outra confusão típica é misturar torção com rolagem de carroceria. Na foto abaixo, o Gol do Alta RPM está rolando, inclinando na curva. Seu monobloco pode ou não pode estar torcendo. Rolagem e torção de carroceria conversam entre si, mas são fenômenos completamente diferentes um do outro.
Como a torção é aferida?
A unidade utilizada pelas fábricas para a torção estrutural é Newton-metro/grau, ou seja, aplica-se um torque e a flexão é aferida em graus. O torque é aplicado nas pontas de eixo, simulando a força repassada pelas rodas ao conjunto de suspensão. E como isso é feito? Bem, back in the day, isso era feito de forma literal, com uma mesa perfeitamente nivelada, cujo gabarito fixava dois pontos ou três da suspensão e aplicava torque via sistema de peso e alavanca. Na verdade, este método é usado até hoje por equipes de corrida e fabricantes menores – e mais prático e barato. Na foto abaixo, vemos no cockpit a barra usada para a leitura da torção.
Mas a maioria das grandes fábricas faz hoje tudo via software – o mesmo que afere crash-tests virtuais. Afinal, o projeto de todos os componentes já está no computador, com todas as propriedades e espessuras dos metais usados, pontos de solda, etc. Contudo, da mesma forma que ocorre com o acerto dinâmico, a simulação não chega a dispensar os testes práticos.
Se você quer uma forma caseira de verificar se o seu carro tem monobloco rígido ou se ele é uma casquinha de sorvete molhada, basta subir em uma guia alta com somente um dos pneus – preferencialmente, de forma que o pneu na diagonal oposta fique no ar (dá pra fazer o mesmo com cavaletes). Tente abrir e fechar as portas. Se rolar com fluidez, parabéns, seu carro é casca-grossa. Se houver dificuldade para abrir, se ela bater de forma estranha ou se rolaram alguns estalos parecidos com o de uma embarcação pequena no mar, é porque a carroceria torceu um bom bocado. Em casos críticos, você não vai conseguir fechar a porta.
Por que conversíveis são mais sensíveis?
A melhor demonstração é dinossáurica: pegue uma caixa de sapatos com tampa. Bote uma mão em cada diagonal e torça ela. Agora, faça o mesmo nela sem tampa. Está explicado. Estruturalmente falando, o que prejudica os conversíveis são a falta das colunas central e traseira e algo que conecte todas as colunas – o teto. Sem isso, todo o trabalho de absorção das tensões fica com o assoalho, que recebe uma série de reforços adicionais (falaremos deles na próxima parte deste post) para lidar com o esforço extra.
E não são só conversíveis: carros com entre-eixos mais longos (pense numa caixa mais comprida), com longarinas mais curtas (imagem abaixo, pintadas de verde), com colunas mais estreitas, com poucos pontos de solda nas chapas que formam o monobloco, com muitas chapas planas no assoalho (dobras e perfis em forma de ômega aumentam a resistência), sem reforços localizados, tudo isso reduz a rigidez à torção.
Tá, tá, entendi. E como a torção afeta o comportamento do carro?
Bem, para explicar essa parada precisamos ir em partes e explicar outros conceitos antes. Primeiro: você sabia que a geometria da suspensão – particularmente a cambagem – não permanece fixa quando a suspensão se movimenta? Olhando o carro de frente, do curso mínimo (comprimida) ao máximo (esticada) da suspensão, o pneu descreve um arco neste deslocamento. Veja a suspensão do lado direito da imagem abaixo.
Este arco se chama curva de cambagem – ele varia em cada carro, de acordo com o comprimento e o ângulo formado pelos braços de suspensão.
Agora, vamos compor a zona: como vimos lá em cima, a suspensão de cada canto recebe uma força vertical diferente. Ou seja, nas curvas, cada roda assume um valor de cambagem. Veja a foto abaixo. Parece um pouco assustador e caótico, mas a geometria das suspensões é calculada em conjunto: a relação entre a variação de cambagem aqui, lá e acolá é algo previsto e dimensionado.
Com isso, dá pra entender por que os carros de corrida possuem a cambagem estática negativa – ou seja, com o topo dos pneus inclinado para dentro. Se o cara conseguiu a calibragem perfeita, quando a carroceria inclinar nas curvas, a cambagem da roda com maior apoio vai assumir valor próximo a zero (na verdade, pouca coisa negativa), utilizando o máximo do pneu e conseguindo mais aderência.
No topo da imagem acima, temos um carro com cambagem estática zerada, como em um automóvel de uso comum: nas curvas feitas no limite, veja que a tendência é da cambagem ficar positiva em curvas velozes; o que resulta em forças contrárias às desejadas para se obter aderência. Na parte inferior, vemos como a cambagem negativa se comporta com a rolagem da carroceria.
Quando a estrutura do automóvel não é rígida o suficiente e torce em demasia, ela pega os quatro parágrafos acima, amassa e joga no lixo. A razão é simples: a torção da carroceria entra como uma variável imprevisível na geometria do conjunto de suspensão, causando valores de cambagem que não se conversam e que não correspondem ao projeto. Imagine quatro equilibristas sobre os vértices de uma mesa quadrada – mas troque a mesa de madeira por outra de borracha bem elástica. A dinâmica se torna caótica, imprevisível, e o carro se torna incapaz de explorar ao máximo os pneus.
A rigidez estrutural é algo vital em esportivos e preparados: quanto mais aderentes forem os pneus, quanto mais rígida a suspensão, maior e mais direta é a força transmitida à carroceria. Isso vale tanto para uso em pista como em situações corriqueiras, como vocês podem conferir no vídeo acima. Monobloco de esportivo sofre – e muito.
E como que se ganha rigidez à torção em um carro? É o assunto do nosso próximo post.