A Segunda Guerra Mundial foi especialmente cruel com os países da Europa. Enquanto os Estados Unidos viveram uma época de otimismo e prosperidade nos anos após o conflito, as maior parte das nações da Europa, que foi o palco principal da guerra, precisou de um tempo para recuperar-se.
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A França foi um destes países. Durante a Segunda Guerra, mais de 1.500 cidades francesas foram bombardeadas e o país ficou ocupado por quatro anos antes da liberação, em 1944. Mais de 100.000 soldados franceses morreram no conflito, outras dezenas de milhares tornaram-se prisioneiros de guerra, e muitas pessoas foram mandadas para campos de concentração.
Então, quando a Segunda Guerra terminou, a França precisava recuperar-se. Uma das necessidades cruciais era o transporte pessoal – e, por isso, como outros países europeus, a França ganhou uma série de carros populares baratos e de manutenção simples, sob medida para uma população que estava tentando se reerguer. Em meio a tudo isto, a Citroën estava desenvolvendo o compacto 2CV, como contamos aqui.
Foi um processo longo e tortuoso, que incluiu esconder protótipos dos oficiais alemães – alguns tão bem escondidos que não foram encontrados até hoje. Com isto, embora o desenvolvimento do 2CV tenha começado ainda na década de 1930, ele só foi lançado 1948.
O 2CV, porém, não foi o único veículo que a Citroën fez pensando no baixo custo acima de tudo. Pouco antes de ele ser lançado, em 1947, a Citroën colocou no mercado a H Van – conhecida como a “Kombi francesa”.
Seu desenvolvimento teve início em 1943, antes mesmo do fim da ocupação. A Citroën, na época, já se preocupava em como manteria suas atividades após o conflito, quando todos na França estivessem precisando de dinheiro e lutando para se sustentar. Era preciso oferecer um veículo de trabalho que custasse pouco, fosse robusto e tivesse manutenção simples – além de oferecer a maior capacidade carga no pacote mais compacto possível.
Mas a Citroën, sendo a Citröen, não o faria da forma óbvia. E foi assim que surgiu a Citroën H Van, lançada em 1947.
Embora fosse um veículo criado para custar pouco e durar muito sob condições severas, a H Van tinha suas raízes no veículo mais caro e luxuoso da Citröen – o Traction Avant, pioneiro da construção monobloco aliada à tração traseira lançado pela marca em 1934. Ele utilizava exatamente o mesmo motor que o Traction Avant: um quatro-cilindros de 1,9 litro capaz de entregar 58 cv, ligado a uma caixa manual de três marchas. O câmbio, porém, ficava à frente do motor, e não atrás – e existe ao menos uma foto do Traction Avant com o conjunto invertido que foi usado para testes. Sim, a Citröen construiu uma mula usando seu veículo mais caro para testar uma van de baixo custo. É o carro branco da foto abaixo: note, atrás da grade, uma parte da carcaça do câmbio.
A opção por este arranjo teve a ver com o aproveitamento de espaço: com o câmbio na frente e o motor logo atrás, posicionado abaixo dos ocupantes, era possível aproveitar melhor o espaço interno deixando o assoalho todo plano. Pessoas de até 1,80 conseguiam ficar em pé, sem se curvar, dentro da área de carga. Além disso, a distribuição de massas deste arranjo era mais adequada para um veículo com as dimensões da H Van – 4,26 m na versão básica e 5,24 m na versão longa, com quase dois metros de altura. Assim como o Traction Avant, a van tinha tração dianteira, o que também liberava espaço interno.
A carroceria monobloco usava painéis de metal corrugado com uma armação de metal do tipo box section que aumentava a resistência sem acrescentar peso. Isto também permitia que o veículo fosse feito usando máquinas de estamparia das mais baratas e simples – em teoria, tornando mais fácil expandir a produção sem a necessidade de ferramental específico. Era o mesmo princípio dos aviões alemães Junker, que foram – ironicamente – a inspiração da Citroën para o uso de chapas corrugadas.
Apesar da aparência barata, quase industrial, a H Van tinha diversos outros elementos sofisticados. A suspensão, por exemplo, era independente nas quatro rodas, barras de torção nos dois eixos com quatro amortecedores na frente e dois atrás – o que tornava a dirigibilidade excelente, especialmente na versão mais curta. Em contrapartida, havia outros componentes mais simples compartilhados com companheiros de gama – os faróis, que vinham do 2CV, e o velocímetro do Traction Avant.
Como o estilo não era extremamente importante neste tipo de carro, muito pouco mudou ao longo de quase 40 anos – a Citroën H Van foi produzida entre 1947 e 1981. Por outro lado, a fabricante ofereceu uma infinidade de configurações para a carroceria a fim de satisfazer todo tipo de necessidade. Os que levariam apenas carga poderiam comprar um furgão curto ou longo.
Havia também versões de passageiros, uma picape, e uma interessantíssima variante que trazia apenas a cabine. Esta era enviada para diferentes construtores de carrocerias para transformar-se em todo tipo de veículo – camper, ambulância, micro-ônibus, food truck, carro de bombeiros e o que mais a necessidade pedisse.
Em nenhum destes casos o desempenho era destaque – a velocidade máxima era declarada em 140 km/h, mas na prática mal passava dos 100 km/h. Foram introduzidos outros motores ao longo dos anos – como um Perkins a diesel de 1,6 litro e 42 cv adotado em 1961, um motor a gasolina também com 1,6 litro e 45 cv (ambos adotados na década de 1960) disponível a partir de 1963, e um Perkins a diesel de 1,8 litro 50 cv introduzido em 1964, que ajudou a aumentar a carga útil de 850 kg para 1.000 kg. E foi assim que a H Van manteve-se até o fim de sua existência.
Os apreciadores do modelo gostam de lembrar que a Citroën H Van foi lançada três anos antes da Kombi – e que, apesar de a van da Volkswagen tornar-se um sucesso absurdo e ter uma vida ainda mais longa (afinal, ela deixou de ser produzida apenas em 2013, quando saiu de linha no Brasil). De fato, a Kombi utilizou algumas soluções da H Van, como a construção monobloco e o mesmo arranjo de suspensão na traseira. Também costuma-se citar como vantagem sobre a Kombi os motores mais potentes da van francesa – a Volkswagen tinha um motor boxer de 1,2 litro com pouco mais de 30 cv e capacidade de carga inferior.
A popularidade da Kombi certamente se deve à sua maior presença em mercados internacionais. A H Van teve mais de 470.000 exemplares produzidos em 34 anos, mas a grande maioria foi vendida na França e na Bélgica, sem grandes lotes exportados para outros países.
Apesar disto, seu visual marcante e sua extrema robustez garantiram que ela marcasse seu espaço como um dos veículos mais icônicos da Citroën. Tanto que, hoje em dia, é possível até mesmo comprar um kit que deixa a Citroën Jumper com a cara da H Van.