Aconteceu de novo. Desde que transformaram a velocidade em bandeira política, a discussão descambou para a paixão ideológica e a realidade não é tão importante. É a tal da pós-verdade, a “palavra do ano” de 2016, que sumiu tão rapidamente quanto apareceu.
Falei sobre isso em 2013, quando questionei qual a real finalidade dos limites de velocidade no Brasil. Continuei falando (sozinho) ao longo de 2014 e 2015. Em 2016 voltei a falar sobre isso, prudentemente no dia seguinte à eleição que mais evidenciou esse tema até hoje. Em 2017 continuei de olho, assim como em 2018 e em 2019.
Chegamos a 2020, os limites de velocidade das Marginais de São Paulo já não são mais um problema, pelo jeito. Ninguém parece ter reparado que as duas vias tiveram o menor índice de mortes dos últimos 20 anos — pelo menos. Onde está toda aquela gente preocupadíssima com as vidas perdidas por nada?
Acho que encontrei.
Eles estavam duas ruas depois do Twitter, logo ali, entre o Facebook e o Instagram, criticando furiosamente a retirada dos radares das rodovias federais e responsabilizando essa “medida irresponsável” pelo aumento das mortes nas rodovias federais em 2019.
Não estava sabendo? Pois eu conto: o número de mortes nas rodovias federais aumentou em 2019 depois de sete anos em queda. A culpa, claro, só pode ser dos radares que foram desativados e não foram repostos. Afinal, “foi a única mudança” de um ano para o outro — dizem, convictas, as netinhas de Taubaté.
Envolvido com o tema desde 2004, é claro que eu fui dar uma olhada nas estatísticas. Em 2018 foram 5.269 mortes nas rodovias federais. Em 2019 o número aumentou para 5.332 mortes — uma diferença de 1,2%. O número de vítimas gravemente feridas também aumentou 5%, com 858 casos de ferimentos graves a mais que em 2018 — o que levou os especialistas a decretarem imediatamente, sem nenhum estudo prévio o informação detalhada, que a severidade dos acidentes aumentou. Mas… da mesma forma, eu poderia argumentar que estas 858 pessoas poderiam estar mortas se seus acidentes tivessem sido mais severos. A morte é mais grave que qualquer ferimento, não?
O fato é que os números apontam o caminho, mas são uma bússola, e não um mapa. E o caminho que eles apontam é que, apesar da histeria coletiva sobre os radares — dos defensores e de seus detratores — a velocidade, aparentemente, não teve relação com o aumento das mortes.
É preciso fazer uma leitura um pouco mais crítica, porque o dado está divulgado de forma relativa. Divulgado pela Confederação Nacional do Transporte, os dados são da Polícia Rodoviária Federal e apontam que, do total de mortes, a falta de atenção é a causa do acidente em 24% dos casos, que a desobediência das normas de trânsito é a causa de 16% dos acidentes e a velocidade incompatível é a causa de 13% dos acidentes.
Ou seja: 13% de 5.332, o que corresponde a 694 vidas perdidas devido a acidentes causados pela velocidade incompatível (não necessariamente excessiva). Me pareceu natural comparar este dado com o ano anterior. E foi o que fiz.
E foi assim que eu descobri que em 2018 mais pessoas morreram em acidentes causados por velocidade incompatível do que em 2019. Segundo a mesma Polícia Rodoviária Federal, em 2018 foram 743 mortes causadas por estes acidentes. Se em 2019 foram 694 mortes, temos uma redução de 49 mortes relacionadas à velocidade.
Logo, não podemos atribuir o aumento à redução do número de radares. Alguém até poderá argumentar que “o recado que o governo passa é de que liberou geral”, mas isso é uma opinião, não um fato. E ela é embasada em absolutamente nada. É uma questão semiótica, e não factual ou lógica.
Outro dado interessante é que, como já dissemos em diversas ocasiões — antes mesmo da histeria dos radares em 2019 — a velocidade incompatível sequer é a maior causa de acidentes nas rodovias brasileiras. Ela varia desde o início da década passada entre 16% e 11%.
A causa responsável pelo maior número de acidentes em 2019 foi a “falta de atenção”, à qual foram atribuídas 1.280 mortes (24%) . A causa responsável pelo segundo maior número de mortes foi a desobediência das normas de trânsito, atribuída 854 casos (16%). A velocidade aparece em terceiro com os 13% já citados.
Nessa “discussão” sobre o trânsito, impressiona que 24% das mortes sejam causadas por motoristas que deveriam estar fazendo o mínimo que se deve fazer ao dirigir: prestar atenção ao seu entorno. Há algumas semanas mencionei como o uso de celulares está aumentando o número de mortes nos EUA e Europa (não apenas por motoristas, mas por pedestres também), e sugeri, empiricamente, que no Brasil ocorre um fenômeno parecido. Nesta última quinta-feira a PRF divulgou um dado assombroso: 3.000 motoristas flagrados usando o celular ao volante em um único dia.
Há quem insista no risco de velocidade — há até quem argumente que um “bêbado devagar” ou um “usuário de smartphone devagar” sejam menos perigosos que um motorista em alta velocidade, mas a argumentação é absurda: um motorista em alta velocidade se dá a oportunidade de frear o carro. O motorista distraído não percebe a necessidade e o embriagado não tem capacidade plena de julgamento, além de ter seus reflexos afetados. Evidentemente não estou dizendo que a alta velocidade é segura, mas evidenciando os riscos de um motorista “errado mas devagar”.
Além disso, radares jamais impediram motoristas de praticar velocidades incompatíveis, mas a conscientização e a fiscalização ostensiva sim — e o exemplo de Santa Catarina, que reduziu os acidentes fatais apesar da lei estadual que restringe significativamente o uso de radares, mostra que é possível educar o motorista sem encher os cofres do estado com limites aleatórios e radares ocultos que fingem salvar vidas. Como 2019 nos mostrou, não precisamos deles para reduzir o número de mortos pela velocidade.