A Fenabrave (Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores) divulgou segunda-feira que os emplacamentos de carros novos caíram 27,5% em relação a maio do ano passado. Isso torna o mês passado o pior para a indústria automotiva desde janeiro de 2010 em vendas diárias. E o segundo pior deste ano, perdendo em ruindade apenas para fevereiro, que teve apenas 17 dias úteis (maio teve 20). Não podia ser pior, não é? O problema é que é.
Depois da bonança, a tempestade
Para começar, porque a indústria vinha de sucessivos recordes de produção e de vendas. Quebramos a barreira das 2 milhões de unidades produzidas em 2004, se formos incluir caminhões e ônibus, e em 2005, se falarmos só de automóveis e comerciais leves. Era uma recuperação constante depois da crise de 1998. As 3 milhões de unidades vieram em 2010 e o Brasil se tornava um dos maiores produtores de veículos do mundo, à frente de antigos gigantes do setor, como Alemanha e França. Até dos EUA, quando se considera só a produção de automóveis, em 2009. Como indústria de ciclo longo, a automotiva via isso e anunciava sucessivos investimentos para aumentar a capacidade produtiva no país. A proporção de carros por habitante indicava que havia muito espaço para crescer.
Com crédito farto e redução de impostos, como o IPI, até os importados se beneficiaram da ampliação de mercado e da demanda reprimida. No calor da explosão de vendas, veio a elevação das alíquotas de IPI para carros trazidos de fora, a restrição à quantidade de carros que o Brasil recebia do México e outras medidas protecionistas. Para fugir de sanções da OMC, elas acabaram sendo disfarçadas pelo Inovar-Auto, um limão que o governo tentou transformar em uma limonada, ou melhor, uma política industrial de longo prazo, mas que se viu limitada apenas ao que vai acontecer até 2017. Depois disso? Quem sabe?
A competitividade da indústria nacional e a ampliação de sua capacidade de exportar eram os objetivos principais do Inovar-Auto. Só que nem a alta do dólar, e o fato de o real ter sido a moeda que mais perdeu valor em 2015, perdendo até do rublo, da Rússia (país em guerra com a Ucrânia e sob pesadas sanções econômicas), tornou os produtos nacionais mais interessantes para outros mercados. Ao menos não ainda.
Para piorar, o mercado interno perdeu suas vantagens. O IPI voltou a subir e o crédito, antes abundante, foi contido pelo alto risco de inadimplência e também para evitar a disparada da inflação. O resultado só poderia ser uma enorme retração. Mas o tamanho dela tem assustado todo mundo.
Foto: Lucas Lacaz Ruiz
Das fabricantes que se comprometeram com novos projetos no país, quem menos vem sentindo o baque são as fabricantes de modelos de luxo, como Audi, BMW, Jaguar Land Rover e Mercedes-Benz. Empresas que dependem de grande volume de vendas, como Nissan e Chery, lutam para atingir metas de nacionalização com as quais elas só imaginavam ter de lidar em dois anos ou mais. Isso quando não são obrigadas a cortar investimentos, como a Suzuki.
“Ah, mas por que elas não reduzem os preços?”, alguns perguntarão. A resposta oficial é que as empresas já trabalhavam com margens apertadas e subiam os preços sempre abaixo da inflação. Seja isso verdade ou não, a redução adiantaria pouca coisa: 70% das vendas no Brasil são financiadas e os financiamentos estão pela hora da morte, com exigências cada vez maiores e juros altíssimos. Nessa situação, reduzir os preços não vai refrescar nada. Pior: as empresas estão anunciando aumentos sucessivos na tabela para recuperar perdas do ano passado, quando a inflação subia e os carros, não.
Efeito dominó
Agora, não pense que a queda das vendas afeta somente os fabricantes de veículos. A crise afeta os empregos, diretos e indiretos, que a indústria automotiva gera. Logo no primeiro dia de junho, as fabricantes somadas tiraram 16.600 funcionários do batente, seja por férias coletivas ou por suspensão temporária dos contratos de trabalho (os chamados lay-offs). Existe a perspectiva de que mais 17.700 trabalhadores sejam afastados nas próximas semanas, o que deixa só o mês de junho com 34.300 pessoas sem trabalhar, ainda que de modo temporário. Some a estes os 5.800 que já estavam afastados desde meses anteriores e chegamos à marca de 40.100 operários sem ter o que fazer.
Como tudo na indústria automotiva é feito em escala, inclusive fora da produção, os números ficam ainda mais difíceis de encarar. Você está acompanhando? Então preste atenção nos dados a seguir.
Segundo dados do Sindipeças (Sindicato Nacional da Indústria de Componentes para Veículos Automotores) e da Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores), havia 195.000 empregados na indústria de autopeças e cerca de 126.000 na de fabricação de automóveis — uma proporção de 1,5:1. Se 40.000 empregados das fabricantes de automóveis associadas à Anfavea foram afastados, então a crise afetará mais 60.000 pessoas na indústria de autopeças. Isso só de empresas associadas ao Sindipeças.
Acontece que parte da cadeia de fornecedores não é associada ao sindicato. São mais 25.000 trabalhadores que não constam na estatística oficial, segundo estimativa do próprio Sindipeças, ou 220.000 empregados. Neste caso, a proporção sobre para 1,7:1, ou 68.000 pessoas afetadas pela crise nas vendas de automóveis. Só na parte industrial da coisa, que, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), já teve sua atividade reduzida em 3,2% até abril. Os dados de maio ainda não foram compilados.
Veículos precisam de redes de distribuição, que empregam ainda mais gente. Segundo a Fenabrave, concessionárias empregam perto de 400.000 pessoas no Brasil. Se houvesse uma relação direta entre operários e empregados de concessionárias, estaríamos falando de mais 128.300 pessoas com empregos ameaçados, mas, no setor de serviços, a coisa fica mais difusa. Sempre haverá os carros já vendidos para atender — os serviços de pós-venda e manutenção. Mesmo assim, as concessionárias focadas primordialmente nas vendas estão seriamente ameaçadas de fechar. No começo de maio, noticiamos que 250 das 7.943 concessionárias brasileiras fecharam só em 2015, o que implicou a demissão de 12.000 pessoas.
Foto: Mateus Tagé
Somando os possíveis afetados por suspensão no emprego, teríamos 236.400 pessoas sob o facão da queda nas vendas — que, por sua vez, são pressionadas pelos juros na taxa básica de juros (a Selic), em alta para conter a inflação, algo que acaba diminuindo o dinheiro disponível para empréstimos e deixa os juros cobrados por eles ainda maiores do que já são. Sem entrar na questão das demais cadeias produtivas que estes empregos alimentam, como roupas, calçados, alimentação, habitação e por aí afora.
O último recurso
Para finalizar, vale lembrar que os lay-offs são um passo para tentar evitar demissões. A suspensão total do contrato de trabalho, que coloca os funcionários escolhidos para receber salários do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), tem duração máxima de cinco meses e deve ser aprovada pelos sindicatos. No período, eles devem passar por cursos de requalificação profissional ministrados pelo Senai.
A maior parte dos trabalhadores da indústria está neste caso. No final do período, se os empregados não puderem ser reabsorvidos por uma retomada na produção, fica subentendido que a única alternativa das empresas é a demissão. Só no trimestre que terminou em abril, o desemprego já subiu para 8 milhões de pessoas, ou 18,7% a mais do que de novembro de 2014 a janeiro de 2015, segundo o IBGE. Isso representa 5% da população economicamente ativa do Brasil.
Para quem quer se manter otimista, resta torcer por uma recuperação rápida da economia, mas 2015 não promete ser nada fácil.