Você já viu essa imagem aí de cima. Ela é replicada por trocentas milhões de páginas que são criadas por aquele pessoal que compra cursos para aprender a bombar o instagram sem comprar seguidores. Ela mostra o suposto caminho mais longo do mundo possível de se realizar a pé, sem a necessidade de usar embarcações de nenhum tipo. O texto que a acompanha é sempre algo como:
“O caminho mais longo do mundo a pé sem a necessidade de atravessar o oceano ou qualquer outra barreira significativa é da Cidade do Cabo (África do Sul) a Magadan (Rússia).
Não há necessidade de aviões ou barcos e existem pontes. São 21.808 km e demora em média andando 4.310 horas para percorrer. Seriam 187 dias caminhando sem parar, ou 561 dias caminhando 8 horas por dia. Ao longo do percurso, você passa por 17 países, seis fusos horários e todas as estações do ano.”
O negócio sempre me chamou a atenção pela informação de “passar por todas as estações do ano” porque ele é um argumento idiota. Se eu ficar dormindo 561 dias também vou passar por todas as estações do ano, não?
Mas aí, deixando a troça de lado e olhando com mais atenção, percebi que o caminho tem menos de 22.000 km. E eu sei que as viagens de Norte a Sul e de Leste a Oeste no Brasil têm mais de 5.500 km. E que o Brasil é só um pedacinho da América. Eu também sei que a Rodovia Pan-Americana é a rodovia mais longa do mundo (#ch*pa Eurásia). Então, apesar de saber da possível veracidade dessa rota (afinal, está na internet…), comecei a desconfiar desse suposto caminho mais longo mais longo do mundo que volta e meia atravessa meu feed das redes sociais.
Antes mesmo de averiguar de perto a tal rota eurasiana, fui calcular a Rota Pan-Americana. A Wikipedia fala em “cerca de 30.000 km” porque, como ela não é uma rodovia propriamente dita, mas um conjunto de rodovias transnacionais que, juntas, atravessam o continente todo, sua extensão pode variar. Diante disso, recorri a uma ferramenta técnica de alta precisão para calcular a rota: Google Maps.
O problema é que a Rodovia Pan-Americana tem um buraco. Não existe ligação rodoviária entre a Colômbia e o Panamá. A rodovia acaba em uma cidade chamada “Turbo”, na Colômbia e não há passagem rodoviária para o Panamá. Para ir de carro, você precisa seguir até Cartagena e atravessar em um navio de carga até Colón, no Panamá. Ou fazer o trajeto contrário, caso esteja vindo do Alasca.
O trecho entre Prudhoe Bay, o ponto mais setentrional do Alasca acessado por uma rodovia, e Colón, no Panamá, tem 11.609 km. Ou seja: mal chegamos à metade do caminho e já temos mais de 50% da quilometragem da “maior rota do mundo feita a pé”, segundo a internet. Você já sabe onde isso vai dar, não é?
Desconsiderando o percurso de navio, o carro volta a contar os quilômetros em Cartagena, na Colômbia. Dali a estrada segue para Lima, a capital peruana, Antogofasta e Valparaíso, no Chile, Buenos Aires, na Argentina e Ushuaia, também na Argentina. Mais 11.392 km.
Some tudo e você tem 23.001 km. O tal do “caminho mais longo do mundo” do Reddit (que foi onde ela nasceu) tem 22.365 km. São só 636 km de diferença.
Só que Rota Pan-Americana não passa totalmente por terra. Ela tem a travessia marítima entre a Colômbia e o Panamá por causa da falta de rodovias entre Yaviza, no Panamá, e Turbo, na Colômbia, um trecho conhecido como região “Darién”. Ali o terreno é pantanoso e a hidrografia é intensa. Houve duas tentativas de se construir uma ligação rodoviária por interesse geral dos Estados americanos, mas o custo financeiro e ambiental inviabiliza a ligação.
Mas… a travessia de barco só é realmente necessária se você tiver medo da selva e nojinho de lama. Porque é possível dirigir entre estas duas cidades. Se é possível dirigir, é possível caminhar entre elas. Logo, o roteiro de Prudhoe Bay a Ushuaia é 100% feito sobre terra ou pontes, incluindo a travessia da região Darién.
E ela já foi feita. Poucas vezes, mas já foi feita. Em 1962 uma expedição formada por três Chevrolet Corvair e duas picapes foi de Chicago até a fronteira com a Colômbia. Depois, em 1971 e 1972, uma expedição britânica do Alasca até a Argentina atravessou o local com dois Range Rover e uma equipe de assistência de dois Land Rover Defender.
Em 1979 uma equipe com Jeeps CJ7 foi da Colômbia ao Panamá “com muita dificuldade” e, em 1984 o casal Loren e Patty Upton fizeram a primeira travessia totalmente terrestre da região usando um Jipe CJ. Eles levaram 741 dias. Não, isso não é um erro de digitação: foram setecentos e quarenta e um dias para atravessar pouco mais de 100 km de pântano na floresta tropical. A pé deve demorar menos, afinal, você não tem um carro para transportar…
O segundo ponto é que a Rota Pan-Americana só passa por Buenos Aires por ser o caminho oficial. É possível ir de Antogofasta diretamente até Ushuaia, o que encurta o caminho. Nesse caso, o roteiro Cartagena-Ushuaia terá 10.301 km, o que reduz o caminho americano total para 21.910 km. O Eurasiano-Africano tem 22.365 km, então é maior.
ALém disso, se a travessia é pedestre, o caminho continua sendo entre Yaviza e Turbo. Então precisamos considerar a distância entre Prudhoe Bay e Yaviza, acrescentar 106 km e depois somar a distância entre Turbo e Ushuaia. Nesse caso, temos, 11.840 km do Alasca ao Panamá, mais 106 km da região Darién, mais 10.131 km de Turbo a Ushuaia. São 22.077 km, o que faz o caminho Pan-Americano 288 km mais curto que o caminho Eurasiano-Africano.
Só que esse roteiro proposto pela internet inclui vias restritas de uso particular e uma longa travessia de balsa entre o Egito e o Sudão, pois há um deserto na ligação por terra. É possível passar por ali? Sim. Mas ele encurta ainda mais o caminho. Sem contar que há questões geopolíticas que resultam em fronteiras fechadas. Talvez seja por isso que ninguém tenha percorrido esse caminho.
Já a viagem do Alasca a Ushuaia ou de Ushuaia ao Alasca já tenha sido realizada milhares de vezes por milhares de pessoas. É um dos roteiros favoritos dos motociclistas americanos (do sul e do norte) e inspirou gente como Jesse Koz, por exemplo. E comprovando que ele pode ser feito a pé, ele já foi feito algumas vezes de bicicleta, embora poucos tenham enfrentado a região Darién.