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A “sucata” de Ferrari não era exatamente “sucata de Ferrari”

Na semana passada notei um misto de sensacionalismo e superficialidade ao tratar a notícia da venda de um conjunto retorcido de chassi e carroceria de uma Ferrari dos anos 1950 por uma cifra milionária. Parecia até que alguém estava tentando bancar o esperto ao pedir tanto dinheiro por um monte de “sucata” — para usar um termo que foi usado por muita gente para tratar do assunto.

Talvez seja fruto da banalização dos clássicos no Brasil, onde qualquer lixo imprestável é tratado como algo para se restaurar. Mas não era esse o caso. Se você não sabe do que estou falando, na semana passada a RM Sotheby’s, famosa casa de leilões canadense, colocou a venda, com valor estimado em mais de US$ 1.000.000, um conjunto de chassi e carroceria de uma Ferrari 500 Mondial Spider de 1954. Havia um detalhe, contudo: o carro estava todo retorcido pois foi acidentado e incendiado em algum momento de sua história.

É claro que uma aparente sucata de um milhão de dinheiros chama a atenção, mas é justamente esse o problema. Pouca gente se interessou em explicar o porquê daquela aparente sucata custar tanto. À primeira vista parece evidente: o que está a venda é um VIN para quem quiser ter a chance de recriar uma Ferrari histórica. Especulação, aparentemente — e isso não deixa de ser verdadeiro. Mas também há um outro lado que foi menos comentado, apesar de estar contado pela própria leiloeira e até por gente ligada ao passado do carro. A própria história do carro o torna um exemplar interessantíssimo da Ferrari.

Como ela era na Mille Miglia de 1954

Para começar, fizeram apenas 13 exemplares da Ferrari 500, que foi a terceira derivação da Ferrari Monza, lançada ainda em 1953 para disputar corridas de endurance. Ou seja, uma das primeiras Ferrari do Mundial de Carros Esporte (WSC), e um dos carros que construíram a fama da Ferrari nas pistas. Ferrari nos anos 1960 era fácil de gostar. Eles já haviam dominado Le Mans e a Fórmula 1.

Mas em 1953 eles ainda estavam começando a escrever aquela história, competindo contra Maserati, Jaguar, Mercedes e Aston Martin. Foi quando eles conquistaram o primeiro dos sete títulos do WSC, então encare a Ferrari 500 Mondial Spider como uma página do primeiro capítulo da história da Ferrari nas corridas de estrada. Esta unidade batida e queimada tem o VIN 0406MD, e foi a segunda das Ferrari 500 Mondial Spider. Ela ficou pronta em 1954 e foi entregue a um revendedor Ferrari chamado Franco Cornacchia, que a colocou para correr em sua equipe, a Scuderia Guastalla.

Depois ficou assim em 1955

Depois de disputar a Coppa della Toscana nas mãos de Franco Cortese, um dos primeiros pilotos da Ferrari, o carro foi levado à décima-quarta posição na Mille Miglia de 1954 também com Cortese, antes de ser entregue ao português João Rezende dos Santos, que o usou em outras duas corridas, agora com uma carroceria Scaglietti — que é esta que atualmente “está” no carro.

Em algum momento de 1955, Cornacchia vendeu o carro ao piloto milanês Angelo Benzoni, que inscreveu o carro em mais três corridas, sendo uma delas a Targa Florio de 1956, antes de vendê-lo ao piloto siciliano Domenico Tramontana. A partir dali, sua história começa a decair.

Em 1956, com a carroceria definitiva

Note contudo que o carro disputou nada menos que uma Mille Miglia e uma Targa Florio — duas das principais corridas de longa duração do planeta na época. Então temos aqui uma combinação de raridade e atividade intensa em um só chassi — duas características que agregam valor às Ferrari clássicas.

Depois, em 1958, o carro foi exportado para os EUA onde disputou mais corridas localmente (quem disse que os americanos só fazem arrancadas e curvas para a esquerda?) e, quatro anos depois, teve seu raro motor trocado por um V8 americano, uma prática comum em um tempo no qual peças de reposição para carros italianos de baixíssimo volume de produção eram ainda mais difíceis de se encontrar do que em 2023.

Quem disse que os americanos não fazem curvas? – Parte 1

Diferentemente do que muitos possam pensar, a Ferrari 500 não tinha um motor de seis litros (500×12), mas um quatro-cilindros de dois litros — um motor Lampredi, para ser mais exato. Talvez pela troca de motores, o que certamente afetou a dinâmica do carro e o tornou menos equilibrado que o original, em algum momento entre 1962 e 1964 a Ferrari bateu e pegou fogo. Desde então ela ficou guardada, embora tenha trocado de mãos algumas vezes nestes quase 60 anos.

Nos EUA, já com o V8

Em 1970, ela foi adquirida por um especialista em modelos Ferrari — lembra o que eu falei mais acima sobre a imagem que a Ferrari construiu com carros como a 500 Mondial Spider Pininfarina? — que a revendeu para um colecionador americano, que a revendeu para outro colecionador americano, que a revendeu para um terceiro colecionador americano em 1978. Foi este colecionador, Walter Medlin, que a preservou para a posteridade da forma como a conhecemos em 2023.

Largar uma Ferrari batida e queimada em um depósito por 45 anos parece desleixo ou desapego, mas olhe por um outro lado: ele impediu que esta Ferrari fosse realmente sucateada e desaparecesse no tempo, como tantos outros carros daquela época. Como vimos acontecer debaixo do nosso nariz brasileiro em várias ocasiões.

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Foi graças a essa loucura/desleixo/desprezo/planejamento ou o que quer que seja, que esse carro se encontra até hoje com sua carroceria da época, seu chassi original, sua plaqueta de identificação e sua história completa. Além de evitar o sucateamento do carro, a preservação do chassi e carroceria retorcidos permite que se investigue os detalhes de construção do carro para que ele possa ser recuperado de forma fiel.

Aqui é importante mencionar que não é uma Pur Sang ou qualquer outra oficina de boutique especializada em carros dessa época que poderá reconstruí-lo com legitimidade. Este é um trabalho para a Ferrari Classiche, que certamente receberá o carro em um futuro próximo para reconstruir seu chassi e carroceria com as técnicas da época e certificá-lo como legítimo.

Quanto vai custar? Segundo o historiador e especialista em Ferraris clássicas, Andreas Birner, a restauração “oficial” deverá custar entre US$ 1.500.000 e US$ 2.000.000. Infelizmente o carro não tem mais seu motor original — este sim, aparentemente foi sucateado ainda nos anos 1960, quando deu lugar ao V8 americano. Em seu lugar deverá ser instalado um Tipo 119, que é a configuração de três litros do motor Lampredi de quatro cilindros, e que foi vendido juntamente do chassi e da carroceria no leilão.

Como o carro custou US$ 1.800.000 no estado em que se encontra, o valor total do carro restaurado e certificado deverá chegar perto dos US$ 4.000.000. Contudo, trata-se da reconstrução não apenas de uma Ferrari clássica, mas de um pedaço da história da Ferrari.

Além disso, uma Ferrari 500 Mondial 1955 usada pelo mesmo João Rezende dos Santos que correu com esta 500 Mondial, foi arrematada em 2018 pelo equivalente a US$ 6.000.000 (essa azul acima), enquanto outro exemplar foi arrematado por US$ 4.500.000 em 2019 (abaixo).

Fica claro que esta Ferrari batida e queimada não é uma “sucata” e que pagar US$ 1.800.000 por ela não foi, nem de longe, uma loucura.


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