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Car Culture

Windsor, Cleveland, “Taubaté” e os motores-cidade da Ford

Imagine lançar um produto que foi preterido pelo público em pesquisas de mercado, que precisou ser improvisado para ser lançado, e que se tornou, digamos, obsoleto, quase que imediatamente após seu lançamento? Um desastre completo, não?

Pois assim foi o lançamento do Ford Maverick. O original, não a picape. Ele foi exibido junto do Taunus alemão e do Cortina inglês ao público brasileiro, que adorou o Taunus. Mas como ele era um carro europeu avançado e o Brasil era uma roça sem dinheiro, crédito, estradas e com protecionismo, fazer um carro daquele por aqui era arriscado. Por isso, a Ford decidiu lançar o Maverick mesmo. Ele tinha cofre grande o bastante para colocar os motores que a Ford já tinha desenvolvidos no Brasil, e ainda tinha uma suspensão traseira simples e igualmente viável e desenvolvida localmente. E como se não bastasse entregar o oposto do que o público esperava, ainda veio a crise do petróleo tornar os motores impraticáveis.

O Maverick só tomou jeito quando a Ford começou a produzir localmente o motor de quatro cilindros “OHC” na fábrica de Taubaté/SP, onde um dia foram feitos os motores Willys nacionais. E aí está a grande sacanagem da Ford no Brasil: o motor 2.3 salvou o Maverick, mas ele nunca foi chamado de motor “Taubaté”. O 302 virou o Windsor, pois vinha da cidade canadense Windsor, assim como havia o V8 Cleveland, assim batizado informalmente por vir da fábrica de Cleveland/EUA. Mas o 2.3 OHC foi chamado de “quatro cilindros do Maverick” ou então, lá fora, de “Lima engine” e até mesmo “Pinto engine”. Sim: PINTO — pois ele equipava o Ford Pinto. Motor Taubaté seria demais, pelo jeito.

O motor poderia até mesmo salvar a reputação de Taubaté, outrora terra de Monteiro Lobato, Renato Teixeira e Mazzaropi, hoje sinônimo de uma grávida que não estava grávida e de um parkour que não era parkour. Custava chamar o 2.3 de “motor Taubaté”, dona Ford?

Mas divago, como diria o MAO. A questão aqui é que os motores Ford são batizados informalmente com o nome da cidade onde eles eram feitos — ainda que um determinado modelo de motor fosse feito em mais fábricas, como é o caso do Ford Taubaté (vou chamar assim agora, ok?), que foi feito originalmente na fábrica da Ford em Lima, no estado americano de Ohio, a cerca de 250 km de Detroit.

 

Ford Taubaté “Lima”

Esse motor é chamado oficialmente pela Ford de T-88 (denominação interna), OHC ou EAO. Pelo público, a nomenclatura varia de acordo com a aplicação. Nas variações de 1,3 a 2 litros, ele é o motor EAO, TL, Taunus ou Pinto. TL vem de “Taunus in-Line” (mas poderia ser Taubaté-Lima, não é mesmo?), ou seja: o motor em linha usado no Taunus. Por isso também é uma denominação europeia.

Nos EUA, estas configurações de menor deslocamento eram chamadas de Pinto, porque ele chegou ao país vindo da Europa com 1,8 litro para equipar o Ford Pinto. Se você está se perguntando por que raios o nome do carro é Pinto, é simples: ele segue a temática equestre que a Ford usou no Mustang e no Corcel. Pinto é o jeito que os falantes do espanhol chamam qualquer tipo de cavalo malhado — pinto deriva de “pintado”.

Continuando, nas configurações de 2,3 e 2,5 litros, esse motor é conhecido como Lima ou LL (de Lima in-Line), porque foi fabricado nos EUA para equipar o Pinto e o Mustang II — e depois foi parar no Mustang Fox Body, na Ford Ranger e no Merkur XR4i. Houve ainda uma configuração de 2 litros, mas ela se diferencia do 2.0 Taunus por ser um 2.3 com pistões de menor diâmetro, e isso faz com que ele tenha 1.990 cm³ em vez de 1.993 cm³ como o europeu. Uma das formas de diferenciá-los sem abrir, é ver a posição do cárter: no motor 2.0 europeu o reservatório fica na parte inferior frontal do motor, enquanto no americano o cárter fica na parte inferior traseira.

Uma curiosidade antes de encerrar o papo sobre este motor: o 2.3 turbo do Mustang Turbo GT de 1983 também era um “Lima” — era basicamente o motor 2.3 do Maverick brasileiro, equipado com um turbo. Foi dali que veio a decisão da Ford em usar um motor 2.3 turbo nos atuais Mustang EcoBoost. E o motor 2.3 turbo do Mustang EcoBoost foi escolhido para o Projeto Underdog 3 de Sung Kang, o gêmeo perdido do Juliano Barata Han Lue de Velozes e Furiosos, como uma referência à cilindrada do Maverick brasileiro, que inspirou o projeto. Viu só? Eu avisei que o motor 2.3 PRECISA ser rebatizado como Ford Taubaté…

 

Ford Kent e Valencia

Todo bom fordeiro sabe que todo motor Ford é “kent”. Apesar do trocadilho sacana, isso é uma meia-verdade. O motor Kent nasceu em 1959, mas foi produzido até 2014, quando o motor Zetec Rocam deixou de ser produzido no Brasil. Todos os projetos importantes da Ford europeia usaram este motor, que foi parar até mesmo nas mãos da Lotus e influenciou a criação do motor mais dominante da história da Fórmula 1.

Tudo começou em 1959, no condado de Kent, onde a Ford produziu este motor de quatro cilindros para o sedã Anglia. Era um motor diferente de tudo o que a Ford havia feito até então. Ele tinha só 1 litro e 39 cv, mas a potência máxima vinha a elevadas 5.000 rpm (na época era alto, ok?). Essa ampla faixa útil de rotações era resultado da geometria interna do motor: tinha quase 81 mm de diâmetro de cilindro, com um curso de 48,5 mm, ou seja, era um motor superquadrado — uma característica fundamental dos motores giradores (leia mais abaixo).

Como a relação entre diâmetro e curso define as características do motor

Depois do Anglia, ele equipou o Consul Classic, o Consul Capri, o Cortina, o Corsair, o Prefect 107E, e ainda foi usado pela Lotus no Seven S2, pela Marcos no 1500 GT e pela TVR no Grantura. Em 1962 a Lotus usou o Kent como base para fazer o motor Lotus Twin-Cam que equipou o Lotus Cortina que dominou o campeonato britânico de turismo. Também foi esta versão que, em 1965, foi usada pela Cosworth como base para o motor FVA, que daria origem ao Cosworth DFV V8.

O motor que transformou a Cosworth em uma lenda

Em 1967 ele ganhou um novo cabeçote de fluxo cruzado e uma nova vida: passou a ser usado pela Ford no Capri, no Escort, no Cortina, nos primeiros Pinto enviados aos EUA, e no Sierra. Ainda nos anos 1970, paralelamente à versão de fluxo cruzado, o motor Kent ganhou uma derivação para aplicações de tração dianteira que seria usada em seu novo subcompacto, o Ford Fiesta.

Essa configuração foi produzida originalmente em Valência, na Espanha, onde a Ford fez uma fábrica novinha apenas para produzir o modelo. Ele teve o bloco encurtado para receber o transeixo dianteiro, e todo o posicionamento de acessórios foi reprojetado. Assim nasceu o motor “Ford Valencia”.

Este motor foi usado até meados dos anos 1980, quando foi atualizado para se tornar o Valencia HCS (de High Compression Swirl), uma variação com cabeçote reprojetado para otimizar a queima de combustível pelo turbilhonamento da mistura ar-combustível na câmara de combustão (daí o “swirl” no nome), a fim de atender as normas de emissões europeias.

Sua última evolução chegou em 1995, quando ele foi transformado no Endura E, que passou a usar um bloco reforçado e cárter de alumínio fundido visando reduzir ruídos e vibrações. Ele também ganhou uma nova posição de afixação do coxim superior e passou a ser equipado apenas com injeção eletrônica multiponto. O motor foi usado até 2002 no Ka e no Escort europeus, o que significa que ele continuou ativo mesmo após a chegada de sua última derivação: o Zetec Rocam.

Zetec Rocam e Sigma: tudo o que você precisa saber sobre estes motores Ford

O Zetec Rocam foi um motor desenvolvido no Brasil como uma alternativa barata ao Zetec-S. Por isso, ele não tinha bloco de alumínio nem cabeçote multiválvulas. Suas medidas internas, como diâmetro e curso, além de espaçamento dos cilindros, são derivadas do Endura E, mas não há praticamente nenhum intercâmbio de peças entre os dois — tal como não havia entre o Valencia e o Kent Crossflow. Este motor equipou o Focus, o Ka de segunda geração brasileiro e o EcoSport de primeira geração, e só deixou de ser produzido em 2014, quando o Fiesta saiu de linha, 55 anos depois da estreia do Kent. Além da produção em Kent e em Valência, ele também foi produzido em Taubaté/SP.

 

Cologne

 

Em 1962 a Ford decidiu colocar no mercado um motor de quatro cilindros um pouco diferente do que se via até então. Em vez dos cilindros dispostos em linha ou contrapostos, eles eram dispostos em V. Desenvolvido na Alemanha pela Ford europeia, ele foi fabricado para o novo sedã de topo da marca, o Taunus, que seria fabricado na unidade da Ford em Colônia — ou Köln ou Cologne, daí seu nome.

Foi esse o motor V4 usado no conceito Mustang I — aquele esportivo de plástico, de dois lugares com motor central-traseiro que a Ford fez inspirado nos Lotus, antes de desenvolver o conceito do Mustang que conhecemos em 1964. Também foi este o motor que deu origem ao motor conhecido como Cologne ou Taunus V6, que equipava o Taunus preferido pelo público brasileiro nas clínicas com consumidores que antecederam o lançamento do Maverick. Como era um motor complexo, a Ford decidiu não lançar o Taunus por aqui e escolheu o Maverick.

O V4 foi desenvolvido originalmente para um carro de entrada que vinha sendo planejado para o mercado americano, que seria batizado “Ford Cardinal”, mas ele acabou sendo transformado no Taunus depois que a Ford o abandonou e começou a desenvolver o Falcon nos EUA. Além do Taunus, o motor V4 Cologne foi usado pela Ford no Consul, no Capri e na Transit. Uma curiosidade é que este V4 Ford também foi parar nos Saab 95 e 96, incluindo as versões de rali. Já o motor Cologne V6 foi usado no Taunus, no Granada e no Sierra vendido fora do Reino Unido.

O V4 tinha deslocamento de 1,2 litro, 1,3 litro, 1,5 litro e 1,7 litro, com potências de 40 cv, 53 cv, 60 cv e 65/75 cv respectivamente. O V6 partia de 1,8 litro e podia chegar aos 4 litros, com potência variando entre 82 cv (1.8) e 162 cv (4 litros). Ele ainda teve uma configuração usada por utilitários como o Land Rover Discovery 3, a Ford Courier (Mazda), que chegou aos 219 cv.

 

Essex

Lançado em 1965, o motor Essex era outro quatro-cilindros com a rara disposição de cilindros em V, desenvolvido em versões de alta e baixa compressão a gasolina, visando o uso em aplicações de passeio e comerciais — em especial a Ford Transit, que precisava frear o avanço da VW Kombi no mercado britânico. Seu nome vem do condado onde ficava a fábrica da Ford que o produziu ao longo dos 12 anos em que foi oferecido.

No ano seguinte, em 1966, a Ford colocou em produção seu irmão de projeto de seis cilindros, que era feito na mesma fábrica e, por isso, ficou conhecido como Essex V6. Ambos compartilham o espaçamento dos cilindros e o ângulo de 60 graus de separação. A versão de quatro cilindros tinha deslocamento de 1,7 e 2 litros, respectivamente com 74 cv e 92 cv, enquanto a versão de seis cilindros tinha deslocamentos de 2,5 a 3,4 litros e potência variando de 120 cv a 147 cv.

Ambos os motores equiparam o Zephyr, o Capri, o Consul e a Transit — sim, os três últimos usaram o Essex V4 e o Cologne V4, dois motores parecidos, mas diferentes. O V4 também foi oferecido no Corsair, enquanto o V6 equipou o Zodiac e o Granada. A TVR também usou o motor no primeiro Tuscan V6 e nos esportivos da Série M (vídeo acima). Na África do Sul a Ford também usou o V6 no Sierra e no Sapphire, além da Ford Courier de origem Mazda.

 

Windsor

Talvez o mais conhecido dos motores-cidades da Ford, o Windsor é o nome dos V8 de bloco pequeno conhecidos no Brasil como “V8 canadense”, como eram chamados os motores 292 e 302 usados no Galaxie e no Maverick nacionais. Ambos eram importados da cidade de Windsor, no Canadá, ao sul-sudeste de Detroit.

O Windsor foi a resposta da Ford ao small-block da Chevrolet e sucessor do motor Y-block (que também tivemos por aqui equipando as picapes da Ford e os primeiros Galaxie. Ele foi lançado em 1961 e equipou originalmente a linha 1962 do Ford Fairlane e do Mercury Meteor, além do recém-lançado Shelby Cobra.

O deslocamento original era 221 pol³ (3,6 litros), que logo foi aumentado para 260 pol³ (4.3) , 289 pol³ (4.7) e 302 pol³ (5.0) — este sendo seu deslocamento mais popular. O nome Windsor não é oficial e só foi usado a partir do lançamento da versão de 351 pol³ (5,8 litros) como forma de distingui-lo do motor 351 da família 335 – mais nova e mais eficiente. A versão 255 (4.2) é um desenvolvimento do final dos anos 1970, criada às pressas para atender às novas normas de emissões dos EUA, por isso também é a menos popular delas.

Praticamente todos os carros americanos da Ford produzidos nos anos 1960 e 1970 foram equipados com o motor Windsor, incluindo o Ford GT40 e o Boss 302.

 

Cleveland

Em 1969 a Ford decidiu desenvolver uma nova família de motores de alto desempenho, mais sofisticados que o popular Windsor. A ideia era produzir um motor com 335 pol³ (5.5), com capacidade de variação deste deslocamento. O primeiro motor desta nova família foi o 351 (5,8 litros). Como a Ford já produzia um 351 small-block na época, ele ficou conhecido como 351C ou 351 Cleveland, pois era produzido na planta de motores da Ford em Cleveland, como forma de diferenciá-lo do motor 351 feito em Windsor. 

Apesar de ser um V8 de bloco pequeno, o motor 335/Cleveland tem várias características diferentes do motor small-block/Windsor, que vão desde o modo de fundição do bloco, passando pela posição e tipos de velas usados, posição das válvulas e geometria da câmara de combustão. Você pode ver todas as diferenças entre eles nesta matéria abaixo:

Afinal, qual é a diferença entre um motor V8 Windsor e um V8 Cleveland?

Os motores da série 335/Cleveland foram usados em modelos médios e grandes de todas as marcas da Ford nos anos 1970 e nos primeiros anos da década de 1980 (eles deixaram de ser produzidos em 1982), e também substituíram o antigo FE de bloco médio em alguns modelos de carros e nas picapes e comerciais leves.